Rio de Janeiro (RV) - Com o início da Copa do Mundo algumas mensagens chamam
nossa atenção: o Papa Francisco nos recordou que é um tempo de ser solidário e ocasião
de diálogo, de compreensão, de enriquecimento humano recíproco. Ele lembra que o futebol
deveria ser “uma escola para a construção de uma cultura de encontro, que permita
a paz e a harmonia entre os povos”.
A nossa Conferência Episcopal, em sua mensagem
“jogando pela vida”, recorda que a sociedade brasileira é convidada a aderir ao projeto
“Copa da Paz” e à campanha “jogando a favor da vida – denuncie o tráfico humano”.
Recorda que “somos convocados para formar um único time, no qual todos seremos titulares
para o jogo da vida que não admite espectadores.”
A nossa Arquidiocese, detentora
dos símbolos cristãos das Olimpíadas (recebemos de Londres), iniciou a campanha pelos
100 dias de paz que, embora seja um tema para 2016, já começamos a trabalhar neste
ano.
Por isso, diante de tanta intolerância que assistimos nos estádios, tanta
violência de uns contra outros, creio que seria bom refletir sobre essa questão ao
vivermos este tempo de Copa do Mundo e a nossa missão neste tempo de tantas mudanças.
A
Copa do Mundo de Futebol é um grande evento que chama a atenção de muitas pessoas
desejosas de acompanharem as partidas desse esporte surgido, em sua atual modalidade,
na Inglaterra do século XIX.
Não obstante à festa, existem, de modo ora mais
explícito ora mais velado, episódios de racismo contra torcedores ou jogadores estrangeiros
que acompanham ou participam de algumas pelejas futebolísticas. Daí a oportunidade
de abordarmos a questão neste artigo à luz do documento “A Igreja e o racismo” que,
publicado pela Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, da Santa Sé, em 3 de novembro
de 1988, conserva plena atualidade.
Entende-se por racismo “a consciência de
pretensa superioridade biológica de determinada raça em relação às outras”, atitude
que, sem dúvida, gera disputas irracionais entre seres humanos feitos à imagem e semelhança
de Deus a fim de serem co-construtores de um mundo de harmonia, fraternidade, justiça
e paz, em benefício de todos, e não fratricidas, como querem as ideologias racistas.
O
Documento da Santa Sé historia para nós a vergonhosa chaga do racismo, demonstrando
que a questão tem início, em linguagem bíblica, em Gênesis 11, quando, como fruto
do pecado, os homens, desligados de Deus, mas cheios de si, tentam construir uma torre,
a de Babel, cujo vértice toque os céus. Esse gesto insano, mas fracassado, de uma
pretensa superioridade que desafia o Criador se voltará, em breve, também contra o
próximo, pois pensa o orgulhoso: “não preciso de Deus, nem do meu semelhante. Sou
auto-suficiente, superior a tudo e a todos. O mundo, por conseguinte, está em minhas
mãos e tudo o que há nele me é inferior e está sob o meu poderoso domínio”.
Registra-se,
por exemplo, que na antiguidade Greco-romana não pareceu reinar o mito defensor de
raças superiores e inferiores, embora existisse por parte dos povos vencedores a escravidão
de povos vencidos em guerra. A ocorrência se dava, no entanto, devido a questões militares
e não raciais.
Entre os hebreus havia a consciência de que Deus os amava de
modo especial devido à escolha gratuita que fizera por eles. Era um povo diferente
de grande parte dos seus vizinhos idólatras, mas mesmo assim a separação não podia
ser considerada racismo, pois se fundava em motivos religiosos e não biológicos. Ao
contrário, os profetas, embora conscientes da eleição de Israel, entendem a mensagem
de Deus como universal e, por isso, apta a chamar todos os homens e mulheres da Terra
à mesma fé.
O Cristianismo confirmou e plenificou essa universalidade, uma
vez que a mensagem do Evangelho devia chegar a todos os povos (cf. Mt 28,19). Daí,
a Idade Média não conheceu um racismo propriamente dito, mesmo que os povos se dividissem
entre cristãos, judeus e outros, isso levou os judeus a sofrerem muitos desprezos,
mas por critérios mais uma vez religiosos, não biologicistas.
