Cidade do Vaticano (RV) - Segue, na íntegra, a Exortação Apostólica Evangelii
Gaudium do Papa Francisco.
AO EPISCOPADO, AO CLERO ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E
AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ATUAL
1.
A ALEGRIA DO EVANGELHO enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram
com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza,
do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria.
Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para
uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para o percurso
da Igreja nos próximos anos.
1. Alegria que se renova e comunica
2.
O grande risco do mundo actual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo,
é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca
desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior
se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram
os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor,
nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que
correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas,
queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio
que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo
ressuscitado.
3. Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se
encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos,
a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar.
Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que
«da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído». Quem arrisca, o Senhor não o
desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em direcção a Jesus, descobre que Ele
já aguardava de braços abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus
Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou
novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo,
Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores». Como nos faz bem voltar
para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar,
somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia. Aquele que nos convidou a
perdoar «setenta vezes sete» (Mt 18, 22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa setenta
vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos pode
tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos confere. Ele permite-nos
levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos
pode restituir a alegria. Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por
mortos, suceda o que suceder. Que nada possa mais do que a sua vida que nos impele
para diante!
4. Os livros do Antigo Testamento preanunciaram a alegria da salvação,
que havia de tornar-se superabundante nos tempos messiânicos. O profeta Isaías dirige-se
ao Messias esperado, saudando-O com regozijo: «Multiplicaste a alegria, aumentaste
o júbilo» (9, 2). E anima os habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos: «Exultai
de alegria!» (12, 6). A quem já O avistara no horizonte, o profeta convida-o a tornar-se
mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto de Sião! Grita com voz forte,
arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira participa nesta alegria da salvação:
«Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade,
o Senhor consola o seu povo e se compadece dos desamparados» (49, 13). Zacarias,
vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar o Rei que chega «humilde, montado num jumento»:
«Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis
que o teu rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso» (9, 9). Mas o convite mais tocante
talvez seja o do profeta Sofonias, que nos mostra o próprio Deus como um centro irradiante
de festa e de alegria, que quer comunicar ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me
de vida reler este texto: «O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador!
Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita
de alegria por tua causa» (3, 17). É a alegria que se vive no meio das pequenas
coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai: «Meu
filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não te prives da felicidade presente»
(Sir 14, 11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra por detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida insistentemente
à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te» é a saudação do anjo a Maria (Lc
1, 28). A visita de Maria a Isabel faz com que João salte de alegria no ventre de
sua mãe (cf. Lc 1, 41). No seu cântico, Maria proclama: «O meu espírito se
alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus começa o seu ministério,
João exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!» (Jo 3, 29). O
próprio Jesus «estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo» (Lc 10,
21). A sua mensagem é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas, para que esteja
em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11). A nossa
alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante. Ele promete aos seus discípulos:
«Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se em alegria»
(Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei-de ver-vos de novo! Então, o vosso coração
há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois,
ao verem-No ressuscitado, «encheram-se de alegria» (Jo 20, 20). O livro dos
Actos dos Apóstolos conta que, na primitiva comunidade, «tomavam o alimento com alegria»
(2, 46). Por onde passaram os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no
meio da perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco, recém-baptizado,
«seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8, 39); e o carcereiro «entregou-se, com
a família, à alegria de ter acreditado em Deus» (16, 34). Porque não havemos de entrar,
também nós, nesta torrente de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter escolhido
viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma
maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se
e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da
certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo
as pessoas que se vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de suportar,
mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma
secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores angústias: «A paz foi desterrada
da minha alma, já nem sei o que é a felicidade (…). Isto, porém, guardo no meu coração;
por isso, mantenho a esperança. É que a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota
a sua compaixão. Cada manhã ela se renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é
esperar em silêncio a salvação do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7. A
tentação apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas e queixas, como se tivesse
de haver inúmeras condições para ser possível a alegria. Habitualmente isto acontece,
porque «a sociedade técnica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer;
no entanto ela encontra dificuldades grandes no engendrar também a alegria». Posso
dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são
as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também
a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais,
souberam conservar um coração crente, generoso e simples. De várias maneiras, estas
alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós manifestado em Jesus
Cristo. Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro
do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia,
mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte
e, desta forma, o rumo decisivo».
