Rio de Janeiro (RV) - O tempo da Quaresma é uma ótima oportunidade para, dentro
do clima da Campanha da Fraternidade, refletirmos sobre a importância da caridade,
tema deste ano em nossa Arquidiocese.
A caridade tem um significado muito rico
para quem a estuda em sua origem etimológica, pois é, especialmente na linguagem cristã,
sinônimo de amor. Os evangelistas, que escreveram em grego, valorizam de modo grandioso
o termo ágape, que passou para o latim como caritas, caritatis, em português, caridade.
Aqui,
porém, uma questão já se impõe, seja ao estudioso, seja ao leitor comum: se caridade
e amor se mesclam, de que tipo de amor estamos falando? Sim, pois há na língua grega
os termos éros e philia também usados para designar amor. Por esta razão é bom distingui-los
bem um do outro, a fim de melhor entendermos o valor do ágape.
Com efeito,
éros designa um tipo de amor psíquico capaz de levar o ser humano a uma ávida busca
de um bem concreto disposto a, ao menos aparentemente, satisfazer seus desejos não
raras vezes mesquinhos. Associa-se, então, a partir daí, esse tipo de amor à concupiscência
ou ao desejo meramente sentimental e carnal de alguém. É o erotismo, prática comum
numa sociedade pansexualista ou erotizada como a nossa. Tal tipo de amor não pode
ser modelo para o homem e a mulher, pois aprisiona o ser humano em vez de libertá-lo.
Philia, por sua vez, recorda o amor de amigo, de benevolência, de bem-querer,
capaz de despertar a simpatia no outro. Amo para ser amado ou, pior, amo porque sou
amado. Nesse conceito, há uma considerável superação do éros, mas ainda não se chega
à compreensão plena do diferencial trazido pela mensagem cristã. Daí a pergunta de
Jesus: Se amais os que vos amam, que recompensa tereis? Afinal, todos os outros povos
já agiam segundo essa filosofia.
Aristóteles, por exemplo, ensina, cerca de
300 anos antes de Cristo, em sua famosa obra intitulada Ética a Nicômaco, que o legislador
deve se preocupar muito mais em despertar a compreensão mútua entre os cidadãos do
que fazer com que estes observem a justiça, uma vez que esta ordena apenas os atos
exteriores, ao passo que a natureza une os corações. E vai além: a justiça nem seria
necessária se entre os seres humanos reinasse a verdadeira amizade, ou philia.
Isso
é belo, mas a grande novidade do Evangelho, no entanto, é muito maior, pois nos traz
o ágape, amor fraterno, serviçal, desinteressado, que se dirige diretamente ao ser
amado ou àquele que amamos sem esperar nada em troca. Pode-se dizer que aqui encontramos
o verdadeiro sentido do amor. Com esses pressupostos, vai a Bíblia nos afirmar que
Deus é amor. E mais: Ele é o Amor que nos amou primeiro a ponto de enviar, conforme
refletimos de um modo especial no tempo da Quaresma, o seu próprio Filho para morrer
por nós e com isso ensinar, na prática, que ninguém tem maior prova de amor do que
aquele que dá a vida por seus amigos.
Que doloroso, mas também que inefável
esse ato de amor de Cristo no Calvário, lugar onde, por assim dizer, Ele coroa ou
fecha com chave de ouro sua entrega total a Deus e ao próximo em sua caminhada terrena!
Cumpre-se, literalmente, n’Ele o que, mais tarde, João ensinará de modo brilhante:
quem diz que ama a Deus, mas não ama seu irmão é mentiroso. E aqui cabe, certamente,
a brilhante definição de Santo Agostinho de Hipona, Padre da Igreja no século IV,
ao escrever que “amar é querer o bem do outro”.