Nos séculos XV
e XVI, ocorreram as descobertas de novas terras do chamado “Novo Mundo”, que levou
a abusos de alguns comerciantes para com os povos recém-encontrados. Sim, alegando
a inferioridade dos indígenas e negros, se recorreu à escravização dessas pessoas.
O tema da escravidão ganhou forças e mereceu a condenação de homens da Igreja, como
Bartolomeu de Las Casas, bispo dominicano; Francisco de Vitória e Francisco Soarez,
renomados teólogos, que muito insistiram na doutrina da igualdade fundamental entre
todos os homens e mulheres do mundo.
Em nome da Igreja, o Papa Paulo III, na
Bula Sublimis Deus, de 2 de junho de 1537, denunciava aqueles que afirmavam
serem os habitantes das novas terras considerados como animais irracionais e que,
por isso, poderiam ser usados para proveito de terceiros. Textualmente, o mesmo Pontífice
afirmava: “No desejo de remediar o mal que foi causado, Nós decidimos e declaramos
que os chamados indígenas, bem como todas as outras populações com que no futuro a
cristandade entrará em relação, não deverão ser privados de sua liberdade e dos seus
bens – não obstante as alegações contrárias –, ainda que eles não sejam cristãos e
que, ao contrário, deverão ser deixados em pleno gozo da sua liberdade e dos seus
bens”.
Esse documento foi quase ignorado, pois devido à Lei do Padroado, que
fazia do poder temporal (O Estado) ser como que um protetor do poder espiritual (A
Igreja), o governo civil invadia, por interesses escusos, o campo de ação eclesiástica
e sabotava a publicação e a difusão dos pronunciamentos dos Papas ou Bispos. No
século XVIII, aparece a ideologia racista contrária aos ensinamentos da Igreja, pois
se justificaria na cor da pele e nos caracteres corporais do indivíduo, devido a heranças
hereditárias, a existência de raças inferiores e superiores. Aqui aparece pela primeira
vez o termo “raça”, a fim de promover classificações de acordo com pressupostos biológicos
a dividir os seres humanos entre raças fortes e raças fracas, de cuja mistura resultaram
as quedas das grandes civilizações, dizia-se.
Fundamentado nessa tese, pretensamente
científica, surgiu a eugenia, que alimentou o nazismo alemão do século XX menosprezador
das consideradas raças inferiores, tais como judeus e ciganos, exterminados aos milhões
em campos de concentrações junto a pessoas deficientes físicas ou mentais. Ora, a
Igreja mais uma vez ergueu sua voz pelas palavras do Papa Pio XI, na Encíclica Mit
Brennender Sorge (Com candente preocupação), de 1937, ao asseverar que “todo aquele
que toma a raça ou o povo ou o Estado..., ou qualquer outro valor fundamental da comunidade
humana... para os retirar da sua escala de valores... e os divinizar com um culto
idolátrico, perverte e falsifica a ordem das coisas por Deus criada e estabelecida”
(Acta Apostolica Sedis XXIX, 149).
Também o Papa Pio XII, em sua Radiomensagem
de Natal de 1942, afirmou que entre as pretensões do positivismo jurídico, o direito
que de o homem seja a instância máxima de legislação, “se deve incluir uma teoria
que reivindica para uma determinada nação, raça ou classe o instituto jurídico, imperativo
supremo e norma sem apelo... O anseio de uma ordem social nova e melhor, a humanidade
o deve a centenas de milhares de pessoas que, sem culpa alguma, mas simplesmente porque
pertencem a tal raça ou nacionalidade, estão destinadas à morte ou a um definhamento
progressivo” (Acta Apostolica Sedis XXXV, 1943, 14.23).
