Encontro com a sociedade civil: íntegra do discurso


Quito (RV) - No final da tarde de terça-feira, o Papa Francisco encontrou representantes da sociedade civil na Igreja de São Francisco de Quito onde proferiu um denso e contundente discurso, que segue na íntegra:

"Queridos amigos!

Boa tarde. E me perdoem se me coloco de lado, porém necessito da luz sobre o papel. Me alegro por estar convosco, homens e mulheres que representais e dinamizais a vida social, política e econômica do país.

Mesmo antes de entrar na igreja, o Senhor Prefeito entregou-me as chaves da cidade. Deste modo, posso dizer que aqui, em San Francisco de Quito, sou de casa. Esse símbolo, que é mostra de confiança e carinho, ao abrir-me as portas, permite-me apresentar-vos algumas chaves da convivência cívica a partir deste ser de casa, a partir desta experiência da vida familiar.

A nossa sociedade ganha, quando cada pessoa, cada grupo social se sente verdadeiramente de casa. Numa família, os pais, os avós, os filhos são de casa; ninguém fica excluído. Se alguém tem uma dificuldade, mesmo grave, ainda que seja por culpa dele, os outros correm em sua ajuda, apoiam-no; a sua dor é de todos. Me vem em mente a imagem destas mães ou esposas. As vi em Buenos Aires fazendo filas nos dias de visita para entrar no cárcere, para ver a seu filho ou a seu esposo que não se comportou bem, para dizer numa linguagem mais branda, porém não os deixam porque seguem sendo de casa. Como nos ensinam estas mulheres. Na sociedade, não deveria acontecer o mesmo? E, no entanto, as nossas relações sociais ou o jogo político, no sentido mais amplo da palavra - não esqueçamos que a política, dizia o Beato Paulo VI, é uma das formas mais altas de caridade -,  muitas vezes este agir nosso se baseia no confronto, que produz descarte. Assim vamos construindo uma cultura do descarte que hoje em dia assumiu dimensões mundiais, de amplitude. Isto é ser família? A minha posição, a minha ideia, o meu projeto consolidam-se, se for capaz de vencer o outro, de me impor. Nas famílias, todos contribuem para o projeto comum, todos trabalham para o bem comum, mas sem anular o indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no. Brigam, porém tem algo que não muda: o laço familiar. As brigas de família tornam-se reconciliações depois. As alegrias e as penas de cada um são assumidas por todos. Isto sim é ser família! Oh se conseguíssemos ver o adversário político ou  o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas ou maridos, pais ou mães, que bom seria. Amamos a nossa sociedade, ou segue sendo algo longínquo, algo anônimo, que não nos envolve, não nos compromete? Amamos o nosso país, a comunidade que estamos tentando construir? Amamo-la somente nos conceitos proclamados, no mundo das ideias? Santo Inácio – permitam-me o aviso publicitário – Santo Inácio nos dizia nos Exercícios que o amor se mostra mais nas obras do que em palavras. Amemos a sociedade mais com as obras do que com as palavras! Em cada pessoa, em sua situação concreta, na vida que compartilhamos. E além disto nos dizia que o amor sempre se comunica, tende sempre à comunicação; nunca ao isolamento. Dois critérios que nos podem ajudar a olhar a sociedade com outros olhos. Não somente a olhá-la, mas senti-la, pensa-la, tocá-la.

A partir deste efeito, surgirão gestos simples que fortalecem os vínculos pessoais. Já em várias ocasiões, me referi à importância da família como célula da sociedade. No âmbito familiar, as pessoas recebem os valores fundamentais do amor, da fraternidade e do respeito mútuo, que se traduzem em valores sociais fundamentais: a gratuidade, a solidariedade e a subsidiariedade. Então, partindo deste ser de casa, olhando a família, pensemos na sociedade através destes valores sociais que temos em casa, na família: a gratuidade, a solidariedade e a subsidiariedade.

