Lutero, uma perspectiva ecumênica (de Walter Kasper)


Cidade do Vaticano (RV) - Em maio, foi lançado na Itália o texto reelaborado e ampliado de uma conferência do Cardeal Walter Kasper sobre Lutero, proferida em 18 de janeiro passado, no início da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, na Humboldt-Universität de Berlim, a convite da Fundação Guardini (Walter Kasper, Martin Lutero. Una prospettiva ecumenica, Brescia, Queriniana, 2016 ≪Giornale di teologia≫ 387, pagine 75, euro 8).

Este artigo que repropomos agora foi publicado pelo L'Osservatore Romano, em italiano, em 18 de maio de 2016:

Dedicado à irmã Ingeborg, falecida em 28 de janeiro, e lançado também na Alemanha (Patmos Verlag) e na Espanha (Sal Terrae), o pequeno livro - do qual trazemos a conclusão - é uma síntese inteligente e ecumenicamente relevante.

No prólogo o autor, que de 2001 a 2010 presidiu o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, reconhece que "para os católicos, Lutero foi por muito tempo simplesmente um herético, aquele que carrega a culpa da divisão da Igreja ocidental, com todas as suas consequências negativas, até hoje".

Mas, "aqueles tempos passaram" e a historiografia católica do século XX "deu uma importante reviravolta na compreensão" do reformador, permitindo reconhecer então "a instância genuinamente religiosa" e favorecendo um juízo mais correto em relação à culpa na divisão entre as Igrejas e, no signo do ecumenismo, a recepção de alguns seus pontos de vista e, não última, de seus cantos litúrgicos. Os últimos Papas compartilharam este modo de ver", como "Bento XVI, em 23 de setembro de 2011, durante a sua visita na Sala do Capítulo do ex-convento dos agostinianos em Erfurt, onde Lutero pronunciou os votos religiosos".

E se "para alguns Lutero já tornou-se quase um padre comum da Igreja - escreve o Cardeal Kasper - as numerosas tomadas de posição surgidas para 2017 na recorrência dos 500 anos da Reforma protestante não se afastam muito disto. Todas levam em consideração a mudança ocorrida na percepção ecumênica de Lutero, mas reconhecem também que entre as Igrejas ainda permanecem em suspenso questões controversas. Assim, muitos cristãos esperam justamente, que a celebração em 2017, dos 500 anos da Reforma protestante, nos faça dar, no plano ecumênico, um passo de aproximação ao objetivo da unidade".

O Cardeal observa então, que "Lutero mesmo não foi uma pessoa ecumênica. Perto do fim de sua vida, ele não considerou mais possível uma reunificação com Roma. O fato de que hoje cristãos católicos cantem nas suas celebrações os seus hinos religiosos, certamente não poderia ser imaginado por ele, tanto menos poderia ter imaginado o nosso diálogo com os judeus, sobre os quais se expressou com desprezo, um modo para nós muito embaraçante, e nem mesmo o nosso diálogo com os muçulmanos, a respeito dos quais ele, nos escritos contra os turcos, não demostrou de fato sentimento benévolos, mas nem mesmo o nosso diálogo com os anabatistas (hoje os batistas e os menonitas), que na época eram perseguidos quer pelos evangélicos como pelos católicos".

Mas existe ainda mais, observa o Cardeal Kasper: "Para nós, a estranheza de Lutero é ainda mais profunda. Para muitos, também para muitos cristãos praticantes de ambas as Igrejas, as questões levantadas por Lutero não são absolutamente mais compreensíveis. Isto vale para muito católicos em relação à Indulgência, para muitos evangélicos em relação à justificação do pecador. Em um mundo no qual Deus torna-se tantas vezes um estranho, ambas as questões tornaram-se para muitos contemporâneos discursos incompreensíveis. Para muitos, a própria palavra "Igreja" tornou-se totalmente - ainda mais do quanto o fosse na época para Lutero - uma "palavra obscura e pouco inteligível".

Portanto, antes de falar da atualidade do reformador, é necessário "enquadrá-lo na transformada situação de ambas as Igrejas e do ecumenismo" e "tomar consciência da estranheza do mundo em que Lutero viveu, e também da estranheza de sua mensagem". Mas precisamente esta estranheza representa hoje, segundo o teólogo, a atualidade ecumênica de Lutero.

