2005-03-27 12:26:43

A Eucaristia na longa vigilia da vida: Homilia da Vigilia Pascal do Patriarca de Lisboa


1. Esta é a mais solene Vigília da Liturgia da Igreja. Nela, guiados pela Palavra de Deus, somos chamados a fazer memória da longa Vigília da salvação da humanidade, desde a criação do homem até à plenitude do Homem, atingida na ressurreição de Cristo. Só é verdadeiramente capaz de mergulhar no espírito desta Vigília, que antecede a Páscoa, quem já assimilou que a vida é uma longa caminhada, até à plenitude da vida, em Cristo ressuscitado, e que o caminho de cada um de nós só é possível porque somos membros de um Povo que o Senhor escolheu, acompanha, fortalece e alimenta, um Povo que, depois da Páscoa, se identifica com o próprio Senhor ressuscitado, que caminha com ele, lhe garante a sua presença, até ao fim, (cf. Mt. 28,20), o próprio Filho de Deus que, encarnado, se fez nosso companheiro de viagem . É a longa Vigília da nossa vida de fé, atraídos pela plenitude da vida, aquele ponto Ómega em que o tempo atingiu o seu termo.
Nesta longa Vigília de misericórdia, de fidelidade e de graça, a Eucaristia marca o ritmo da caminhada, sendo o “pão do céu”, alimento dos peregrinos, como o maná o tinha sido para os israelitas, no deserto, o anúncio do termo que nos atrai, a fonte da força que nos sustenta, a alegria saborosa da comunhão com o Senhor, que caminha connosco. Alimento de peregrinos, a Eucaristia, qual realização plena da “tenda da reunião” e da “nuvem” que escondia a glória de Deus, pertence à nossa situação de caminheiros no deserto. Mas porque ela é o sacramento da plenitude de Cristo, torna viva e ao nosso alcance, a terra prometida da nossa esperança. É por isso que ela está no centro desta Vigília: sendo alimento para quem caminha e espera, ela permite-nos saborear, desde já, os frutos da terra prometida, estando, assim, presente em todas as etapas dessa longa caminhada do Povo que o Senhor escolheu e consagrou.

2. Esta longa Vigília começa na criação, o que nos mostra que só Deus pode abraçar, no Seu desígnio de amor, toda a duração desta caminhada, no tempo. “No princípio criou Deus o Céu e a Terra”. Nós já conhecemos, hoje, a sequência desta narração: na ressurreição de Cristo Deus criou os novos céus e a nova terra, porque n’Ele, Deus faz de novo todas as coisas. O Evangelho da ressurreição é a sequência da primeira página do Génesis, e a Eucaristia é o anúncio vivo dessa plenitude da criação, ou seja, do destino do nosso peregrinar. E entre estas duas páginas, todos os elementos da Criação descobrem, em Cristo, o seu sentido pleno: a água será sinal purificador de redenção, a luz vencerá, não apenas as trevas físicas da noite, mas iluminará o coração do homem, que descobrirá em Cristo a luz que não tem ocaso; a vida descobre-se como semente de uma plenitude que ainda só aconteceu, plenamente, em Cristo ressuscitado e o homem, criado à imagem de Deus, já sabe que essa imagem é Cristo glorioso, o único que desvela o mistério do homem e que só unindo-se a Cristo ressuscitado ele será, definitivamente, a imagem de Deus.
Esta primeira página desta longa peregrinação da humanidade, conclui assim: “Deus concluiu, no sétimo dia, a obra que fizera e, no sétimo dia, descansou do trabalho que tinha realizado”.
Nós hoje sabemos, à luz da Páscoa, que só em Cristo ressuscitado, plenitude da criação, Deus encontrará o seu repouso e que a Eucaristia é o oásis, onde os que ainda estão a atravessar o deserto, podem saborear o repouso de Deus. Para toda a criação, o verdadeiro dia do repouso de Deus é o dia da ressurreição de Cristo e para a Igreja, povo que ainda peregrina, o dia em que pode retemperar as forças participando do repouso de Deus, é o Domingo, dia da Eucaristia. Ouçamos o Santo Padre, ao proclamar este Ano da Eucaristia: “Desejo em particular que, neste ano, se ponha um empenho especial em descobrir e viver plenamente o Domingo como dia do Senhor e dia da Igreja. (…) De facto, «é precisamente na Missa dominical que os cristãos revivem, com particular intensidade, a experiência feita pelos Apóstolos na tarde de Páscoa, quando, estando eles reunidos, o Ressuscitado lhes apareceu (cf. Jo. 20,19). Naquele pequeno núcleo de discípulos, primícias da Igreja, estava de algum modo presente o povo de Deus de todos os tempos»” .