Ora, quem só deseja o bem do
próximo jamais lhe causará algum mal ou dano, por isso o santo de Hipona diz, de modo
simples e lapidar: “Ama e faze o que quiseres”. Quem ama de verdade é realmente livre
e, embora, por sua natureza decaída pelo pecado, possa fazer o mal que nem sempre
quer, procurará o bem, a justiça, a fraternidade, a partilha, o acolhimento etc. Nunca
a injustiça, a divisão, muitas vezes fratricida, o apego mesquinho, a rejeição ao
irmão ou à irmã que busca apoio nos momentos difíceis de sua vida material ou espiritual.
Afinal,
como gosta de frisar o nosso Papa Francisco, além das segregadoras periferias geográficas,
também existem as “periferias existenciais”, que precisam ser atingidas por todos
nós que nos propomos a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo no século XXI,
sabendo que algumas vezes as periferias geográficas se confundem com as existenciais
e outras vezes não.
Há quem viva os seus diversos conflitos não só nos subúrbios,
nas comunidades pacificadas ou não, nas zonas rurais ou ribeirinhas, por exemplo,
mas também nos condomínios de luxo, nos grandes centros financeiros, nos arranha-céus
de nossas metrópoles e somos chamados a, de algum modo, estar com eles a fim de lhes
mostrar esse diferencial da caridade que Cristo viveu e nos ensinou a viver há mais
dois mil anos.
Alguns poderiam, no entanto, objetar neste momento da reflexão:
tudo isso que está escrito aqui não me surpreende tanto, afinal, nunca é demasiado
falar do amor enquanto caridade, mas, no dia a dia, o que eu posso fazer para tornar
prático tudo isso? Ora, a Arquidiocese do Rio de Janeiro oferece e continuará a oferecer,
especialmente neste Ano da Caridade, iniciado em 20 de janeiro, várias oportunidades
que o ajudem na realização de seus gestos concretos em favor dos mais necessitados,
material ou espiritualmente.
Como regra geral, porém, fica uma grande lição
dos primeiros cristãos. Está nos Atos dos Apóstolos, ao relatar que todos os fiéis
se reuniam e colocavam tudo o que possuíam em comum, vendiam as propriedades e bens
e dividiam-nos conforme as necessidades de cada um. Consequência: não havia necessitado
algum entre eles. Daí, Tertuliano, escritor cristão do século II, poder registrar
que os pagãos olhavam para os seguidores de Cristo e diziam: “Vede como eles se amam”.
Amam
com o amor fraterno, serviçal, desinteressado e que, por isso, é capaz de chamar a
atenção dos que observam de fora. Sim, longe de fazerem meros discursos vazios assemelhados
a uma politicagem barata, mas que pode ter consequências caras, os cristãos dos primeiros
séculos agiram com verdadeiro heroísmo, a fim de não deixarem seus semelhantes perecerem
na miséria devido à ganância de uns poucos.
A missão dos verdadeiros seguidores
do Evangelho, todavia, não parou lá. Ao longo da história, homens e mulheres imbuídos
do amor cristão demonstraram ao mundo, com palavras e exemplos, que para seguir a
Cristo é necessário pensar e agir em favor do irmão necessitado. Sua carência nos
provoca, desinstala, desafia a nos colocarmos a serviço de acordo com as necessidades
do tempo e do lugar em que estamos inseridos. Se olhamos para um Francisco de Assis
a repartir o pouco que lhe davam com os mais pobres entre os pobres, não é possível
que nos calemos. Muito pelo contrário, é necessário olhar ao nosso redor e perguntar:
hoje também não temos quem necessite da nossa caridade? O que posso fazer pelos que
mendigam o mínimo necessário para sobreviverem? Qual é a minha atitude ante o flagelo
das drogas lícitas e ilícitas que corroem nossos jovens, adolescentes e até, infelizmente,
crianças?
São perguntas que podem parecer simples, mas que exigem urgentes
respostas dentro do conceito do verdadeiro amor que hoje refletimos.
Orani
João, Cardeal Tempesta, O.Cist. Arcebispo Metropolitano de São Sebastião
do Rio de Janeiro