2014-12-29 10:42:00

Tráficos e escravaturas: ontem e hoje - P. Joseph Ballong, historiador


Nos rastos da mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz 2015 que chama a atenção para o flagelo do tráfico humano e da escravatura no mundo de hoje, apresentamos na rubrica “África Global” alguns aspectos relacionados com isso, procurando detectar as linhas de continuidade ou descontinuidade entre os tráficos humanos e escravaturas de ontem e de hoje. Fazê-mo-lo com a ajuda do P. Joseph Ballong, historiador africano, originário do Togo.

Oiça e/ou leia as suas palavras:  

O dia 1 de Janeiro é considerado pela Igreja Dia Mundial da Paz e por essa ocasião tornou-se tradição o Papa emitir, com alguma antecedência, uma mensagem sobre a qual reflectir a fim de  promover a paz no mundo.

Desta vez, o Papa Francisco chama a atenção para as diversas formas de tráficos e escravaturas humanas que afectam a nossa época, intitulando a sua mensagem “Nunca mais escravos, mas sim irmãos”. Uma mensagem a que já nos referimos quando foi publicada no dia 8 deste mês de Dezembro, e que podeis encontrar na íntegra no nosso site em www.radiovaticana.va, clicando seguidamente em “português”.

Nela o Papa começa por fazer notar que o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é um ser relacional que se realiza no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade; para o desenvolvimento do ser humano é fundamental que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente – prossegue o Papa – o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e vocação do ser humano a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade.  Isto acontece  - sublinha o Papa - porque o pecado leva o ser humano a afastar-se de Deus e a recusar a comunhão com o outro, traduzindo-se tudo isso na cultura da servidão, com cortejo de males que dela resultam. Só a conversão aos ensinamentos de Deus Pai, nos pode livrar do pecado.

O Papa vai avante nas oito páginas da sua mensagem, analisando as múltiplas faces da escravatura de ontem e de hoje, indicando algumas das suas causas profundas (a principal das quais a recusa de humanidade no outro), o compromisso comum que devemos assumir para enfrentar este flagelo, e terminando com o convite a globalizarmos a fraternidade em vez da escravidão e da indiferença. Uma mensagem que vos convidamos, mais uma vez, a ler na nossa página web.

Como complemento à leitura desta mensagem e para ajudar na interpretação de algumas publicações nos media que, não raro, identificam pura e simplesmente os tráficos e escravaturas de ontem com os de hoje, sem fazer as devidas distinções, o historiador togolês, P. Joseph Ballong, membro do pessoal da Rádio Vaticano, foi convidado a explicar se há alguma continuidade ou diferença entre os tráficos e as escravaturas de ontem e de hoje. Foi em Novembro passado, na Sala Marconi da Rádio Vaticano,  no contexto da apresentação do romance “Efémera Liberdade” da moçambicana Amilca Ismail. Um livro que conta a história duma jovem trazida da África para a Itália e posta no circuito da prostituição com o seu dramático percurso e desfecho.

Ouçamos então o P. Ballong que começou por fazer uma breve introdução história sobre o Tráfico Transatlantico Negreiro: 

“A escravatura presente de forma não importante nas sociedades africanas muito antes do contacto com os europeus, consiste em exercitar  sobre a uma pessoa qualquer tipo de poder ou então um conjunto de poderes ligados ao direito de propriedade. Nas sociedades africanas onde existia a escravatura, a maior parte dos escravos – pouco numerosos – ocupavam-se do trabalho doméstico e acabavam por ser considerados como filhos da família, podendo nalguns casos, tornar-se herdeiros dos bens familiares.

Pelo contrário, o tráfico é o comércio dos Negros (homens, mulheres e crianças), raptados na África Ocidental, central e austral, vendidos como escravos e transportados principalmente para a América a partir do fim do século XV. Esse comercio praticado pela maior parte das nações europeias, americanas, pelos árabes com a cumplicidade activa dos próprios africanos, sobretudo os chefes, durou até ao fim do século XIX e marcou fortemente a evolução das sociedades da África negra.

Os principais protagonistas europeus deste comercio indigno de qualquer consciência humana, aboliram-no respectivamente em 1833 (Reino Unido) em 1860 (Estados Unidos da América) e 1848 (França). Mas o tráfico clandestino e ilegal continuou nalgumas regiões: o Brasil, por ex., aboliu oficialmente o tráfico em 1850 e a escravatura em 1889. Estão a ver, portanto, que há uma diferença entre tráfico e escravatura.

Depois do fim do tráfico atlântico, um outro tráfico continuou entre a ilha de Zanzibar e o mundo árabe. Alexandria, por ex., é, em meados do século XIX, um dos principais mercados de escravo. Entre 1800 e 1880 cerca de um milhão, seiscentos e cinquenta mil pessoas foram vítimas do tráfico trans-sahariano”.

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Depois desta breve introdução histórica o P. Joseph Ballong passou a fazer a distinção entre tráfico e escravatura:

“Como se vê o tráfico é diferente da escravatura. Mas o tráfico precisa da escravatura, ou então precede a escravatura.  Para que uma pessoa seja propriedade de uma outra pessoa e seja vendida como simples mercadoria, transformada em objecto de troca comercial, é necessário que seja reduzida, ou pelo menos considerada como escrava. Pode existir escravatura sem tráfico como se viu no Estados Unidos no século XIX. O trafico transatlântico é, portanto, diferente da noção contemporânea de tráfico de seres humanos.

