Cidade do Vaticano (RV) - Nesta época do ano muitas famílias montam um presépio
em suas residências, fazendo vibrar a fantasia das crianças. Museus e outras instituições
abrem exposições de presépios, mantendo viva uma tradição cultural e religiosa do
povo brasileiro.
A representação plástica que evoca a natividade de Jesus
não vai além de uma rude manjedoura, quiçá uma tosca pousada de migrantes na beira
da estrada, pouco importando o número de personagens envolvidos e se os fatos correspondem
mais ou menos à realidade.
O presépio não é uma exibição cerebrina, não é
um boletim de ocorrência, não é para convencer qualquer erudito, ou justo, ou puro:
só convence a quem tiver o espírito da humildade, da hospitalidade, da sabedoria dos
pequenos.
É um convite à imaginação cordial: não de um coração de pedra, mas
um coração de carne, como ensinou Ezequiel (36,26); um coração contrito,
como reza o Salmo (51,19).
Longe da estridência, usa a linguagem da simplicidade,
da intimidade, da entrega, do acalento do amor. Será que me lembro da última vez que
isso aconteceu comigo, de verdade?
É para ser contemplado segurando a mão
de crianças, dos velhinhos, da mulher ou do homem amado, apoiando-se nos ombros dos
amigos, em sintonia com a reverberação da vida.
Não é para ser visto às pressas,
é para ser saboreado ao som do cântico do silêncio, sentindo a pulsação da prece.
Terei vergonha se verter uma lágrima que limpe os olhos da minha fé?
Um dos
nossos maiores poetas, Mário Quintana, exprimiu admiravelmente qual deve ser o caminho
que ultrapassa a especulação, para além da própria ação, e que nos aproxima do agir
de Deus, que é contemplar. Seus versos podem ser uma oração a ser recitada diante
do presépio:
Sentir primeiro, pensar depois Perdoar primeiro,
julgar depois Amar primeiro, educar depois Esquecer primeiro,
aprender depois Libertar primeiro, ensinar depois Alimentar primeiro,
cantar depois Possuir primeiro, contemplar depois Agir primeiro,
justificar depois Navegar primeiro, aportar depois Viver primeiro,
morrer depois. Mais que tudo: deixemo-nos moldar pela mensagem que nos legaram
o Rei do universo – a plenitude que se fez fragmento – e sua família, ainda reclusos
numa choupana, às vésperas da fuga para o exílio, por causa da perseguição de um outro
tipo de rei. Os pastores, gente excluída e considerada impura, foram os primeiros
a ouvir dos anjos do céu o precônio de um novo mundo, que mais tarde o Carpinteiro
de Nazaré externou como o mais transformador dos programas de vida, as Bem-aventuranças
(Mt 5; Lc 6).
Quando um profundo silêncio envolvia o universo, e
a noite estava no meio do seu curso, a vossa Palavra onipotente, Senhor, desceu
do céu, do vosso trono real.” (Da liturgia do Natal, cf Sb18,14-15)
Não
temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos
hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor,
na cidade de Davi. (Lc 2,10-11)
A devoção à infância
de Jesus existe desde o berço da Igreja. O centro da devoção foi sempre o lugar do
nascimento, Belém de Judá. Salvo em períodos de perseguição, peregrinos de todas as
partes da cristandade afluíram a Belém e de lá levavam troféus que lhes evocassem
o Menino Jesus, sua mãe Maria e seu pai José. Não bastando a veneração aos troféus,
os cristãos começaram a construir capelas imitando a gruta de Belém. A basílica de
Santa Maria Maior, em Roma, conserva uma singela construção do século V conhecida
como Sancta Maria ad Presepe.
Numa magnífica simbologia, muito cedo
se deu a aproximação entre o altar e a creche natalina. Com efeito,
Belém significa, em hebraico, “casa do pão”; Jo 6,41.51 chama Jesus de “pão vivo”.
Os Santos Padres não negligenciaram essa fonte de inspiração. S. Gregório de Nissa,
por exemplo, compara os cristãos aos animais que, para se nutrir, dirigem-se à manjedoura.
S. João Crisóstomo afirma que “este altar funciona como uma manjedoura”. Numerosos
autores repetirão que na creche ou em Belém o pão vivo se oferece aos homens, como
na Eucaristia sobre o altar. E os artistas, em suas Natividades frequentemente
representam o Menino deitado sobre o altar.
O símbolo entre a Eucaristia e
o berço certamente inspirou S. Francisco de Assis quando ele celebrou a festa do Natal
em Greccio (Úmbria, Itália), em 1223. Daí certamente derivam as representações que
até hoje conservamos nas confecções dos presépios. No meio de um bosque o Poverello
encontrou uma escavação em forma de gruta, em que ele colocou uma manjedoura com o
jumento, o boi e o feno. Ainda nenhuma imagem da Virgem, do Menino e de José. Os participantes
da cerimônia completaram com sua criatividade a composição dramática da cena do nascimento
do Salvador. Em cima da manjedoura celebrou-se a Missa e aos poucos o altar provisório
foi substituído por um definitivo. Nenhum documento registra se essa solenização foi
renovada por S. Francisco ou por seus filhos e filhas espirituais. A Legenda de
Santa Clara narra que a santa, doente, impedida de participar dos ofícios litúrgicos
natalinos, teria tido uma visão das representações. Não foram, contudo, os franciscanos,
mas sim os jesuítas, que divulgaram essa versão de Francisco de Assis como o iniciador
da devoção ao presépio.
Da península itálica essa devoção se estendeu para
toda a Europa e durante toda a idade média teve forte aceitação na península ibérica,
de onde nos veio a tradição portuguesa das singelas e artísticas lapinhas.
Na
cidade de São Paulo, temos encantadoras reproduções de presépios, desde os expostos
no Museu de Arte Sacra (como o imenso, variado e até divertido “presépio napolitano”),
até a impressionante e cada vez maior coleção de presépios do mundo inteiro expostos
nessa época do ano pelos frades franciscanos no Convento São Francisco, no centro
da capital.
Nas palavras de Tomás de Celano, biógrafo de São Francisco, aquela
celebração era realmente nova, “um novo mistério... uma nova alegria. O Menino
Jesus estava esquecido nos corações de muitos... Francisco o ressuscitou”.
Feliz Natal de alegria e paz!Domingos Zamagna Jornalista e professor de Filosofia
em São Paulo.