Abertura em Fátima neste dia 14 de Novembro da assembleia plenária da Conferência
Episcopal Portuguesa. Uma Igreja para o mundo
No contexto das assembleias plenárias da Conferência Episcopal Portuguesa, iremos
reflectir, ao longo dos próximos três anos, sobre a importante questão da transmissão
da fé, em ordem a novas respostas pastorais.
Na presente assembleia, reflectiremos sobre os novos modelos culturais, que exigem
discernimento, em fidelidade ao Espírito. Estamos perante um tempo novo, com desafios
inéditos – culturais, educativos, morais, económicos, espirituais – e não podemos
ficar indiferentes. Teremos de nos colocar nos caminhos da gente que vive connosco,
caminhar com todos e como todos, colher as expectativas mais profundas e a procura
de sentido para a vida e para a morte, para o bem e para o mal.
Perante a mudança, não basta lamentar a perda de tempos passados nem apegar-se a modelos
inadequados. É preciso, em muitos casos, modificar também as atitudes. Só assim poderemos
contribuir, na fé, para criar uma forma de estar e de pensar que alicerce a cidadania
e convivência humana em princípios sólidos, capazes de suscitar e gerar iniciativas
nos mais variados âmbitos: defesa da vida, promoção humana, respeito pela natureza,
promoção de sadia convivência social, no respeito pela diversidade de culturas e religiões,
sempre com especial atenção aos mais pobres e desfavorecidos.
Por outro lado, não podemos resignar-nos à inevitabilidade duma sociedade que pretende
construir-se sem rumo, originando reacções violentas e destrutoras, como as que presenciámos
recentemente. Devemos cultivar uma consciência crítica e persistente que possa contribuir
para acordar a sociedade contemporânea, especificamente a sociedade portuguesa. A
violência dos últimos dias é sintoma duma sociedade que deve alterar comportamentos
e apostar em valores.
Em nome da fé, deverá criar-se uma consciência cívica activa, crítica e interventiva,
para um novo modelo de vida, inspirado nos valores humanos e cristãos.
Trata-se de uma tarefa confiada, prioritariamente, aos leigos, pela sua “própria e
específica índole secular” (Lumen Gentium 31), como vocação a viver as realidades
do mundo ordenando-as e assumindo a proximidade com todos os homens e mulheres, com
todos os seus problemas e percursos sócio-culturais. Os cristãos são “colaboradores
do Evangelho” (Cf. Fil 4, 3), tornando-se protagonistas activos da história e dos
processos dinâmicos que a constroem.
2. Desafios concretos
A Igreja não se intromete na vida do mundo, como um grupo estranho, mas permanece
fiel à sua missão de servir a humanidade, numa proposta capaz de suscitar um humanismo
integral. Por isso, nada lhe pode ser alheio. Tudo lhe diz respeito e a cada coisa
quer dar um sentido. A fé no nome de Jesus Cristo não lhe permite o silêncio, caso
contrário as pedras dos caminhos falariam por ela (Cf. Lc. 19, 40). No momento presente
da vida social portuguesa, gostaria de referir algumas realidades que exigem intervenção. 1 - Educar para uma ecologia responsável:
Não podemos ficar alheios ao drama dos incêndios. Não é do passado e, por isso, o
interior das comunidades eclesiais, teremos de recuperar uma catequese sobre a enorme
gravidade moral que constitui o acto de pegar fogo à floresta e de estimular a corresponsabilidade
de todos, mesmo no momento de denunciar potenciais incendiários. Não será necessário
voltar a insistir sobre a gravidade de certos pecados, individuais e colectivos?
Sabemos que não será suficiente a concentração nos recursos humanos e materiais, no
âmbito da prevenção ou da acção. Como em tudo, importa ir às causas de natureza cívica
e questionar-se sobre as razões do desleixo ou dos actos premeditados. A Igreja, assim
como a escola e os meios de comunicação social, têm de insistir na formação duma consciência
individual e pública, de um modo permanente e não se limitando à chamada – de forma
muito infeliz e quase motivadora – «época de incêndios». Ao arder uma floresta – longe
ou perto – arde um património e um bem de todos. 2 – Um poder local de serviço a todos:
Participámos, recentemente, no processo de eleição de autarquias locais. Não nos compete
olhar os resultados nem formular análises.