O tráfico, ou os tráficos dos Negros foi, ou foram um fenómeno histórico de grande amplitude em razão do número de vítimas – entre 11 e 42 milhões, segundo as diferentes estimativas dos historiadores. Há variações nos números, mas quando se trata de um ser humano, ao qual é negada a própria dignidade, o facto é muito grave em si, porque se nega nesse ser humano, diria, a imagem e semelhança de Deus. Então, neste caso os números e os dados não têm nenhum significado.”

O nosso historiador recordou ainda que esse tipo de trafico utilizou numerosos métodos de submissão da pessoa humana, formas desumanas de transporte em longas distâncias, pois que iam abastecer-se em África e iam vender nas Américas… Era um comercio que comportava muitos riscos, entre os quais o da revolta dos escravos durante a travessia e não só; requeria também muitos investimentos financeiros, por isso, quem o fazia eram pessoas próximas do poder constituído.

“Trafico de seres humanos hoje: antes de mais existe ainda a forma clássica de escravatura. Não devemos iludir-nos! Embora tenham  sido abolidas em todos os países há mais de 20 anos, o tráfico e a escravatura tradicionais existem ainda hoje sob diversas formas. Em alguns países a escravatura sobrevive sob a forma clássica. É o caso da Mauritânia, onde foi oficialmente abolida a 5 de Julho de 1980. Mas segundo dados estatísticos, em 1994, 11 milhões de habitantes, isto é 45% da população deste país africano, eram escravos. Existem também mercados de escravos no Sudão e nalguns países do Golfo Pérsico.”

Não obstante a maior consciência que se tem hoje dos direitos humanos; as convenções internacionais e leis que proíbem a escravatura – sublinham tanto a mensagem do Papa como o P. Ballong – a situação de submissão humana no mundo é ainda impressionante:

“Segundo a ONU e as suas instituições especializadas como a OIT, Organização Internacional do Trabalho, existem hoje no mundo entre 200 e 250 milhões de escravos adultos, dados aos quais é preciso acrescentar cerca de 250 a 300 milhões de crianças e adolescentes de idade compreendida entre os cinco e 14 anos e que estão a trabalhar. Estes dados cobrem, contudo, situações muito diversas no mundo. De forma geral, pode-se dizer que este fenómeno se caracteriza como deslocação de seres humanos para fins comerciais e de lucro económico”.

P. Ballong sublinha que muitas pessoas são deslocadas com a força ou através do engano, falsas promessas duma vida melhor, e envolvidas em situações que nunca teriam imaginado e em que o respeito pela sua dignidade é totalmente espezinhada. E as vítimas dessas situações são essencialmente mulheres e crianças:

“Para o caso das crianças, segundo a OIT e a INTERPOL, há cinco corredores internacionais de crianças objecto de tráfico para prostituição: da América Latina para a Europa e Medio Oriente;  do Sul e Sudeste asiático para a Europa do Norte e Medio Oriente; da Europa para o mundo árabe; da África para a Europa, Canadá e Medio Oriente e, finalmente, o trafico nas zonas de fronteira.”

Mas não é só:

“Pode-se também acrescentar um fenómeno que existe desde há cerca de dez anos para cá na África Ocidental, onde alguns países vão recrutar crianças de 5, 6 anos para trabalhar no sector doméstico. Por vezes raptam-nas à saída da escola e muitas crianças são encontradas infelizmente na Nigéria, onde são reduzidas ao estado de escravatura”.

O P. Joseph Ballong terminou a sua intervenção na apresentação do livro da Amilca Ismail sobre a jovem africana vítima de tráfico e  escravatura para fins sexuais, respondendo à pergunta se há continuidade ou descontinuidade entre os tráficos e escravaturas de ontem e de hoje?

“Continuidade. Pode-se dizer que há antes de mais a negação ou o desprezo da dignidade da pessoa humana criada, mulher e homem, à imagem e semelhança de Deus Pai” .

Para este historiador togolês, o metro com que qualquer individuo ou sociedade deve medir o seu grau de civilização e humanidade é o respeito do ser humano. Mas não obstantes os passos de gigante dados pela humanidade em temos tecnológicos, pode-se dizer o mesmo no que toca ao respeito da dignidade humana? – Perguntou-se.

No que toca à descontinuidade, o P. Ballong disse que se pode eventualmente evocar os dados muito impressionantes, o modo sistemático, a brutalidade das operações de captura e as condições desumanas de vida e de transporte que acompanharam o Trafico Transatlântico de Negros, cujos principais protagonistas eram nações cristãs para estabelecer graus de culpabilidade e de gravidade ontem e hoje. Mas recorrer a isso para estabelecer a diferença com os tráficos e escravaturas modernas é, segundo ele, um falso problema, na medida em que quando se trata dos direitos inalienáveis da pessoa humana, os números não têm, a seu ver, muito sentido.

“A dignidade humana é única por todo o lado, em toda e qualquer época, embora hoje parece ser mais sentida”.

Palavras do P. Joseph Ballong, historiador togolês, autor de vários estudos sobre o Tráfico Negreiro Transatlântico e a Escravatura. Falava dos tráficos e escravaturas de ontem e de hoje no mundo. Um tema que vêm aqui a propósito da mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 2015.  








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