Artigo: Satanás no Estado laico?


Porto Alegre (RV) - Recentemente, circulou pelas redes sociais a proposta de uma “Marcha para Satanás” que ocorreria em diversas cidades do País, no dia 17 de janeiro. A iniciativa gerou grande polêmica e se declarou crítica ao Estado teocrático, reivindicando o distanciamento das posições religiosas, especialmente as cristãs, nas decisões legais que norteiam o Brasil. Em última análise, os organizadores pretendiam maior liberdade religiosa e de expressão na sociedade. 

A organização do evento usou uma linguagem sedutora para que a proposta fosse aceita pela sociedade. A marcha para a glória de Satanás queria ser acolhedora de todas as classes supostamente excluídas pela religião e se mostrava contra o fundamentalismo extremista. Essa marcha pretendia fazer com que as pessoas passassem a olhar o mundo com outro perfil: sem tabus ou normas morais; com liberdade absoluta, sem culpa ou pecado. Ensinam que o Deus judaico-cristão é preconceituoso, e que no satanismo não há preconceito. 

Como cristãos, defendemos o direito à liberdade religiosa e sabemos o quanto a intolerância pode gerar uma cultura de morte. Igualmente entendemos que o Estado deve ser laico. Entretanto, a sociedade e a cultura não são laicas. Elas são pautadas por valores, ideias e símbolos que expressam suas crenças e seus ideais.  Pretender uma isenção total desse conjunto de fatores que constituem o ser humano é uma abstração. A pessoa vive e se desenvolve dentro de um contexto histórico, marcado pelas mais diversas influências que definem sua convivência em sociedade e na comunidade à qual pertence.

Os cristãos, independentemente de ser a maioria, como no Brasil, não podem ficar calados diante de propostas que pretendam desprezar o que lhes é mais sagrado: a dignidade da pessoa humana em sua dimensão integral e solidária. Nem todos precisam concordar com a fé cristã, mas os valores humanistas que o cristianismo comporta, merecem a reflexão de todos. Trata-se de garantir a liberdade para todo ser humano, mas jamais sustentar uma liberdade desprovida do respeito à alteridade. Desde os tempos do Império Romano, os cristãos foram perseguidos na sociedade por defenderem a vida em todas as suas manifestações, por cuidarem dos pobres e doentes, como prioridade, por objetarem cultuar ídolos que serviam para manipular a consciência da população. Eles foram acusados de toda espécie de males, especialmente por serem leais aos princípios morais derivados de sua fé em Cristo e, por isso, eram capazes de rezar até pelos que os odiavam.

Enfim, nesse contexto, a questão simbólica não é inocente. Quando se pretende que Satanás seja o referencial de uma crítica aos seguidores de Jesus Cristo, estabelece-se um antagonismo que não é apenas religioso, mas também moral, político, social e cultural. Satanás, na visão cristã, é sempre o opositor a Deus, divisor que separa Deus do ser humano e o faz pensar que pode ser feliz dessa forma. São João Paulo II, na Encíclica Dominum et Vivificantem, número 38, escreveu: “O espírito das trevas é capaz de mostrar Deus como inimigo da própria criatura; e é, antes de tudo, inimigo do homem, como fonte de perigo e ameaça ao homem. ” Satanás, demônio, ou diabo são termos relacionados a expressões como: pai da mentira (Jo 8,44), o delator, o acusador (Ap 12,10), o divisor. Se alguém cultua Satanás, ou apenas usa esse simbolismo, pode não compreender o significado original e profundo no qual ele se sustenta: a mentira, o engano, a corrupção, a ausência do bem. Os cristãos professam a fé em Cristo que é Deus de Deus, Luz da Luz e nele não há trevas. Se alguém preferir negar Cristo, é livre para tal, entretanto, ao defender o culto a Satanás, deve recordar que ele é ausência de luz. Maligno é tudo aquilo que vive nas sombras, para que a verdade não se manifeste.  Vivemos numa atmosfera de tanta mentira que muita gente, até de forma impensada, acaba concordando com a ausência da luz da verdade. 

A “Marcha para Satanás” também ocorre toda vez que lemos notícias sobre violência, assassinatos, corrupção, mentiras, desprezo pela vida alheia, tráfico humano, aborto, traições e tantas outras situações que, independentemente da questão religiosa, a vida humana é desprezada. Precisamos defender a vida. O que falta são muitas marchas pela vida!

+ Dom Leomar Brustolin

Bispo Auxiliar de Porto Alegre

 








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