Deus Trindade, unidade dos homens - Documento da Comissão Teológica Internacional
sobre o monoteísmo cristão contra a violência
APRESENTAÇÃO
O texto de reflexão teológica que apresentamos destina-se a evidenciar
alguns aspectos do discurso cristão sobre Deus que, no contexto actual, exigem um
esclarecimento teológico específico. A ocasião imediata deste esclarecimento é a teoria,
exposta com argumentos de índole diversa, segundo a qual existe uma relação necessária
entre o monoteísmo e as guerras de religião. A discussão em torno deste liame revelou
numerosos motivos de incompreensão da doutrina religiosa, a ponto de obscurecer o
autêntico pensamento cristão do único Deus. Poderíamos resumir o fito do nosso
discurso numa dupla pergunta: (a) Como é que a teologia católica se pode confrontar
criticamente com a opinião cultural e política que estabelece uma relação intrínseca
entre monoteísmo e violência? (b) Como é que a pureza religiosa da fé no único Deus
se pode reconhecer como princípio e fonte do amor entre os homens? A nossa reflexão
pretende apresentar-se em chave de testemunho argumentado, e não de contraposição
apologética. A fé cristã vê e reconhece, de facto, na excitação à violência em nome
de Deus a máxima corrupção da religião. O cristianismo desemboca nesta convicção a
partir da revelação da própria intimidade de Deus, que nos chega através de Jesus
Cristo. A Igreja dos crentes é consciente do facto de que o testemunho dessa fé exige
ser honrado por uma atitude de conversão permanente: que implica igualmente a "parresía"
(ou seja, a franqueza corajosa) da necessária autocrítica.
No Capítulo I,
propusemo-nos clarificar o tema do "monoteísmo" religioso na acepção que recebe e
adquire em certas orientações da hodierna filosofia política. Estamos conscientes
de que tal evolução exibe, hoje, um espectro muito diferenciado de posições teóricas,
que vão desde o fundo clássico do ateísmo dito humanista às formas mais recentes do
agnosticismo religioso e do laicismo político. A nossa reflexão visaria, antes de
mais, sublinhar que a noção de monoteísmo, não destituída de significado para a história
da nossa cultura, permanece ainda demasiado genérica, quando se utiliza como cifra
de equivalência das religiões históricas que professam a unicidade de Deus (identificadas
como Judaísmo, Islamismo, Cristianismo). Em segundo lugar, formulamos a nossa reserva
crítica em face de uma simplificação cultural que reduz a alternativa à escolha entre
um monoteísmo necessariamente violento e um politeísmo supostamente tolerante. De
qualquer forma, nesta reflexão sustém-nos a convicção, que por motivos vários consideramos
partilhada por muitíssimos contemporâneos nossos, crentes e não-crentes, de que as
guerras interreligiosas, como também a guerra contra a religião, são de todo insensatas.
Em seguida, como teólogos católicos e à luz da verdade de Jesus Cristo, procurámos
ilustrar o nexo entre revelação de Deus e humanismo não-violento. Fizemo-lo mediante
a reexposição de algumas implicações da doutrina peculiarmente apropriadas para iluminar
o debate actual: quer no tocante à autêntica compreensão da confissão trinitária do
Deus único, quer no que diz respeito à abertura da revelação cristológica para a recuperação
do vínculo entre os homens.
No Capítulo II, indagamos o horizonte da fé bíblica,
com especial atenção ao tema das suas "páginas difíceis": aquelas em que a revelação
de Deus surge envolvida nas formas da violência entre os homens. Tentamos identificar
os pontos de referência que a própria tradição escriturística realça – no seu seio
– para a interpretação da Palavra de Deus. Com base neste reconhecimento, oferecemos
um primeiro esboço de enquadramento antropológico e cristológico dos desenvolvimentos
da interpretação do tema, requeridos pela condição histórica actual. No Capítulo
III, propomos um aprofundamento do evento da morte e da ressurreição de Jesus, na
chave da reconciliação entre os homens. A oikonomia é aqui essencial à determinação
da theologia. A revelação inscrita no acontecimento de Jesus Cristo, que torna universalmente
relevante e apreciável a manifestação do amor de Deus, permite neutralizar a justificação
religiosa da violência com base na verdade cristológica e trinitária de Deus.
