«Jesus, ao ver as multidões, encheu-Se de compaixão por elas» (Mt 9, 36)
Caríssimos irmãos e irmãs!
A Quaresma é o tempo privilegiado da peregrinação
interior até Àquele que é a fonte da misericórdia. Nesta peregrinação, Ele próprio
nos acompanha através do deserto da nossa pobreza, amparando-nos no caminho que leva
à alegria intensa da Páscoa. Mesmo naqueles «vales tenebrosos» de que fala o Salmista
(Sl 23, 4), enquanto o tentador sugere que nos abandonemos ao desespero ou deponhamos
uma esperança ilusória na obra das nossas mãos, Deus guarda-nos e ampara-nos. Sim,
o Senhor ouve ainda hoje o grito das multidões famintas de alegria, de paz, de amor.
Hoje, como aliás em todos os períodos, elas sentem-se abandonadas. E todavia, mesmo
na desolação da miséria, da solidão, da violência e da fome que atinge indistintamente
idosos, adultos e crianças, Deus não permite que as trevas do horror prevaleçam. De
facto, como escreveu o meu amado Predecessor João Paulo II, há um «limite imposto
ao mal, (…) a Misericórdia Divina» (Memória e identidade, 58). Foi nesta perspectiva
que quis colocar, ao início desta Mensagem, a observação evangélica de que «Jesus,
ao ver as multidões, encheu-Se de compaixão por elas» (Mt 9, 36). À luz disto, queria
deter-me a reflectir sobre uma questão muito debatida pelos nossos contemporâneos:
o desenvolvimento. Também hoje o «olhar» compassivo de Cristo pousa incessantemente
sobre os homens e os povos. Olha-os ciente de que o «projecto» divino prevê o seu
chamamento à salvação. Jesus conhece as insídias que se levantam contra esse projecto,
e tem compaixão das multidões: decide defendê-las dos lobos, mesmo à custa da sua
própria vida. Com aquele olhar, Jesus abraça os indivíduos e as multidões e entrega-os
todos ao Pai, oferecendo-Se a Si mesmo em sacrifício de expiação.
Iluminada
por esta verdade pascal, a Igreja sabe que, para promover um desenvolvimento integral,
é necessário que o nosso «olhar» sobre o homem seja idêntico ao de Cristo. De facto,
não é possível de modo algum separar a resposta às necessidades materiais e sociais
dos homens da satisfação das necessidades profundas do seu coração. Isto deve ser
ressaltado muito mais numa época como a nossa, de grandes transformações, em que nos
damos conta de forma cada vez mais viva e urgente da nossa responsabilidade em relação
aos pobres do mundo. Já o meu venerado Predecessor Papa Paulo VI com exactidão classificava
os danos do subdesenvolvimento como uma subtracção de humanidade. Neste sentido, ele
denunciava, na Encíclica Populorum progressio, «as carências materiais dos que são
privados do mínimo vital, e as carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo...
as estruturas opressivas, quer provenham dos abusos da posse ou do poder, da exploração
dos trabalhadores ou da injustiça das transacções» (n. 21). Como antídoto para esses
males, Paulo VI sugeria não só «a consideração crescente da dignidade dos outros,
a orientação para o espírito de pobreza, a cooperação no bem comum, a vontade da paz»,
mas também «o reconhecimento, pelo homem, dos valores supremos, e de Deus que é a
origem e o termo deles» (ibid.). Nesta linha, o Papa não hesitava em propor, «finalmente
e sobretudo, a fé, dom de Deus acolhido pela boa vontade do homem, e a unidade na
caridade de Cristo» (ibid.). Por conseguinte, o «olhar» de Cristo sobre a multidão
obriga-nos a afirmar os verdadeiros conteúdos daquele «humanismo total» que, sempre
segundo Paulo VI, consiste no «desenvolvimento integral do homem todo e de todos os
homens» (ibid., n. 42). Por isso, a primeira contribuição que a Igreja oferece para
o desenvolvimento do homem e dos povos não se consubstancia em meios materiais nem
em soluções técnicas, mas no anúncio da verdade de Cristo que educa as consciências
e ensina a autêntica dignidade da pessoa e do trabalho, promovendo a formação duma
cultura que corresponda verdadeiramente a todas as exigências do homem.
