Verdade e paz, no discurso do Papa ao Corpo Diplomático. Bento XVI condenou o terrorismo
e apelou á paz no Médio Oriente. E não esqueceu a África, sobretudo a região dos Grandes
Lagos e as populações indefesas do Darfour.
“O empenho a favor da verdade é a alma da justiça”, “dá fundamento e vigor ao direito
à liberdade” e “abre o caminho ao perdão e à reconciliação”, constituindo portanto
uma sólida base para a paz: recordou-o Bento XVInesta segunda-feira de manhã, no tradicional
encontro do início de ano com o Corpo Diplomático representado junto da Santa Sé.
O Papa referiu com especial solicitude e preocupação, como “ponto nevrálgico da
cena mundial”, a Terra Santa, sem esquecer também o Líbano, todo o Médio Oriente (e
em particular o Iraque), e ainda, na África, a região dos Grandes Lagos e o Darfour.
O Pontífice sublinhou com insistência que “o homem é capaz de verdade”. Nisso
está “a singular grandeza do ser humano”, que tem “a sua raiz última” precisamente
no facto de poder conhecer a verdade e de o desejar. O “perigo de um choque das civilizações”,
o “terrorismo organizado” e a importância do respeito completo de todos os direitos
humanos, incluindo o direito à liberdade de religião, foram também objecto de circunstanciadas
considerações de Bento XVI, neste seu primeiro discurso do princípio de ano ao Corpo
Diplomático.
Antes de mais, como primeira reflexão, o Papa sublinhou a
relação entre verdade e justiça: “a alma da justiça (lembrou) é o empenho a favor
da verdade”. Daqui uma conclusão fundamental – há que recusar “a lei do mais forte”:
“Quem se empenha a favor da verdade não pode deixar de recusar a lei do mais forte,
que vive de falsidade e que, a nível nacional e internacional, tantas vezes marcou
de tragédias a história dos homens. A mentira reveste-se frequentemente de uma aparência
de verdade, mas na realidade é sempre selectiva e tendenciosa, visando de maneira
egoísta uma instrumentalização do homem e, em última análise, a sua submissão.”
Se
a busca da verdade faz aparecer as diversidades, com as correspondentes exigências
e os limites a não ultrapassar, esta mesma busca da verdade leva também a afirmar
com vigor aquilo que todos têm em comum, que pertence à própria natureza das pessoas,
de todos os povos e culturas, e que há que respeitar de modo semelhante. “Quando estes
aspectos distintos e complementares – a diversidade e a igualdade – são conhecidos
e reconhecidos, os problemas podem ser resolvidos e as dissensões podem-se apaziguar
segundo a justiça; são possíveis acordos profundos e duradouros. Ao passo que quando
se ignora um destes aspectos, sem o tomar em consideração, é então que surgem a incompreensão,
o conflito , a tentação da violência e dos abusos do poder”. Todas estas considerações
se podem aplicar, “com uma evidência quase exemplar, “àquele ponto nevrálgico do cenário
mundial que permanece a Terra Santa”. “O Estado de Israel deve poder existir ali,
pacificamente, conforme as normas do direito internacional; o Povo palestinense deve
igualmente poder desenvolver aí serenamente as suas instituições democráticas para
um futuro livre e próspero”. Reconhecendo que, no contexto mundial, se pode hoje,
com razão, falar de “perigo de um choque de civilizações”, Bento XVI passou a falar
do “terrorismo organizado, que se estende já a todo o planeta”, não hesitando em “atingir
pessoas inocentes, sem qualquer distinção” ou a “pôr em acto chantagens desumanas,
suscitando o pânico em populações inteiras”. Daqui uma condenação sem apelo: “Nenhuma
circunstância pode justificar esta actividade criminosa que cobre de infâmia quem
a realiza e que é tanto mais deplorável pelo facto de pretender apoiar-se numa religião,
degradando assim a pura verdade de Deus ao nível da sua própria cegueira e perversão
moral”.
Perante este quadro preocupante, Bento XVI faz apelo ao “contributo
essencial” que deve constituir, da parte das diplomacias, o empenho a favor da verdade.
“As inegáveis diversidades que caracterizam os povos e culturas das diversas partes
do mundo – observa o Papa – podem reunir-se não só numa coexistência tolerante, mas
mesmo num elevado e mais rico projecto de humanidade”, como mostra a história: “No
decurso dos séculos, os intercâmbios culturais entre judaísmo e helenismo, entre mundo
romano, mundo germânico e mundo eslavo, assim como o mundo árabe e o mundo europeu,
fecundaram a cultura e favoreceram as ciências e as civilizações.” Assim deveria
acontecer de novo também hoje, e em maior medida, dadas as circunstâncias mais favoráveis
à permuta e à compreensão recíproca.
Passando à segunda consideração –
“o empenho a favor da verdade fundamenta e fortalece o direito à liberdade”, observou
Bento XVI: “A singular grandeza do ser humano tem a sua raiz última neste facto:
que o homem pode conhecer a verdade. E o homem quer conhecer a verdade. Ora a verdade
só na liberdade se pode alcançar. Isto vale para todas as verdades, como o mostra
a história das ciências; mas é verdade de maneira iminente para as verdades nas quais
está em jogo o próprio homem como tal, as verdades do espírito: as que dizem respeito
ao bem e ao mal, as grandes finalidades e perspectivas de vida, a relação a Deus”.
Neste âmbito da liberdade a promover, a Santa Sé está naturalmente preocupada
de modo particular com a liberdade de religião, até porque, “infelizmente, em certos
Estados, memos entre os que se podem orgulhar de tradições culturais multisseculares,
esta liberdade, não só não é sempre garantida, mas é mesmo gravemente violada, especialmente
no que diz respeito às minorias.” Neste contexto, Bento XVI fez questão de “recordar
o que foi claramente estabelecido na Declaração universal dos Direitos do Homem”.