A gratuidade: para os pais, todos os filhos, embora cada um tenha a sua índole própria, são igualmente adoráveis. Mas, quando a criança se nega a partilhar o que recebe gratuitamente deles, dos pais, quebra esta relação ou entra em crise, fenômeno mais comum. As primeiras reações, que às frequentemente são anteriores à autoconsciência da mãe, começam quando a mãe está grávida: o jovem começa com atitudes estranhas, começa a querer transgredir, porque sua psique o toma (n.d.r. - a chegada de um irmão ou irmã) como um sinal vermelho: cuidado que tem concorrência, cuidado que tu já não és o único. Curioso. O amor dos pais ajuda-o a sair do seu egoísmo, para que aprenda a conviver com o que vem, com os demais, que aprenda a ceder para se abrir ao outro. Eu gosto de perguntar aos jovens: “Se tens duas balas e vem um amigo, o que fazes? Geralmente me dizem: “Lhe dou uma”. Geralmente. “E se tens somente uma bala e vem um amigo, o que fazes?”. Aí duvidam. E vão desde o “a dou para ele”, “a dividimos”, até o “a coloco no bolso”. Este jovem que aprende a abrir-se ao outro. No âmbito social, isto supõe assumir que a gratuidade não é complementar, mas requisito necessário para a justiça. A gratuidade é requisito necessário para a justiça. O que somos e temos foi-nos confiado para o colocarmos ao serviço dos outros – de graça recebemos, gratuitamente devemos dar. Nossa tarefa é fazer com que frutifique em boas obras. Os bens estão destinados a todos e, embora uma pessoa ostente o seu título de propriedade, o que é lícito, sobre eles pesa uma hipoteca social. Sempre. Assim o conceito econômico de justiça, baseado no princípio de compra-venda, é superado pelo conceito de justiça social, que defende o direito fundamental da pessoa a uma vida digna. E, seguindo com a justiça, a exploração dos recursos naturais, tão abundantes no Equador, não deve apostar no benefício imediato. Ser administradores desta riqueza que recebemos compromete-nos com a sociedade no seu conjunto e com as gerações futuras, às quais não poderemos legar este patrimônio sem o devido cuidado do meio ambiente, sem uma consciência de gratuidade que brota da contemplação do mundo criado. Nos acompanham aqui hoje, irmãos dos povos indígenas da Amazônia Equatoriana. Esta área é das «mais ricas em variedade de espécies, em espécies endêmicas, raras ou com menor grau de efetiva proteção. (…) Requerem um cuidado particular pela sua enorme importância para o ecossistema mundial [pois têm] uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos» (cf. LS 37-38). E aí o Equador – juntamente com os outros países detentores de franjas amazônicas – tem uma oportunidade para exercer a pedagogia duma ecologia integral. Recebemos o mundo como herança dos nossos pais, mas também recordemos que o recebemos como um empréstimo de nossos filhos e das gerações futuras, a quem o temos de devolver. E melhores! E isto é gratuidade.

Da fraternidade vivida na família, nasce este segundo valor, a solidariedade na sociedade, que não consiste apenas em dar ao necessitado, mas em sermos responsáveis uns dos outros. Se virmos no outro um irmão, ninguém pode ficar excluído, ninguém pode ficar marginalizado.