No
Capítulo IV, a nossa reflexão empenha-se na clarificação das aproximações e implicações
filosóficas do pensamento de Deus. Abordam-se aqui, antes de mais, os pontos de discussão
com o ateísmo actual, largamente presente e concentrado nas teses de um naturalismo
antropológico radical. Por fim – também em prol do confronto interreligioso sobre
o monoteísmo – propomos uma espécie de meditação filosófico- teológica sobre a integração
entre a revelação da íntima disposição relacional de Deus e a concepção tradicional
da sua absoluta simplicidade.
No Capítulo V, por último, condensamos os elementos
da especificidade cristã que definem o empenho do testemunho eclesial na reconciliação
dos homens com Deus e de uns com os outros. A revelação cristã purifica a religião,
no próprio momento em que lhe restitui o seu significado fundamental para a experiência
humana do sentido. Por isso, no nosso convite à reflexão temos bem presente a necessidade
especial – sobretudo no horizonte cultural de hoje – de tratar sempre conjuntamente
o conteúdo teológico e o desenvolvimento histórico da revelação cristã de Deus.
ÍNDICE
GERAL Nota Preliminar APRESENTAÇÃO
CAPÍTULO I. Suspeitas acerca do
monoteísmo [1-18] 1 . A experiência religiosa do divino [1-2] 2 . Monoteísmo
e violência: um vínculo necessário? [3-9] 3 . Politeísmo tolerante? Uma metáfora
discutível [10-14] 4 . A responsabilidade atribuída à nossa fé [15-18]
CAPÍTULO
II. A iniciativa de Deus no caminho de homens [19-42] 1 . A aliança com Deus,
destinada a todos os povos [19-23] 2 . Discernimento cristão da antiga revelação
[24-30] 3 . Praticar o amor, acatar a justiça [31-35] 4 . A fé no Filho, contra
a inimizade entre os homens [36-42]
CAPÍTULO III. Deus, para nos livrar da
violência [43-66] 1 . Deus Pai salva-nos pela cruz do Filho [43-47] 2 . A
superação da violência, no Filho [48-53] 3 . A carne do homem, destinada à Glória
de Deus [54-59] 4 . A esperança dos Povos, a fé da Igreja [60-66]
CAPÍTULO
IV. Fé em face da amplitude da razão [67-84] 1 . A via do diálogo e o nó do ateísmo
[67-68] 2 . O confronto sobre a verdade da existência de Deus [69-72] 3 .
A crítica da religião e o naturalismo ateu [73-75] 4 . O empenhamento da razão:
o mundo criado, o Logos de Deus [76-77] 5 . Transcendência divina e as relações
no e com o Deus único [78-84]
CAPÍTULO V. Os filhos de Deus dispersos e reunidos
[85-100] 1 . A dignidade do ser humano individual e o liame dos muitos [85-87]
2 . Deus corrobora a paixão pela justiça, reabre a esperança da vida [88-92] 3
. A purificação religiosa da tentação do domínio [93-96] 4 . A força da paz com
Deus, missão da Igreja [97-100]
** A Subcomissão que elaborou o documento
foi presidida pelo Rev. Philippe Vallin e composta dos seguintes membros: Rev. Peter
Damian Akpunonu, P. Gilles Emery, O.P., S.Excª Revma Savio Hon Tai-Fai, S.D.B., S.Excª
Revma Charles Morerod, OP, Rev. Thomas Norris, Rev. Javier Prades López, S.Excª Revma
Paul Rouhana, Rev. Pierangelo Sequeri, Rev. Guillermo Zuleta Salas.
O Documento
da Comissão Teoligico Intercional foi publicada em 16 de Janeiro de 2014