Ainda hoje,
essa forma de pensamento não está erradicada e se associa a outras não menos nocivas,
dentre as quais o “apartheid”, que oprimiu e dizimou muitos negros sob o poder branco
na África e gerou fortes desavenças também nos Estados Unidos; a perseguição a populações
nativas de alguns países contra as quais se praticou ou se tenta praticar um verdadeiro
genocídio; a limitação dos direitos de minorias à prática religiosa (lembremo-nos
das perseguições aos cristãos em terras do Oriente); o etnocentrismo, prática que
leva um povo a se auto-afirmar, tentando menosprezar ou mesmo aniquilar o outro, ato
que, infelizmente, acontece também em não poucas torcidas de futebol dentro de um
mesmo país ou no confronto de uma nação para com a outra; populações que foram desinstaladas
de seus terrenos e vivem, forçadamente, como nômades em outros locais ou, então, sofrem
segregação dos antigos habitantes locais ao se mudarem de uma região para outra dentro
do mesmo país ou para o estrangeiro, ou também a tentativa, já consumada, de se criarem
cidadãos de primeira e segunda classe por meio de manipulações genéticas em laboratórios,
separando os que merecem viver e os que não merecem devido às suas características
físicas e psíquicas, pré-selecionadas, lamentavelmente, às vezes, pelos próprios pais.
Ora,
após a apresentação desse quadro sombrio e o perigo, pensamos em atos mais ou menos
contundentes e vergonhosos de racismo que possam ocorrer, de algum modo, na Copa do
Mundo. Daí, importa saber que a Igreja defende a dignidade do gênero humano independentemente
do país em que ele viva, da posição social, cultural ou de saúde que tenha. Ensina
que todos fomos criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27) e, em Deus, há acolhida
para com todos, conforme fez o Senhor Jesus (cf. Mt 25,38-40), e não distinções segregatórias
(Gl 3,11.28), de modo a não haver mais discriminações devido à raça, nacionalidade
ou sexo, haja vista que a mulher também foi marginalizada na história (cf. Lumen
Gentium n. 1 e n. 32).
Contudo, a Igreja está ciente de que não é só com
discursos que se caminha na eliminação do racismo, mas, sim, com o combate constante
da fonte onde ele nasce e cresce, ou seja, no coração humano. É aí que devem ser fortalecidas
as convicções de que é preciso respeitar as diferenças a fim de se viver em fraternidade
que leva, necessariamente, à prática da solidariedade ou da ajuda ao outro, independentemente
de quem seja ele.
No dia a dia, a Igreja pede disponibilidade para a ajuda
mútua entre todos, a defesa das vítimas de racismo e a denúncia dessa prática desumana,
a conscientização de que somos todos iguais em nossa dignidade humana, e isso deve
ser ensinado na família, na escola ou nos meios de comunicação, defende a criação
ou a manutenção de leis que se oponham ao menosprezo do próximo por razões raciais,
além de estimular a elaboração de grandes documentos em nível internacional, nos meios
civis e eclesiásticos, denunciando a prática das segregações raciais ou prevenindo-as.
Possam,
pois, esses dados históricos e doutrinários levar-nos a entender que somos, apesar
das diferenças acidentais, todos irmãos e devemos encontrar, como tem insistentemente
lembrado nosso querido Papa Francisco, muito mais o que nos une para o diálogo do
que aquilo que nos desune e pode levar a graves contendas.
Nesse contexto,
em que pesem todas as manifestações legítimas contra os gastos com a construção de
estádios para a Copa do Mundo em nosso país e as justas aspirações do povo brasileiro
por maior transparência na administração pública, não se deve hostilizar os estrangeiros
que aqui vêm, uma vez que não têm culpa de nossos problemas internos.
Façamos,
pois, jus aos nossos dotes peculiares de sermos bons acolhedores dentro de nossa cordialidade,
que faz caber nesta nação-continente, de modo harmonioso, uma parcela do mundo, e
isso muito nos enriquece social e culturalmente.
Peçamos a Deus, por intercessão
da Senhora Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil que, sem deixarmos de cobrar nossos
direitos dos que realmente nos devem explicações, saibamos não misturar as coisas
e acolhermos bem nossos visitantes, tendo presente a obra de misericórdia ensinada
pelo Cristo Jesus: “Fui peregrino e me hospedastes” (Mt 25).
Orani João,
Cardeal Tempesta, O. Cist. Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio
de Janeiro, RJ