Editorial: Ferida aberta


Cidade do Vaticano (RV) - Sim, a escravidão ainda existe no mundo de hoje: diante da afirmação da existência dessa chaga que atinge a humanidade do século 21, nesta semana tivemos no Vaticano mais um evento histórico. Líderes religiosos de todo o mundo estiveram reunidos com o Papa Francisco na última terça-feira, 02,  Dia Internacional para a Abolição da Escravidão, para a assinatura de um documento contra a escravidão moderna e o tráfico de pessoas. Tratou-se de uma iniciativa promovida pela Organização Global Freedom Network (GFN), sob inspiração do Papa Francisco e do Primaz Anglicano, Justin Welby.

De fato, se olharmos para o relógio da história poderemos notar que essa foi a primeira vez que  católicos, ortodoxos, anglicanos, judeus, muçulmanos, budistas e hinduístas estiveram reunidos dentro do Vaticano, mais precisamente na Casina Pio IV, para, além de condenar esse horror dos tempos modernos, assumir um compromisso, em nome das religiões e pela eliminação, até 2020, de toda forma  de escravidão, em todo o mundo e para sempre. Papa Francisco assinou o documento com a certeza de que a Igreja Católica está na linha de frente para eliminá-la.

No seu discurso forte e incisivo, Francisco condenou todas as formas de escravidão moderna. Citando as palavras de Cristo, “garanto a vocês que cada vez que fizeram isso a um dos meus irmãos, fizeram a mim também”, sentenciou que “qualquer relação discriminatória que não respeite a convicção fundamental que o outro é um semelhante, constitui um delito e tantas vezes, um delito aberrante”. O Santo Padre, referindo-se às palavras da declaração deu o tom do documento: “declaramos em nome de todos e de cada um dos nossos credos que a escravidão moderna, identificada pelo tráfico de seres humanos, trabalho forçado, prostituição, tráfico de órgãos, é um crime contra a humanidade”. Sim, um crime contra a humanidade.

Esse crime contra a humanidade se disfarça em aparentes situações normais mas, na realidade, faz as suas vítimas na prostituição, no tráfico de pessoas, no trabalho forçado, no trabalho escravo, na mutilação, na venda de órgãos, no tráfico de drogas, no trabalho infantil. “Se esconde atrás de portas fechadas, em casas privadas, nas ruas, nos automóveis, nas fábricas, no campo, em barcos pesqueiros e em muitos outros lugares”, descreveu Francisco.

Um relatório mundial da Walk Free Foundation, uma organização australiana para os direitos humanos, estima que 29,8 milhões de pessoas nascem em condições de escravidão, sendo vendidas para tráfico, exploração sexual ou trabalhos forçados. Mas a esse número somam-se mais de 168 milhões de menores que trabalham no mundo.

O tema está tão presente no pensamento do Papa que ele o escolheu para o Dia Mundial da Paz que celebraremos no próximo dia 1º de janeiro de 2015: “Não mais escravos, mas irmãos”.

A escravidão representa “um golpe de morte para tal fraternidade universal e, por conseguinte, para a paz” assinalou o Pontifício Conselho Justiça e Paz (CPJP), organismo da Santa Sé, quando apresentou o tema do Santo Padre para o dia Mundial da Paz. “Na verdade, a paz existe quando o ser humano reconhece no outro um irmão ou irmã com a mesma dignidade”, acrescenta a nota oficial. A escravidão é uma terrível ferida aberta no corpo da sociedade contemporânea.

Também no Brasil essa chaga está presente. Já nos anos 70, o bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia denunciara publicamente a existência do trabalho escravo no nosso país. No ano passado, entre os últimos casos evidenciados e comprovados está o de 111 homens que foram resgatados de condições análogas a de escravos. Eles estavam trabalhando em obras para a Copa do Mundo nas proximidades do Aeroporto de Cumbica, São Paulo.

Vivemos hoje na ilusão de que a escravidão não existe, porque acreditamos que ela e o tráfico de seres humanos são coisas do passado; mas é um fato da atualidade e são pessoas que padecem sofrimentos que vão além da nossa imaginação, com torturas e crueldades indizíveis.

O que ocorreu nesta semana no Vaticano é mais um passo para chegar ao tão desejado respeito da dignidade humana. A declaração assinada pelo Papa junto com líderes de várias religiões é um estímulo também para os governos atuarem dentro de seus territórios, políticas férreas para tutelar os mais fracos e indefesos. Na declaração comum destaca-se que todos os homens são iguais, devendo ser reconhecidos como tal por todas as nações. Um auspício que brota do coração da cristandade para os homens de boa vontade em todo o mundo. Um apelo ao reconhecimento da inviolável dignidade de cada pessoa que exige a superação de todas as desigualdades e discriminações. (Silvonei José)

 








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