À
vista dos tremendos desafios da pobreza de grande parte da humanidade, a indiferença
e a encerramento no próprio egoísmo apresentam-se em contraste intolerável com o «olhar»
de Cristo. O jejum e a esmola, juntamente com a oração, que a Igreja propõe de modo
especial no período da Quaresma, são uma ocasião propícia para nos conformarmos àquele
«olhar». Os exemplos dos Santos e as múltiplas experiências missionárias que caracterizam
a história da Igreja constituem indicações preciosas quanto ao melhor modo de apoiar
o desenvolvimento. Mesmo neste tempo da interdependência global, pode-se verificar
como nenhum projecto económico, social ou político substitua aquele dom de si mesmo
ao outro que brota da caridade. Quem age segundo esta lógica evangélica, vive a fé
como amizade com o Deus encarnado e, como Ele, provê às necessidades materiais e espirituais
do próximo. Olha-o como mistério incomensurável, digno de infinito cuidado e atenção.
Sabe que, quem não dá Deus, dá demasiado pouco; como dizia frequentemente a Beata
Teresa de Calcutá, a primeira pobreza dos povos é não conhecer Cristo. Por isso, é
preciso levar a encontrar Deus no rosto misericordioso de Cristo: sem esta perspectiva,
uma civilização não é construída sobre bases sólidas.
Graças a homens
e mulheres obedientes ao Espírito Santo, surgiram na Igreja muitas obras de caridade,
visando promover o desenvolvimento: hospitais, universidades, escolas de formação
profissional, micro-empresas. São iniciativas que, muito antes de outras fórmulas
da sociedade civil, deram provas de sincera preocupação pelo homem por parte de pessoas
animadas pela mensagem evangélica. Estas obras apontam uma estrada por onde guiar
também o mundo de hoje para uma globalização que tenha, ao centro, o verdadeiro bem
do homem e conduza assim à paz autêntica. Com a mesma compaixão que tinha Jesus pelas
multidões, a Igreja sente hoje também como sua missão pedir, a quem tem responsabilidades
políticas e competências no poder económico e financeiro, que promova um desenvolvimento
baseado no respeito da dignidade de todo o homem. Um indicador importante deste esforço
há-de ser a liberdade religiosa efectiva, entendida como possibilidade não simplesmente
de anunciar e celebrar Cristo, mas de contribuir também para a edificação de um mundo
animado pela caridade. Há que incluir neste esforço também a efectiva consideração
do papel central que desempenham os autênticos valores religiosos na vida do homem
enquanto resposta às suas questões mais profundas e motivação ética para as suas responsabilidades
pessoais e sociais. Tais são os critérios sobre os quais os cristãos deverão aprender
também a avaliar com sabedoria os programas de quem os governa.
Não
podemos esconder que foram cometidos erros ao longo da história por muitos que se
professavam discípulos de Jesus. Não raramente eles, confrontados com problemas graves,
pensaram que se deveria primeiro melhorar a terra e depois pensar no céu. A tentação
foi considerar que, perante necessidades urgentes, se deveria em primeiro lugar procurar
mudar as estruturas externas. Para alguns, isto teve como consequência a transformação
do cristianismo num moralismo, a substituição do crer pelo fazer. Por isso, com razão
observava o meu Predecessor, de venerada memória, João Paulo II: «A tentação hoje
é reduzir o cristianismo a uma sabedoria meramente humana, como se fosse a ciência
do bom viver. Num mundo fortemente secularizado, surgiu uma gradual secularização
da salvação, onde se procura lutar sem dúvida pelo homem, mas por um homem dividido
a meio, reduzido unicamente à dimensão horizontal. Ora, nós sabemos que Jesus veio
trazer a salvação integral» (Enc. Redemptoris missio, 11).
É precisamente
a esta salvação integral que a Quaresma nos quer guiar, tendo em vista a vitória de
Cristo sobre todo o mal que oprime o homem. Quando nos voltarmos para o Mestre divino,
nos convertermos a Ele, experimentarmos a sua misericórdia através do sacramento da
Reconciliação, descobriremos um «olhar» que nos perscruta profundamente e que pode
reanimar as multidões e cada um de nós. Esse olhar devolve a confiança a quantos não
se fecharem no cepticismo, abrindo à sua frente a perspectiva da eternidade feliz.
Portanto, já na história – mesmo quando o ódio parece prevalecer –, o Senhor nunca
deixa faltar o testemunho luminoso do seu amor. A Maria, «fonte viva de esperança»
(Dante Alighieri, Paraíso, XXXIII, 12), confio o nosso caminho quaresmal, para que
nos conduza ao seu Filho. De modo particular confio a Ela as multidões que, provadas
ainda hoje pela pobreza, imploram ajuda, apoio, compreensão. Com estes sentimentos,
a todos concedo de coração uma especial Bênção Apostólica.