O poder autárquico deve ser, cada vez mais, um verdadeiro serviço à comunidade local,
em responsabilidade de resposta a todo o tipo de necessidades, sempre e só numa perspectiva
de solidariedade para com todos e dum modo particular para com os mais vulneráveis
e abandonados (idosos, doentes, desempregados, imigrantes, jovens à procura do primeiro
emprego, etc.). A todos urge oferecer as condições mínimas para uma vida com dignidade.
Sempre dentro do princípio da proximidade e em colaboração com as diversas instituições
locais que prestam serviço à comunidade, a Igreja, num estado laico e de regime de
separação, nunca deixará de agir sem se prender, preservando a liberdade de quem caminha
com o povo e o defende, ainda que para isso possa ser necessário denunciar humildemente
o que lhe parece injusto e indigno para com os mais pobres e incapazes de fazer valer
os seus direitos.
Gostaria de deixar uma palavra de apreço e de estímulo àqueles autarcas que, a pensar
no bem comum, se entregam ao desenvolvimento harmónico das localidades e ao crescimento
integral de todos os seus habitantes. Fazemos votos de que prossigam, sem desânimos,
em favor duma democracia verdadeira e de que os cristãos não tenham receio de participar
nesse processo, sempre na procura de soluções humanizantes. 3 – Para uma cultura da vida:
A Igreja nunca pode renunciar ao direito e ao dever de defender a vida, desde a concepção
até à morte natural, defendendo ser a família o contexto vocacional e comunitário
onde mais originariamente se possibilita o seu crescimento e a sua dignidade.
Sabemos que a vida de cada pessoa humana nunca poderá ser sujeita a votação. Nenhuma
maioria pode decidir sobre a vida, própria ou dos outros. Trata-se de um dom gratuito,
de que nenhum ser humano pode dispor, sem correr o grave risco de destruir a própria
humanidade. Para os crentes, essa vida é dom de Deus criador, a acolher e a trabalhar,
para a tornar experiência de salvação. Assumindo-a como direito inviolável, estaremos
sempre do seu lado e interpelaremos os cristãos para que, neste gravíssimo assunto,
vivam os compromissos inerentes à sua fé.
Reconhecendo que a vida não é referendável, sabemos que a nossa posição encontra o
seu fundamento último, sem dúvida, na fé que professamos, mas trata-se de uma posição
que poderá e deverá ser compreendida e assumida por qualquer ser humano, independentemente
de ser ou não crente, com prática religiosa ou não.
O adiamento temporário da questão não pode provocar alheamento, mas antes ser motivo
de maior esclarecimento dos cristãos e de todos os demais cidadãos, para que, de forma
livre e em ambiente de sadio debate, todos possam compreender que se trata, aqui,
de uma realidade incondicional, por isso não referendável.
Aproveito, ainda, a ocasião para agradecer a muitos homens e mulheres – cristãos ou
não – que se empenharam e empenham para que Portugal possua uma legislação alicerçada
num sadio humanismo e nunca em correntes de pensamento que, por facilitismo ou mesmo
ausência de valores, possa abrir as portas do futuro a muitas outras formas de desumanidade.
Para nós, a porta do futuro, o progresso que desejamos para todos os seres humanos,
situa-se antes ao nível do empenho em criar condições de vida para que todas as mães
possam ter os seus filhos dignamente e para que todos os filhos possam conhecer uma
vida digna, a que têm direito.
Compete-nos continuar a suscitar uma cultura da vida. Estamos confiantes de que o
povo português e os profissionais de saúde não quererão onerar a sua consciência com
actos que, parecendo resolver angústias momentâneas, geram situações pessoais e sociais
de clara infelicidade ou mesmo de desumanidade. Pretendendo ilibar muitas mulheres,
criar-se-iam condições para que a sociedade lhes viesse a exigir algo, cujo peso iria
marcar as suas consciências pela vida fora, tornando essa vida mais indigna. 4. Educar para a sexualidade:
Entre as iniciativas válidas para fazer frente ao grave problema do aborto encontra-se,
sem dúvida, o empenho por realizar uma educação da sexualidade aprofundada e equilibrada.