8. Somente graças a este encontro – ou reencontro
– com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da
nossa consciência isolada e da auto-referencialidade. Chegamos a ser plenamente humanos,
quando somos mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza para além
de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte
da acção evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido
da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?
2.
A doce e reconfortante alegria de evangelizar
9. O bem tende sempre a comunicar-se.
Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão;
e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior sensibilidade face
às necessidades dos outros. E, uma vez comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se.
Por isso, quem deseja viver com dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão
reconhecer o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos deveriam surpreender frases
de São Paulo como estas: «O amor de Cristo nos absorve completamente» (2 Cor
5, 14); «ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16).
10. A proposta
é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: «Na doação, a vida se
fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De facto, os que mais desfrutam
da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar
a vida aos demais». Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz
mais do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui
descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece à medida
que é entregue para dar vida aos outros”. Isto é, definitivamente, a missão». Consequentemente,
um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral. Recuperemos e
aumentemos o fervor de espírito, «a suave e reconfortante alegria de evangelizar,
mesmo quando for preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo,
que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios,
não de evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de
ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro
em si a alegria de Cristo».
Uma eterna novidade
11. Um anúncio
renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova alegria
na fé e uma fecundidade evangelizadora. Na realidade, o seu centro e a sua essência
são sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo morto e ressuscitado.
Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda que sejam idosos, «renovam as suas forças.
Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40,
31). Cristo é a «Boa-Nova de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem,
hoje e pelos séculos» (Heb 13, 8), mas a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis.
Ele é sempre jovem, e fonte de constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar
com a «profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus» (Rm 11,
33). São João da Cruz dizia: «Esta espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão
profunda e imensa, que, por mais que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais
profundamente». Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo] trouxe
consigo toda a novidade». Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida
e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e
fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode romper também os esquemas
enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade
divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho,
despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais
eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo actual. Na realidade,
toda a acção evangelizadora autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta missão
nos exija uma entrega generosa, seria um erro considerá-la como uma heróica tarefa
pessoal, dado que ela é, primariamente e acima de tudo o que possamos sondar e compreender,
obra de Deus. Jesus é «o primeiro e o maior evangelizador». Em qualquer forma de evangelização,
o primado é sempre de Deus, que quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos
com a força do seu Espírito. A verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus misteriosamente
quer produzir, aquela que Ele inspira, aquela que Ele provoca, aquela que Ele orienta
e acompanha de mil e uma maneiras. Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar
que a iniciativa pertence a Deus, «porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19)
e é «só Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). Esta convicção permite-nos manter
a alegria no meio duma tarefa tão exigente e desafiadora que ocupa inteiramente a
nossa vida. Pede-nos tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos tudo.
13. E também não
deveremos entender a novidade desta missão como um desenraizamento, como um esquecimento
da história viva que nos acolhe e impele para diante. A memória é uma dimensão da
nossa fé, que, por analogia com a memória de Israel, poderíamos chamar «deuteronómica».
Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, que nos introduz cada
vez mais na Páscoa (cf. Lc 22, 19). A alegria evangelizadora refulge sempre
sobre o horizonte da memória agradecida: é uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos
nunca mais esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou o coração: «Eram as quatro
horas da tarde» (Jo 1, 39). A memória faz-nos presente, juntamente com Jesus,
uma verdadeira «nuvem de testemunhas» (Heb 12, 1). De entre elas, distinguem-se
algumas pessoas que incidiram de maneira especial para fazer germinar a nossa alegria
crente: «Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de Deus» (Heb
13, 7). Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que nos iniciaram
na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua
avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é, fundamentalmente, «uma
pessoa que faz memória».
