Dom Marcuzzo: as questões envolvidas na viagem do Papa
Nazaré (RV) - Aguardam com expectativa e curiosidade a chegada do Papa Francisco,
os cerca de 450 mil cristãos que vivem na Terra Santa (Jordânia, Palestina, Israel).
Uma confirmação de que se sentem parte viva da comunidade universal da Igreja. Os
cristãos que vivem em Israel, cerca de 130 mil, foram atingidos recentemente por ameaças
de grupos fundamentalistas de matriz judaica, recebendo, no entanto, a solidariedade
quer de muçulmanos como judeus. O Vigário do Patriarcado Latino de Jerusalém para
Israel e Nazaré, Dom Giacinto-Boulos Marcuzzo, foi entrevistado pela Rádio Vaticano.
RV:
O Papa Francisco irá à Terra Santa após a histórica viagem de Bento XVI, de João Paulo
II, e antes ainda, de Paulo VI. Como mudou, se é que mudou, a percepção do povo em
relação a estas peregrinações?
Dom Marcuzzo: “Cada peregrinação mantém
aspectos comuns às precedentes, acrescentando outros especiais. Eu pude assistir,
como seminarista, à viagem de Paulo VI em 1964. Após, como organizador, participei
das de João Paulo II e Bento XVI. Também a do Papa Francisco será uma peregrinação
de “oração e penitência” – como dizia sobretudo Paulo VI – e pastoral, isto é, de
contato pessoal com as pessoas do lugar. Naturalmente, uma viagem do Papa comporta
também aspectos das relações diplomáticas que ele mantém com os Chefes de Estado,
com os quais entrará em contato, isto é os da Jordânia, Palestina e Israel. Estes
aspectos estão presentes também hoje, assim como estavam presentes nas ocasiões precedentes.
A diferença é que desta vez o Estado de Israel fez imposições ‘sine qua non’ e pediu
que fossem introduzidos novos aspectos diplomáticos e protocolares. Se terá, por exemplo,
a visita ao Muro das Lamentações, ao Grande Rabinato e a Yad Vashem, mas acrescentaram
ainda a deposição de uma coroa de flores no túmulo de Herzl, além das duas visitas
oficiais ao Chefe de Estado e o encontro com Netanyahu. Estas condições ocuparam muito
espaço, tornando impossível uma visita do Papa à Nazaré, e em parte, limitando o aspecto
pastoral da visita em favor do aspecto protocolar, que naturalmente, pode ser positivo.
Até mesmo os bispos da Igreja local da Terra Santa, exceto o séquito papal e o Patriarca,
não poderão participar de todos estes momentos da manhã da segunda-feira, 26, inclusive
a visita à Mesquita de Omar e o encontro com os líderes muçulmanos. Sentimos muito,
sobretudo, que em Jerusalém os fiéis cristãos não poderão ver o Papa, porque - quando
e onde passa o Papa, como disse a polícia -, existirá restrição à circulação. Terá
somente um encontro no Getsêmani com os sacerdotes, religiosos e seminaristas, e a
missa no Cenáculo, além do momento central da peregrinação: o encontro no Santo Sepulcro
com o Patriarca Ecumênico Bartolomeu e outros Patriarcas e Bispos Orientais. O aspecto
pastoral, porém, será muito bem evidenciado durante a passagem por Amã, na Jordânia
e em Belém”.
RV: Que impacto pode ter a visita do Papa nas relações
entre as religiões presentes na Terra Santa?
Dom Marcuzzo: “Durante
esta viagem acompanharão o Papa, como membros do séquito, um rabino e um chefe muçulmano
argentinos. Na Terra Santa terá certamente contatos com muçulmanos e judeus, mas separadamente.