Saliento que a família é o contexto primordial dessa educação, admitindo que a escola
possa desempenhar um papel auxiliar. Alerto, contudo, para o perigo de enveredar por
facilitismos ou de ceder a intromissões ideológicas e económicas.
Assim sendo, por um lado saúdo a intenção de integrar a educação sexual nas escolas
sem criação de uma disciplina específica mas simplesmente no contexto da educação
para a saúde pública. Com isso, reconhece-se que a abordagem de outras dimensões não
pode ser assumida de ânimo leve.
Por outro lado, contudo, temo que a concentração do assunto na questão da saúde possa
induzir os jovens a uma compreensão redutora da sexualidade. Será necessário, por
isso, que a escola também tome iniciativas, em estreita colaboração com as famílias,
no sentido de abordar de modo mais integral a sexualidade humana, sem excluir dimensões
afectivas, éticas, sócio-culturais, etc.
Às escolas são lançados, agora, desafios importantes. Em primeiro lugar, deverão saber
trabalhar em conjunto com os pais, nunca desrespeitando as convicções e valores das
famílias. É certo que muitas famílias precisam de ajuda neste campo especial da tarefa
educativa. Mas a escola nunca pode tomar iniciativas sem que as famílias sejam escutadas
e respeitadas.
Em segundo lugar, uma equilibrada educação da sexualidade implica, da parte dos docentes,
formação acrescida, quer ao nível da biologia, quer sobretudo ao nível da história
cultural, da psicologia, da antropologia, da ética e de tudo o que tem a ver com o
desenvolvimento da afectividade. Saúdo todas as iniciativas já levadas a cabo, neste
campo, alertando os responsáveis para a necessidade de um grande investimento, tendo
sempre em vista o futuro sadio e feliz, das gerações mais jovens.
3 – Conclusão:
Nesta perspectiva de redescoberta do concílio Vaticano II e no espírito da Gaudium
et Spes, a Igreja reconhece-se como parte integrante do mundo, em comportamento solidário
com o ser humano, e se resigna ao estatuto de “gheto”, que muitos contemporâneos pretendem
empurrar para o foro meramente pessoal e intimista. Ela recusa esse estatuto, não
no seu próprio interesse, mas para bem de todos os humanos, com as suas “alegrias
e esperanças, tristezas e angústias” (Lumen Gentium 1). Nunca poderá aceitar qualquer
dicotomia entre fé e vida quotidiana, mas aceita o desafio presente no facto de que
a “ruptura entre evangelho e cultura é sem dúvida o drama da nossa época” (Evangelium
Nuntiandi 20). Saberemos reconhecer a legítima autonomia da cultura, da economia,
da ciência e da política… Só não poderemos aceitar que esta se torne anti-religiosa
na promoção de qualquer falso humanismo, sem horizontes vastos e profundos.
Com estas palavras não pretendo insinuar qualquer tipo de condenação ou ataque de
ordem política. Reconheço a existência de forças que agem com maior ou menor clareza,
mas sei que do Evangelho emanam forças e luzes com capacidade geradora de uma comunidade
humana renovada. Não queremos nem podemos ser meros espectadores. Teremos de participar,
redescobrindo permanentemente e propondo, com audácia, o homem novo, Cristo, donde
nascerá uma verdadeira humanidade e um mundo novo, marcado por um humanismo integral.
É verdade que a Igreja parece ser mais uma presença, entre outras presenças na história
humana. Contudo – sem vanglória mas sim com responsabilidade – ela é lugar de uma
outra presença, memória viva de Cristo que, participando na história, não se reduziu
nem se reduz aos seus parâmetros. Não pretendemos, por isso, quaisquer privilégios.
Temos, isso sim, a responsabilidade de mostrar outros horizontes.
(Do discurso de abertura de D. Jorge Ortiga,Presidente da CEP) ECCLESIA