3. A nova evangelização para a transmissão
da fé
14. À escuta do Espírito, que nos ajuda a reconhecer comunitariamente
os sinais dos tempos, celebrou-se de 7 a 28 de Outubro de 2012 a XIII Assembleia Geral
Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema A nova evangelização para a transmissão
da fé cristã. Lá foi recordado que a nova evangelização interpela a todos, realizando-se
fundamentalmente em três âmbitos. Em primeiro lugar, mencionamos o âmbito da pastoral
ordinária, «animada pelo fogo do Espírito a fim de incendiar os corações dos fiéis
que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem
da sua Palavra e do Pão de vida eterna». Devem ser incluídos também neste âmbito os
fiéis que conservam uma fé católica intensa e sincera, exprimindo-a de diversos modos,
embora não participem frequentemente no culto. Esta pastoral está orientada para o
crescimento dos crentes, a fim de corresponderem cada vez melhor e com toda a sua
vida ao amor de Deus. Em segundo lugar, lembramos o âmbito das «pessoas baptizadas
que, porém, não vivem as exigências do Baptismo», não sentem uma pertença
cordial à Igreja e já não experimentam a consolação da fé. Mãe sempre solícita, a
Igreja esforça-se para que elas vivam uma conversão que lhes restitua a alegria da
fé e o desejo de se comprometerem com o Evangelho. Por fim, frisamos que a evangelização
está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que não
conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram. Muitos deles buscam secretamente
a Deus, movidos pela nostalgia do seu rosto, mesmo em países de antiga tradição cristã.
Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar,
sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha
uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja
não cresce por proselitismo, mas «por atracção».
15. João Paulo II convidou-nos
a reconhecer que «não se pode perder a tensão para o anúncio» àqueles que estão longe
de Cristo, «porque esta é a tarefa primária da Igreja». A actividade missionária
«ainda hoje representa o máximo desafio para a Igreja» e «a causa missionária
deve ser (…) a primeira de todas as causas». Que sucederia se tomássemos
realmente a sério estas palavras? Simplesmente reconheceríamos que a acção missionária
é o paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos latino-americanos
afirmaram que «não podemos ficar tranquilos, em espera passiva, em nossos templos»,
sendo necessário passar «de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente
missionária». Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores alegrias para a Igreja:
«Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa
e nove justos que não necessitam de conversão» (Lc 15, 7).
A proposta
desta Exortação e seus contornos
16. Com prazer, aceitei o convite dos
Padres sinodais para redigir esta Exortação. Para o efeito, recolho a riqueza dos
trabalhos do Sínodo; consultei também várias pessoas e pretendo, além disso, exprimir
as preocupações que me movem neste momento concreto da obra evangelizadora da Igreja.
Os temas relacionados com a evangelização no mundo actual, que se poderiam desenvolver
aqui, são inumeráveis. Mas renunciei a tratar detalhadamente esta multiplicidade de
questões que devem ser objecto de estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso, aliás,
que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre
todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa substitua
os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos
seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
17. Aqui
escolhi propor algumas directrizes que possam encorajar e orientar, em toda a Igreja,
uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com base
na doutrina da Constituição dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas,
de me deter amplamente sobre as seguintes questões: a) A reforma da Igreja em saída
missionária. b) As tentações dos agentes pastorais. c) A Igreja vista como a
totalidade do povo de Deus que evangeliza. d) A homilia e a sua preparação. e)
A inclusão social dos pobres. f) A paz e o diálogo social. g) As motivações
espirituais para o compromisso missionário.
18. Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os
dum modo que talvez possa parecer excessivo. Mas não o fiz com a intenção de oferecer
um tratado, mas só para mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na
missão actual da Igreja. De facto, todos eles ajudam a delinear um preciso estilo
evangelizador, que convido a assumir em qualquer actividade que se realize.
E, desta forma, podemos assumir, no meio do nosso trabalho diário, esta exortação
da Palavra de Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos!»
(Fl 4, 4).
Capítulo I A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
19. A
evangelização obedece ao mandato missionário de Jesus: «Ide, pois, fazei discípulos
de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os
a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 19-20). Nestes versículos,
aparece o momento em que o Ressuscitado envia os seus a pregar o Evangelho em todos
os tempos e lugares, para que a fé n’Ele se estenda a todos os cantos da terra.
1.
Uma Igreja «em saída»
20. Na Palavra de Deus, aparece constantemente este
dinamismo de «saída», que Deus quer provocar nos crentes. Abraão aceitou a chamada
para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12, 1-3). Moisés ouviu a chamada
de Deus: «Vai; Eu te envio» (Ex 3, 10), e fez sair o povo para a terra prometida
(cf. Ex 3, 17). A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar» (Jr 1, 7).
