2017-09-09 16:31:00

Valorizar a herança cultural e espiritual dos afrodescendentes


Como nos dizia há poucos dias o P. Rafael Castillo Torres, vigário pastoral da Arquidiocese de Cartagena, o Papa não poderia deixar de visitar essa região, porque foi por essa cidade costeira do norte da Colômbia que os missionários chegaram ao país levando o Evangelho. E por ali desembarcaram também os africanos levados como escravo para o país. Mas o lugar com a maior presença hoje de afrodescendente na Colômbia é Cali, no sudoeste do país. É a cidade com mais negros nas Américas, depois de Baía, no Brasil. Ali trabalha o P. Venance Mongi Munyere, missionário da Consolata, natural do Quénia. Está lá há cerca de 15 anos e é encarregado da Pastoral com os Afrodescendentes, uma população – diz – desfavorecida, devido às condições históricas em que tem vivido. A Igreja procura ajudá-los a resgatar a sua identidade cultural e espiritual como uma componente enriquecedora de toda a vida social e eclesial colombiana. A ideia da pastoral com os afrodescendente surgiu na década de 80 – frisou o P. Venance, ao explicando em que consiste:

Antes de mais a iniciativa de trabalhar com esta população nasceu nos anos 80 na Costa do Pacífico por inspiração dos bispos Henrique Bartolucci, da Diocese de Esmeraldas, no Equador, e do bispo Geraldo Valencia Cano, da Diocese colombiana de Buonaventura. Inicialmente se deram conta de que as duas Igrejas se encontravam no meio de grandes populações afrodescendentes e, olhando para a realidade e para as culturas dessas pessoas viram que havia que encontrar uma forma própria de fazer a evangelização no seio desse povo. Essa experiência se expandiu para outras partes da Colômbia e do Equador até chegar à Arquidiocese de Cali, onde nos demos como tarefa trabalhar em duas vertentes principais: evangelizar a partir da cultura, e a promoção humana para melhorar as condições desses povos. Por conseguinte, entrar antes de mais, em diálogo com esta cultura, valorizar a experiência de Deus que os afrodescendentes tiveram ao longo da história e pôr esta experiência ao serviço da Igreja em cada uma das dioceses e, de modo particular, na Igreja colombiana. Isto significa, ver como elevar os índices dos afrodescendentes em matéria de educação, saúde, participação política e tudo o que tem a ver com a promoção humana; ou seja, ver como orientar, de forma geral, essa população. Isto implica acções muito concretas que passam pela educação de toda a sociedade colombiana para que dê espaço a esta parte da sociedade, um pouco esquecida, mas com uma riqueza impressionante.

Em segundo lugar, fazer com que os próprios afrodescendentes se façam protagonistas tanto na vida eclesial como social a partir da sua própria experiencia e da sua riqueza cultural.

Terceiro, transformar em acções afirmativas na sociedade e na Igreja aquilo que chamamos de inculturação e fazer com que se manifeste na Igreja com rosto próprio.

Estes são os elementos que, grosso modo, nos permitem ter acções muito concretas para a evangelização e para melhorar as condições de vida desta população.”

- Os resultados deste esforço têm sido positivos, afirma ainda o P. Venance…

“Sim, a resposta tem sido muito, muito positiva. Afirmo isto por três razões: um, é que os que entraram a fazer parte deste processo, praticamente transformaram-se numa fonte de riqueza para a própria Igreja e para a sociedade, podendo gozar desta liberdade, diria, de participar, como filhos de Deus, no ser Igreja e no ser sociedade.

Segundo é a expansão que já teve esta experiencia de ser Igreja por toda a América. Este trabalho começou há apenas 35 anos, mas tem sido muito significativa, especialmente na Colômbia, Equador, Panamá, Haiti e em muitos outros países, e temos tido a possibilidade de nos reunir, anualmente, como continente  (com a participação de bispos, padres, religiosos/as e os próprios agentes afrodescendentes) para ter uma avaliação permanente. E os resultados têm sido muito positivos, de tal forma que hoje já podemos falar de uma Igreja latino-americana, onde a componente afrodescendente tem um grande impacto na evangelização e o melhoramento da integração na sociedade civil.”

- Um trabalho que apresenta, todavia, algumas dificuldades…

“A primeira dificuldade são as dívidas históricas recebidas. Historicamente esta população não usufruiu das melhores condições em termos de saúde, educação participação plena nas tomadas de decisão. Portanto, há uma dívida histórica que herdamos e que de alguma forma nos põe perante a tarefa de recuperar ou de preencher os vazios e isto, naturalmente, atrasa qualquer processo (igreja, educação…) em todos os campos humanos.