O aspecto do diálogo inter-religioso juntos, a três vozes, desta vez não existirá,
ou existirá de forma reduzida, em relação às precedentes visitas dos Pontífices, exclusivamente
por motivos de tempo. Não existirá, por exemplo, um momento comovente como o encontro
de 14 de maio entre o Papa Bento XVI e os líderes das comunidades cristãs, judaicas,
muçulmanas e drusas aqui em Nazaré, que podemos chamar de “capital da unidade”, pois
aqui, Deus e o homem fizeram a sua aliança. Mas nestes dias de preparação da visita
do Papa existiram momentos de solidariedade inter-religiosa impressionantes. Após
os atos de fundamentalismo e ameaças verificados contra nós, fiquei fechado na minha
sala no Vicariato Patriarcal, recebendo o fluxo contínuo, da manhã à noite, de cristãos,
mas também de muitos muçulmanos, de alguns judeus e drusos, que vinham manifestar
a sua solidariedade. Foi um momento muito profundo e construtivo, de amizade, participação
e proximidade àqueles que foram ameaçados. Foi um momento inter-religioso muito forte,
sobretudo entre cristãos e muçulmanos. Para dar dois exemplos, até mesmo o famoso
Xeique Raed Salah veio aqui com amigos e colegas. A Mesquita Branca de Nazaré dedicou
a oração de sexta-feira à solidariedade com os cristãos ameaçados. Vale a pena citar
textualmente uma parte daquele discurso: “Os cristãos são filhos desta terra, amam
esta terra, querem viver nesta terra para continuar a servir a todos, a amar a todos
e a difundir a cultura do amor e da vida”. A peregrinação do Papa Francisco contribuirá
para revigorar e amadurecer esta necessidade de diálogo e de cooperação inter-religiosa
e a isolar o ímpeto de fanatismo e de intolerância”.
RV: Portanto,
as ameaças, involuntariamente, desencadearam gestos de uma solidariedade nova, inesperada...
Dom
Marcuzzo: “Certamente. Estes atos de vandalismo e de ameaças não pré-anunciam
nada de bom, mas por outro lado, o testemunho de solidariedade foi um momento de coexistência
pacífica, de verdadeiro diálogo inter-religioso e de apoio mútuo entre todas as comunidades.
Foi uma feliz preparação indireta à vinda do Papa Francisco. Mesmo ontem, por exemplo,
no Knesset de Israel (ndr – Parlamento israelense) e “templo” do judaísmo, vivemos
um momento muito significativo de comemoração solene de São João XXIII, um Papa muito
apreciado pelos judeus porque mudou a tradicional oração “pérfidos judeus” da Sexta-feira
Santa, encontrou Jules Isaac dando origem à abertura das relações entre a comunidade,
mas sobretudo iniciou o Concílio Vaticano II que é a origem da Declaração ‘Nostra
Aetate’ (conhecida quase de cor por alguns rabinos) e porque, quando era Núncio em
Istambul, como recordou de maneira especial Isaac Herzog, filho do ex-Presidente de
Israel, Haim Herzog, e neto do Rabino Chefe, Isaac Herzog, contribuiu para salvar
muitos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Também esta iniciativa parlamentar
constitui uma ótima preparação, mesmo se indireta, à peregrinação do Papa”.
RV:
Quem são e quantos são os seus fiéis em Israel? Como vivem a fé inseridos num contexto
de maioria judaica?
Dom Marcuzzo: “Primeira premissa: nós consideramos
sempre em modo unitário os cristãos de Israel, da Palestina a aqueles além do Rio
Jordão e tentamos também, nos limites do possível, de não isolar os católicos dos
outros cristãos, sobretudo a partir de quando celebramos o belíssimo Sínodo pastoral
diocesano concluído no ano 2000. Graças àquele Sínodo consideramos “o ser e o trabalho
juntos” como absolutamente prioritário. Em toda a Terra Santa existem cerca de 450
mil cristãos, dos quais 130 mil em Israel. Entre estes existem descendentes da primeira
comunidade cristã de Jerusalém, descendentes daqueles que viveram com Jesus. Em Israel
somos uma pequena minoria que sofre muito, por diversos motivos, mas encontra encorajamento
e força no seu fazer parte do grande corpo da Igreja universal. É por este motivo
que a peregrinação do Papa é de grande importância para nós: nos faz ver, sentir,
entender de sermos parte deste corpo que é a Igreja. Não obstante as dificuldades,
esta comunidade permanece fiel aos Lugares Santos, à Igreja e ao Evangelho. Todavia,
existe uma forte tentação para a minoria cristã da Terra Santa: a emigração”. (JE)