3. Porque Deus acompanha o Povo, nesta caminhada da vida, ela é caminho a percorrer na confiança e na obediência da fé: é preciso sempre descobrir os caminhos que Deus escolheu. A obediência de Abraão, que fez dele o protótipo do crente obediente à Palavra do Senhor, é apenas a imagem da obediência de Jesus Cristo. Deus diz a Abraão que só Ele pode indicar o verdadeiro cordeiro para o sacrifício. Esta plena obediência de Jesus Cristo é ensinada à Igreja, na Eucaristia, onde a obediência da fé se torna hóstia de louvor e de onde brota a luz que nos fará descobrir os caminhos do Espírito, caminhos de vida e de amor.
Na sua caminhada para a terra prometida, o Povo de Deus encontra obstáculos que só pode ultrapassar com a intervenção de Deus. Não perceber isso é desistir do sentido da própria caminhada. Aquelas águas do Mar Vermelho, que Deus estanca como muralhas, para que o Seu Povo possa avançar em segurança, são apenas um sinal do poder com que Deus liberta Jesus Cristo da morte e nos liberta, a todos nós, do pecado e da morte. Aquele caminho miraculosamente aberto, entre as águas, pelo poder de Deus, anuncia o maravilhoso caminho da graça, no qual, através do Espírito Santo, Deus abre ao Seu Povo todos os caminhos que o levarão à santidade. A Eucaristia não é, apenas, o caminho novo, é também o anúncio de todos os caminhos que Deus está disposto a abrir, para nós, com o poder do ressuscitado.

4. Isaías percebeu que esta presença contínua de Deus na caminhada do Povo, não se limita a ser útil e eficaz, último recurso para as incapacidades do Povo. Trata-se de uma presença terna e amorosa. “O teu Criador será o teu esposo”, o que significa que o Povo peregrino não é só convidado a avançar no caminho, mas a mergulhar cada vez mais na intimidade do amor de Deus. Deus quer que o Seu Povo avance, sentindo-se amado, lobrigando a terra prometida como a festa das núpcias. Só na ressurreição de Cristo esta festa das núpcias se torna plenamente possível, porque o Senhor ressuscitado ama a sua Igreja como uma esposa, e nunca, como na Eucaristia, a Igreja se sente a esposa amada, plenamente introduzida na intimidade do seu Esposo. Tudo na Eucaristia, a Palavra e o Sinal, nos anuncia e nos comunica o amor esponsal de Deus, em Jesus Cristo.
A Eucaristia torna-se, assim, para a Igreja, a plena realização da profecia de Isaías, a fonte onde se sacia toda a sede e o banquete que mata todas as fomes. Nunca a Palavra de Deus foi tão eficaz como na Eucaristia e tão perfeita a obra de Deus na nossa história de peregrinos. Aí podemos encontrar o Senhor, porque Ele está, não apenas perto, mas completamente presente e comprometido connosco.
Nunca, como na Eucaristia, penetramos nos tesouros de Deus, anunciados pelo Profeta Baruc. Nela o Povo de Deus já não se sente em país estrangeiro, porque a Eucaristia, no mais profundo da humanidade, é fermento de um mundo novo.

5. Esta longa Vigília é o tempo da transformação da massa por esse fermento de um mundo novo, que foi depositado na nossa natureza humana no dia do nosso baptismo. Mas como diz Paulo aos Romanos, esse fermento de vida nova que recebemos no baptismo é o próprio Jesus Cristo, morto e ressuscitado, e o fruto da sua força transformadora só pode ser a nossa transformação no próprio Cristo. Os catecúmenos que hoje vão ser baptizados sentirão ao vivo, que ao receberem este fermento da Páscoa, a sua peregrinação ganha um ritmo novo. Até aqui prepararam-se para acolher esse fermento; a partir de agora a sua caminhada continua, em Igreja, para que esse fermento dê todo o seu fruto, até à plena identificação com Cristo ressuscitado, numa comunhão de amor, que é anúncio da plenitude da vida.
Já quase no termo desta longa Vigília, surgirá o anúncio da ressurreição. É o anúncio do que já sabemos e experimentamos; é o convite a vivê-lo e interiorizá-lo na celebração da Eucaristia, único modo de vivermos, na nova etapa da nossa caminhada, a força de Cristo ressuscitado, que continua a atrair-nos para a plenitude da vida.

Sé Patriarcal, 26 de Março de 2005







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