“Os direitos fundamentais do homem são os mesmos em todas as latitudes, e, entre
estes, há que reconhecer um lugar de primeiro plano ao direito à liberdade de religião,
porque se refere à relação humana mais importante, a relação a Deus”. “A todos
os responsáveis da vida das nações, quereria dizer: se não tendes medo da verdade,
não deveis ter medo da liberdade. A Santa Sé, que pede por toda a parte, para a Igreja
católica, condições de autêntica liberdade, pede-a igualmente para todos”.
Neste
contexto (reconheceu o Papa), objecta-se por vezes que “as diferentes convicções sobre
a verdade dão lugar a tensões, incompreensões, debates, tanto mais fortes quanto mais
profundas são as convicções”. Mais ainda: “ao longo da história, deram lugar a violentas
oposições, a conflitos sociais e políticos e até mesmo a guerras de religião”. “É
verdade, inegável” – admite Bento XVI, que faz contudo notar que tal aconteceu sempre
devido a uma série de causas concomitantes, que pouco ou nada têm que ver com a verdade
ou com a religião”. “No que lhe diz especificamente respeito, a Igreja católica condena
os graves erros cometidos no passado, por parte dos seus membros ou pelas suas instituições;
e não hesitou em pedir perdão. Exige-o o compromisso a favor da verdade. O pedido
de perdão e o dom do perdão … são elementos indispensáveis para a paz. Purifica-se
assim a memória, reencontra-se a serenidade do coração, e torna-se límpido o olhar
sobre o que a verdade exige para desenvolver pensamentos de paz. Não posso deixar
de recordar as luminosas palavras de João Paulo II: ‘Não há paz sem justiça, não há
justiça sem perdão’. É com humildade e com um grande amor que aqui as recordo de novo
aos responsáveis das Nações, em particular daqueles países onde mais vivas são ainda
as feridas físicas e morais dos conflitos e onde mais imperiosa é a necessidade de
paz”.
E aqui o Papa referiu-se de nova à Terra Santa, mas também ao Líbano
(“cuja população deve reencontrar… a sua vocação histórica à colaboração sincera e
frutuosa entre as comunidades de fé diversa”), a todo o Médio Oriente, nomeadamente
ao Iraque (“berço de grandes civilizações, nestes anos quotidianamente funestado com
sangrentos actos terroristas”). Bento XVI não esqueceu a África, “sobretudo a
região dos Grandes Lagos, onde ainda se sentem as trágicas consequências das guerras
fratricidas”, e também “as populações indefesas do Darfour, tocadas por uma ferocidade
abominável, com perigosas repercussões internacionais”.
Quase a concluir,
Bento XVI recordou ainda que “o empenho a favor da paz abre a novas esperanças”, até
porque “a paz não é o mero silêncio das armas”. “O homem é capaz de verdade”, e isso
tanto “no que diz respeito aos grandes problemas do ser, como sobre os grandes problemas
do agir: na esfera individual como nas relações sociais, a nível de um povo ou de
toda a humanidade”. Os “dinamismos de paz” que há que suscitar e incrementar –
lembra o Papa – são “os que respondam à verdade do homem e da sua dignidade”. De facto,
“não se pode falar de paz quando o homem não tem o indispensável para viver dignamente”,
sublinha Bento XVI, que evoca as pessoas que morrem de fome, ou vítimas inocentes
da guerra, ou deslocadas em busca de refúgio, em condições mais que precárias, carecidas
de tudo, ou vítimas da “praga do tráfico de pessoas, que permanece uma vergonha do
nosso tempo”.
“Não são estes seres humanos nossos irmãos e irmãs? Não
vieram os seus filhos ao mundo com as mesmas legítimas expectativas de felicidade
de todos os outros? - interroga-se, em tom profético, o Papa. Para além do que já
vêm fazendo “numerosas pessoas de boa vontade, diversas instituições internacionais
e organizações não-governamentais”, há que incrementar esforços para “identificar
com verdade e para ultrapassar com coragem e generosidade os obstáculos que ainda
se opõem a soluções eficazes e dignas do homem”. “A consciência humana sente-se interpelada”
quando se sabe que “menos de metade das imensas somas destinadas aos armamentos bastaria
para tirar da indigência, de maneira estável, o imenso exército dos pobres”.
Recordando,
a concluir, a profecia do Salmista – “encontram-se o amor e a verdade, abraçam-se
a justiça e a paz”, Bento XVI observou que a Igreja vê esta profecia realizada no
nascimento de Cristo. “É sempre desta verdade que vive a Igreja”. “Desta verdade as
minhas palavras desejam ser, para vós e para todos, ao mesmo tempo um testemunho e
um voto para o futuro: Na verdade, a paz. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 174
Estados mantêm relações diplomáticas com a Santa Sé, hoje em dia A estes Estados
soma-se “as Comunidades Europeias, a Soberana Ordem Militar de Malta e duas Missões
com carácter especial: a Missão da Federação Russa e do Secretariado da Organização
para a Libertação da Palestina (OLP)”.
Quando João Paulo II foi eleito Papa,
em 1978, a Santa Sé mantinha relações diplomáticas com apenas 85 países.
Os
últimos países com os quais a Santa Sé estabeleceu relações foram a recém-nascida
República do Timor Leste e o Qatar. Em ambos casos, os acordos foram assinados no
ano de 2002.
Entre os países com os quais a Santa Sé ainda não mantém relações
diplomáticas plenas encontram-se a República Popular da China, Vietname, Coreia do
Norte e Arábia Saudita.