A segunda dificuldade é a prevenção que a sociedade, em geral, tem em relação a qualquer tema relativo aos afrodescendentes, cuja própria experiência de Deus não é plenamente reconhecida. Isto porque a ânsia de cristianizar os afros, assim como os indígenas, fez com que se ofuscasse muito a experiencia de Deus que tinham. Hoje-em-dia, convidamos a própria Igreja e todos a darem especial atenção – quando se fala de diálogo inter-religioso – às religiões afro-americanas, por vezes vistas com suspeita por se considerar que não descenderam das grandes religiões historicamente reconhecidas.

A terceira dificuldade, é a participação plena na vida eclesial, onde, embora haja muita abertura em relação às manifestações culturais afro, contudo, há, ainda posturas um pouco fechadas em permitir que haja uma participação plena dos negros em cargos de responsabilidade na hierarquia da própria Igreja. Ali os negros brilham pela ausência.

Estes são desafios que nos mostram que ainda temos muito caminhar por andar para garantir que realmente algum dia possamos ajudar no - sentido de  todos poderem participar plenamente na vida da Igreja e da sociedade”.

- Mais de 500 anos depois da chegada dos africanos à Colômbia, permanecem, portanto, muitas injustiças em relação a eles. Isto é tudo devido ao estigma da escravatura, ou os próprios afrodescendentes têm alguma responsabilidade nisso?

“Diria que as duas instâncias têm impacto, porque uma escravidão que durou mais de 400/500 anos deixa marcas profundas, e este síndroma continua de forma quase que hereditária na reacção do próprio afrodescendente perante as instituições e em relação a tudo aquilo que elas podem reproduzir como sistema e que pode gerar opressão. Por outro lado, temos tido grandes dificuldades na parte organizativa das próprias comunidades. Isto porque quando as necessidades básicas de toda uma sociedade não são satisfeitas, a organização torna-se difícil…

Em segundo lugar, há que dizer que desde o principio se criaram intencionalmente divisões no seio do povo afro. Recorde-se que os que chegavam às Américas, trazidos da África, a primeira tarefa que os proprietários se davam era a de os separar, distanciando os que falavam a mesma língua, por forma a assegurar que não houvesse entendimento entre eles como mecanismo de defesa e assim manter o sistema colonizador. E neste caso fez-se uma divisão intencional para que não pudesse comunicar com facilidade. Esta herança os acompanha ainda hoje, porque naqueles tempos a cada um tocou lutar de forma quase individual quando se tratava de encontrar estratégias de libertação. Esta tendência continua porque as estruturas mantiveram esta política. Não convém que os povos se organizem. E isto teve maior efeito entre os afros e muitos outros grupos humanos na Colômbia e o resto da América.

- A Igreja tem uma certa minha culpa a fazer no que toca aos afrodescendentes, sublinha o P. Venance, evocando o discurso sobre esta matéria do Papa João Paulo II a 2 de Outubro de 1992 e o próprio documento de Puebla, em que os bispos da América Latina reconhecem que a Igreja não prestou a devida atenção no momento oportuno ao sofrimento dos africanos nas Américas. Houve claramente figuras como São Pedro Claver e outros. Mas a nível institucional não agiu com firmeza contra a escravatura. Agora a expectativa da visita do Papa Francisco à Colômbia é grande para todo o país, mas os afrodescendentes têm espectativas específicas, primeiro porque coincide com os 25 anos do discurso de JPII. Mas também por outras razões,  refere ainda o P. Venance:

 “Estamos na Década internacional dos Afrodescendentes, em que a ONU convidou todos as Nações a reconhecerem, a promoverem a justiça e o desenvolvimento para os afro. E depois, dado que o Vaticano é membro das instituições da ONU, é uma oportunidade para reevocar a mensagem do Papa João Paulo II. E a expectativa de muitos de nós é que o Papa Francisco tenha uma mensagem específica para esta população.

Um outro aspecto é que o Papa estará em Cartagena, ali é onde tudo começou… e visitará a Igreja, onde estão os restos de São Pedro Claver e nesse espaço estaremos cerca de 300 afrodescendentes, fazendo presença num acto simbólico e oxalá que o Papa Francisco se pronuncie sobre a dignidade da pessoa e dos direitos humanos, para marcarmos este “primeiro passo” e se pôr termo à escravatura que continua de várias maneiras, se ponha fim à exclusão e se faça com que os afrodescendentes possam sentir-se impulsionados pela própria Igreja a dar este passo em direcção à plena participação, inclusão e a celebrar o dom da vida que se restaura e acabar com toda as formas de escravatura” .

O P. Venanceo Mongi Munyere, missionário queniano da Consolata, há uns 15 anos a trabalhar na Colômbia, em Cali, região com mais afrodescendente de toda a Colômbia e segunda na América Latina, depois de Baía, no Brasil.

 








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