Uma perspectiva ecumênica, de Walter Kasper

Lutero não era um homem ecumênico no sentido atual do termo. Tanto menos o eram os seus adversários. Ambos eram inclinados à polêmica e à controvérsia. Isto levou à restrições e enrijecimentos de ambas as partes. As questões exacerbaram-se em seguida, da questão da justiça revelada no Evangelho e da misericórdia de Deus, até a questão da Igreja, especialmente a questão do Papa. Como o Papa e os bispos se recusavam a prosseguir a reforma, Lutero, com base na sua compreensão do sacerdócio universal, viu-se obrigado a contentar-se com um ordenamento de emergência. Ele, porém, continuou a confiar no fato de que a verdade do Evangelho se imporia por si só e assim deixou a porta fundamental aberta para um possível futuro entendimento.

Também pelo lado católico, no início do século XVI, permaneciam abertas muitas portas. Não havia uma eclesiologia católica harmonicamente estruturada, mas unicamente das abordagens, que eram mais uma doutrina sobre a hierarquia do que uma eclesiologia verdadeira e própria. A elaboração sistemática da eclesiologia terá lugar somente na teologia com controvérsia como antítese à polêmica da Reforma contra o papado. O papado torna-se assim, em um modo até então desconhecido, a marca de identidade do catolicismo. As respectivas teses e antíteses confessionais se condicionaram e bloquearam mutuamente.

Somente o recente ecumenismo reabriu um pouco mais a porta. No lugar da controvérsia entrou o diálogo. Diálogo não significa lançar no mar aquilo que até agora se considerou como verdade. Podem conduzir um autêntico diálogo somente pessoas que, mesmo tendo cada uma o seu ponto de vista, estão porém disponíveis em escutar-se reciprocamente e a aprender umas das outras. Tal diálogo não é uma questão puramente intelectual; ele é uma troca de dons. Isto pressupõe reconhecer quer a verdade do outro, quer as próprias fraquezas, e a vontade de afirmar a própria verdade em um modo que não vá ferir o outro, não polemicamente, mas de dizer a verdade no amor (Efésios 4,15), subtraindo às controvérsias o veneno da divisão e transformando-as em um dom, de forma que ambas as partes cresçam na catolicidade entendida no sentido original e cresçam juntas, reconheçam maiormente a misericórdia de Deus em Jesus Cristo e juntas deem testemunho diante do mundo.

Este é o caminho percorrido desde o último Concílio, que para isto traçou um caminhou que não pode ser invertido - um caminho, não uma solução bonita e pronta! A acolhida do Concílio Vaticano II, mesmo cinquenta anos após a sua conclusão, ainda não chegou ao fim. O Papa Francisco inaugurou um nova fase em tal processo de recepção. Ele sublinha a eclesiologia do povo de Deus, o povo de Deus a caminho, o sentido da fé do povo de Deus, a estrutura sinodal da Igreja e para a compreensão da unidade coloca em jogo uma interessante nova abordagem.

Descreve a unidade ecumênica não mais com a imagem de círculos concêntricos ao redor do centro romano, mas com a imagem do poliedro, isto é, de uma realidade multifacetada, não um enigma quebra-cabeça montado de fora, mas um todo e, em se tratando de uma pedra preciosa, um todo que reflete a luz que incide sobre ele de forma maravilhosamente múltipla. Conectando-se a Oscar Cullman, o Papa Francisco retoma o conceito da diversidade reconciliada. Na Exortação Apostólica Evangelii gaudium, o seu "escrito programático", ele parte do Evangelho e convida a uma conversão não somente de cada cristão, mas também do episcopado e do primado.

Assim, se subentende, no centro é colocada a originária fundamental de Lutero, ou seja, o Evangelho da graça e da misericórdia e o apelo à conversão e à renovação.

Não somente a história da recepção do último Concílio, mas também a história da recepção de Lutero não se concluiu de fato, nem mesmo nas Igrejas Evangélicas. Existe também um esquecimento e uma estranheza de Lutero pelo lado evangélico. Caso se pense na doutrina relativa à Ceia e à piedade eucarística. Ela mostra que Lutero, contra Zwingli, permaneceu decididamente fiel a uma compreensão realística da Eucaristia e que não pode estar bloqueada em modo rígido no esquema de uma religião da pura interioridade. Pensemos também na compreensão do ministério de Lutero da maturidade, a sua fundamental abertura em relação ao episcopado histórico, como também a sua afirmação de que ele teria levado na palma da mão e beijado os pés de um Papa que tivesse acolhido e reconhecido o seu evangelho. Não é por isto possível referir-se somente às afirmações polêmicas do primeiro Lutero. Devemos e podemos, isto sim, de novo retomar também a questão, fundamental para o processo do ecumenismo, da compreensão e da relação entre Igreja, ministério e Eucaristia.

A este respeito, poderia representar um passo em frente o fato de levar a sério os aspectos místicos de Lutero.