O Equador, como muitos povos latino-americanos, passa hoje por profundas mudanças sociais e culturais, novos desafios que requerem a participação de todos os atores sociais. A emigração, a concentração urbana, o consumismo, a crise da família, a falta de trabalho, as bolsas de pobreza produzem incerteza e tensões que constituem uma ameaça para a convivência social. As normas e as leis, bem como os projetos da comunidade civil, devem procurar a inclusão, abrir espaços de diálogo, espaços de encontro e, assim, deixar como uma triste recordação qualquer tipo de repressão, de controle excessivo e a perda de liberdade. A esperança dum futuro melhor passa por oferecer oportunidades reais aos cidadãos, especialmente aos jovens, criando emprego, com um crescimento econômico que chegue a todos e não se fique pelas estatísticas macroeconômicas, criar um desenvolvimento sustentável que gere um tecido social firme e bem coeso. Se não tem solidariedade isto é impossível. Me referi aos jovens e me referi à falta de trabalho. Mundialmente é alarmante. Países europeus, que estavam em primeira linha há décadas, hoje estão sofrendo na população juvenil – de 25 anos para baixo – com quarenta, cinquenta por cento de desocupação. Se não tem solidariedade isto não se soluciona. Dizia isto aos salesianos: “Vocês que foram criados por Dom Bosco para educar, hoje educação de emergência para estes jovens que não tem trabalho”. Por que? Emergência para prepará-los para pequenos trabalhos que deem a eles a dignidade de poder levar o pão para casa. A estes jovens desempregados que são os que chamamos de “nem nem” – nem estudam, nem trabalham – que horizontes lhes apresenta? Os vícios, a tristeza, a depressão, o suicídio – não se publicam integralmente as estatísticas de suicídio juvenil – ou inscrever-se em projetos  de loucura social, que ao menos apresentem a eles um ideal? Hoje somos chamados a cuidar, de maneira especial, com solidariedade, este terceiro setor de exclusão da cultura de descarte. Primeiro são os jovens, porque, ou não os quer – em alguns países a taxa de natalidade é de zero por cento -, ou não se quer eles ou são mortos antes que nasçam. Depois, os idosos, que são abandonados ou são deixados de lado e se esquece que são a sabedoria e a memoria de seu povo. São descartados. Agora é a vez dos jovens. A quem resta um lugar? Aos servidores do egoísmo, do deus dinheiro, que está no centro de um sistema que nos esmaga a todos.

Por fim, o respeito pelo outro que se aprende na família traduz-se, na esfera social, em subsidiariedade. Ou seja, a gratuidade, solidariedade, subsidiariedade. Assumir que a nossa opção não é necessariamente a única legítima é um sadio exercício de humildade. Ao reconhecer a parte boa que há nos outros, mesmo com as suas limitações, vemos a riqueza que encerra a diversidade e o valor da complementaridade. Os homens, os grupos têm direito de percorrer o seu caminho, ainda que isso às vezes suponha cometer erros. No respeito da liberdade, a sociedade civil é chamada a promover cada pessoa e agente social, para que possa assumir o seu papel e contribuir, a partir da sua especificidade, para o bem comum. O diálogo é necessário, fundamental para chegar à verdade, que não pode ser imposta, mas procurada com sinceridade e espírito crítico. Numa democracia participativa, cada uma das forças sociais, os grupos indígenas, os afro-equatorianos, as mulheres, os grupos de cidadãos e quantos trabalham para a comunidade nos serviços públicos são protagonistas, são protagonista imprescindíveis neste diálogo, não são espectadores. No-lo dizem com a maior eloquência as paredes, pátios e claustros deste lugar: baseada sobre elementos da cultura Inca e Caranqui, a beleza das suas proporções e formas, o arrojo dos seus diferentes estilos combinados de modo notável, as obras de arte designadas pelo nome de «escola quitenha», condensam um longo diálogo, com sucessos e fracassos, da história equatoriana. O hoje está cheio de beleza, e se é verdade que no passado houve erros e abusos – como negá-lo? – incluído em nossas histórias pessoais, como negá-lo? - podemos afirmar que a amálgama irradia tanta exuberância que nos permite olhar o futuro com muita esperança.

Também a Igreja quer colaborar na busca do bem comum, com as suas atividades sociais e educativas, promovendo os valores éticos e espirituais, sendo um sinal profético que leve um raio de luz e esperança a todos, especialmente aos mais necessitados. Muitos me perguntarão: “Padre, por que falas tanto dos necessitados, das pessoas necessitadas, das pessoas excluídas, das pessoas à margem do caminho?“. Simplesmente porque esta realidade e a resposta a esta realidade está no coração do Evangelho. E precisamente porque a atitude que tomamos frente a esta realidade está inscrita no protocolo pelo qual seremos julgados, me Mateus 25.

Muito obrigado por estarem aqui, por me ouvirem. Peço-vos, por favor, que levem as minhas palavras de encorajamento aos grupos que representais nas distintas esferas sociais. Que o Senhor conceda, à sociedade civil que representais, ser sempre esse campo propício onde se viva em casa, onde se vivam estes valores da gratuidade, da solidariedade e da subsidiariedade. Muito obrigado". (JE)








All the contents on this site are copyrighted ©.