Editorial: Lázaro de hoje, a pedra de toque da nossa fé cristã


Cidade do Vaticano (RV) - Foi publicada na última terça-feira, 7 de fevereiro, a mensagem do Papa Francisco para a Quaresma deste ano sobre o tema “A Palavra é um dom. O outro é um dom”. Uma mensagem muito propositiva que, ao mesmo tempo, não deixa de nos questionar sobre o compromisso do nosso ser cristão.

Francisco recorda que a Quaresma constitui um período litúrgico de forte convite à conversão e um tempo propício para abrir a porta a cada necessitado e nele reconhecer o rosto de Cristo. Recorda ainda tratar-se de um momento favorável para intensificarmos a vida espiritual através dos meios santos que a Igreja nos propõe: o jejum, a oração e a esmola.

Em sua mensagem, o Santo Padre nos propõe a parábola do homem rico e do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31) – uma das mais conhecidas do Evangelho – e que, justamente por ser bastante conhecida, não vamos aqui nos ater a ela em suas particularidades, mas, mesmo assim, gostaria de destacar alguns desdobramentos.

O Pontífice convida-nos a deixar-nos inspirar por esta página tão significativa, que nos dá a chave para compreender como temos de agir para alcançarmos a verdadeira felicidade e a vida eterna, incitando-nos a uma sincera conversão.

Lázaro nos interpela e coloca em xeque o nosso ser cristão. Como a pedra de toque que serve para avaliar a pureza dos metais, os Lázaros hoje são o pobre que bate à porta não como um empecilho fastidioso, mas um apelo a converter-nos e mudar de vida.

Como tantos nos dias de hoje, Lázaro é o homem degradado e humilhado, que vive numa situação concreta de escória humana, que jaz à porta do homem rico invisível para este, corrompido pelo amor ao dinheiro, a vaidade e a soberba.

Francisco afirma na mensagem que o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado em sua humilhação. A conclusão desta parábola nos é conhecida.

Lázaro é símbolo dos milhões de esfomeados no mundo de hoje que, na sua humilhação, nos questionam e interpelam continuamente, sobretudo, numa realidade de injustiça social que, não obstante os avanços do conhecimento e as conquistas da técnica e da tecnologia, resiste em seu paradigma gerando milhões de seres humanos à margem de tais conquistas e alheios às benesses que estas produzem.

E a globalização, cujas promessas das últimas décadas era de que haveria de melhorar a vida de todo mundo, particularmente das massas menos favorecidas? No ano 2000, quando a cifra dos que padeciam a fome no mundo girava em torno de 800 milhões de pessoas, foram estabelecidas as chamadas metas do milênio.

Governos de 191 países do mundo inteiro assumiram na Onu trabalhar com afinco para reduzir a pobreza pela metade até 2015. O objetivo, como se sabe, não foi alcançado. Houve progressos, é verdade, mas ainda estamos muito longe da meta, incluída agora na Agenda de 2030.

A idolatria do dinheiro, continuamente denunciada pelo Papa Francisco, continua produzindo um quadro de injustiça social na qual os países mais ricos são responsáveis por 80% do consumo global, e enquanto este modelo de desenvolvimento perdurar, teremos milhões de Lázaros mendigando o pão.

Simplesmente, 80% do consumo privado mundial é abocanhado por 20% da população residente nos países mais ricos – países de história, tradição e cultura cristãs –, o que faz sobrar para 80% da população residente nos países mais pobres e em desenvolvimento, apenas 20% da produção mundial.

Dias atrás a organização britânica Oxfam divulgou um estudo que teve bastante repercussão: os 8 homens mais ricos do mundo possuem tanta riqueza quanto as 3,6 bilhões de pessoas que compõem a metade mais pobre do planeta. Ou seja, 8 bilionários que têm juntos mais dinheiro que a metade mais pobre do mundo.

A ONG britânica produziu relatório semelhante nos últimos quatro anos. Precedentemente, havia calculado que as 62 pessoas mais ricas do mundo detinham tanta riqueza quanto  metade mais pobre da população da Terra. O número caiu para apenas oito este ano.

O fosso entre ricos e pobres se revelou bem maior do que se temia. A concentração de renda e a prossecução de um modelo econômico iníquo continuam produzindo uma espécie de “lazarização” em regiões inteiras do planeta. Segundo a referida organização, ainda vale a afirmação de que a riqueza acumulada pelo 1% mais rico da população mundial equivale à riqueza dos restantes 99%.

Voltando à mensagem para a Quaresma, o Papa ressalta que o dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao ponto de tornar um ídolo tirânico. “Em vez de instrumento ao nosso dispor para fazer o bem e exercer a solidariedade com os outros, o dinheiro pode-nos subjugar, a nós e ao mundo inteiro, numa lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e dificulta a paz.”

Francisco conclui a mensagem quaresmal pedindo que o Espírito Santo nos guie na realização dum verdadeiro caminho de conversão, para redescobrirmos o dom da Palavra de Deus, sermos purificados do pecado que nos cega e servirmos Cristo nos irmãos necessitados.

Os Lázaros de hoje são também a massa humana dos milhões de deslocados e refugiados que fogem das guerras e dos conflitos, que morrem afogados no Mediterrâneo em busca de uma vida melhor, são os indivíduos, mulheres e homens vítimas do tráfico de pessoas, do tráfico de órgãos, são as crianças exploradas e violentadas no alvorecer da vida.

Lázaro nos interpela continuamente. E nós, cristãos, devemos nos lembrar sempre que quem não é generoso com o pouco que tem, jamais o será no dia em que tiver mais.

O período quaresmal, tempo de conversão, começa daqui a pouco mais de duas semanas. Boa Quaresma a todos!

Raimundo Lima








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