Eles não se encontram somente no jovem Lutero, mas também no mais simpático de seus mais importantes escritos reformadores, Von der Freiheit eines Christenmenschen. Isto poderia abrir possibilidades de diálogo. De fato, unidade e reconciliação não acontecem somente na cabeça, mas em primeiro lugar nos corações, na piedade pessoal, na vida cotidiana e no encontro entre as pessoas.

Dito de modo mais acadêmico: temos necessidade de um ecumenismo acolhedor, capaz de aprender uns dos outros. Somente por meio disto a Igreja Católica pode realizar concretamente e em plenitude a sua catolicidade; vice-versa, também a original instância de Lutero, exigência basicamente ecumênica, pode encontrar plena satisfação somente por meio de um ecumenismo acolhedor. Não temos ainda nenhuma solução comum, mas se abre uma possível perspectiva comum e uma via comum para o futuro. O caminho rumo à plena unidade está aberto, mesmo que este possa ser longo e cheio de obstáculos.

A contribuição mais importante de Martinho Lutero para levar em frente o ecumenismo não está nas abordagens eclesiológicas nele remanescentes, ainda abertas, mas na sua orientação original ao Evangelho da graça e da misericórdia de Deus e no apelo à conversão. A mensagem da misericórdia de Deus era a resposta ao seu pessoal problema e necessidade, como também aos questionamentos de seu tempo; isto é também hoje a resposta aos sinais dos tempos e às urgentes necessidades de muitas pessoas. Somente a misericórdia de Deus pode curar as profundas feridas que a divisão provocou ao corpo de Cristo que é a Igreja. Ela pode transformar e renovar os nossos corações, para que sejamos disponíveis a converter-nos, a usar entre nós a misericórdia, a perdoar-nos reciprocamente as injustiças passadas, a reconciliar-nos e a colocarmo-nos a caminho para encontrarmos juntos, com paciência, e passo por passo, no caminho rumo à unidade na diversidade reconciliada.

Neste sentido, gostaria de retomar uma frase que foi colocada na boca de Martinho Lutero (...): “Se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira”. Em 1º de novembro de 2009 pude plantar uma pequena tília no reconstituído Jardim de Lutero em Wittenberg; retribuindo o presente, sob o meu sucessor os luteranos plantaram uma oliveira na Basílica romana de São Paulo extra-muros.

Quem planta uma pequena árvore nutre esperança, mas tem necessidade também de paciência. A plantinha deve, em primeiro lugar, crescer em profundidade e lançar raízes profundas para poder resistir às adversidades. Também nós devemos ir ad fontes e ad radices. Temos necessidade de um ecumenismo espiritual na leitura comum da Escritura e na oração comum. Em segundo lugar, a arvoreta deve crescer em altura e elevar-se ao céu rumo à luz. O ecumenismo, nós não podemos “produzi-lo”, não o podemos organizar ou tomar à força. A unidade é um dom do Espírito Santo de Deus. De seu poder podemos ter uma escassa estimativa, não podemos lançar apressadamente a toalha e perder a esperança antes do tempo. O Espírito de Deus, que iniciou a obra da unidade, a levará também ao seu cumprimento, uma unidade não como a queremos nós, mas como a quer Ele.

Por fim, a pequena árvore deve crescer em tamanho, para que os pássaros do céu possam fazer o ninho entre seus ramos (Mt 13,32), isto é, para que todos os cristãos de boa vontade encontrem lugar à sua sombra. De acordo com a imagem do poliedro, devemos permitir a unidade em uma grande multiplicidade reconciliada, estar disponíveis em relação a todas as pessoas de boa vontade e dar já hoje testemunho comum de Deus e da sua misericórdia.

A unidade está hoje mais próxima do que há quinhentos anos atrás. Ela já começou. Em 2017 não somos mais, como em 1517, no caminho da separação, mas naquele da unidade. Se tivermos coragem e paciência, no final não ficaremos desiludidos. Esfregaremos os olhos e com reconhecimento, ficaremos estupefatos daquilo que o Espírito de deus, talvez de uma forma totalmente diferente de como nós pensávamos, nos fez chegar lá.

Nesta perspectiva ecumênica, 2017 poderia ser para os cristãos evangélicos e para aqueles católicos uma oportunidade. Deveríamos saber aproveitá-la. Faria bem a ambas as Igrejas, a muitas pessoas que alimentam expectativas a este respeito e também ao mundo que, sobretudo hoje, tem necessidade de nosso testemunho comum.

 

(JE/L'Osservatore Romano)








All the contents on this site are copyrighted ©.