Naquele «ide» de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos da
missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova «saída» missionária.
Cada cristão e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede,
mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter
a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho.
21.
A alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade dos discípulos, é uma alegria
missionária. Experimentam-na os setenta e dois discípulos, que voltam da missão cheios
de alegria (cf. Lc 10, 17). Vive-a Jesus, que exulta de alegria no Espírito
Santo e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf.
Lc 10, 21). Sentem-na, cheios de admiração, os primeiros que se convertem no
Pentecostes, ao ouvir «cada um na sua própria língua» (Act 2, 6) a pregação
dos Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a frutificar.
Mas contém sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e
de semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor diz: «Vamos para outra parte,
para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu vim» (Mc
1, 38). Ele, depois de lançar a semente num lugar, não se demora lá a explicar melhor
ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras aldeias.
22. A
Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não a podemos prever. O Evangelho
fala da semente que, uma vez lançada à terra, cresce por si mesma, inclusive quando
o agricultor dorme (cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar esta liberdade
incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas
vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos esquemas.
23. A
intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão «reveste
essencialmente a forma de comunhão missionária». Fiel ao modelo do Mestre, é vital
que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em
todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho
é para todo o povo, não se pode excluir ninguém; assim foi anunciada pelo anjo aos
pastores de Belém: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para
todo o povo» (Lc 2, 10). O Apocalipse fala de «uma Boa-Nova de valor
eterno para anunciar aos habitantes da terra: a todas as nações, tribos, línguas
e povos» (Ap 14, 6).
«Primeirear», envolver-se, acompanhar, frutificar
e festejar
24. A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários
que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam
– desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária experimenta
que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por
isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar
os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive
um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia
infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa!
Como consequência, a Igreja sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos.
O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para
os lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em
prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na
vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até
à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo.
Os evangelizadores contraem assim o «cheiro de ovelha», e estas escutam a sua voz.
Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Acompanha a humanidade
em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas
esperas e a suportação apostólica. A evangelização patenteia muita paciência, e evita
deter-se a considerar as limitações. Fiel ao dom do Senhor, sabe também «frutificar».
A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda.
Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o
joio no meio do trigo, não tem reacções lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo
para fazer com que a Palavra se encarne numa situação concreta e dê frutos de vida
nova, apesar de serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer
a vida inteira e jogá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu
sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra seja acolhida e manifeste
a sua força libertadora e renovadora. Por fim, a comunidade evangelizadora jubilosa
sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente
na evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização
jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza
da liturgia, que é também celebração da actividade evangelizadora e fonte dum renovado
impulso para se dar.
2. Pastoral em conversão
25. Não ignoro
que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando
rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que, aquilo que pretendo deixar expresso
aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes. Espero que
todas as comunidades se esforcem por actuar os meios necessários para avançar no caminho
duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste
momento, não nos serve uma «simples administração». Constituamo-nos em «estado permanente
de missão», em todas as regiões da terra.
26. Paulo VI convidou a alargar o
apelo à renovação de modo que ressalte, com força, que não se dirige apenas aos indivíduos,
mas à Igreja inteira. Lembremos este texto memorável, que não perdeu a sua força interpeladora:
«A Igreja deve aprofundar a consciência de si mesma, meditar sobre o seu próprio mistério
(...). Desta consciência esclarecida e operante deriva espontaneamente um desejo de
comparar a imagem ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou, ou seja, como
sua Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27), com o rosto real que a Igreja apresenta
hoje. (…) Em consequência disso, surge uma necessidade generosa e quase impaciente
de renovação, isto é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita,
como se fosse um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo».
O Concílio Vaticano II apresentou a conversão eclesial como a abertura a uma reforma
permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo: «Toda a renovação da Igreja
consiste essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação. (…) A Igreja peregrina
é chamada por Cristo a esta reforma perene. Como instituição humana e terrena, a Igreja
necessita perpetuamente desta reforma». Há estruturas eclesiais que podem chegar
a condicionar um dinamismo evangelizador; de igual modo, as boas estruturas servem
quando há uma vida que as anima, sustenta e avalia. Sem vida nova e espírito evangélico
autêntico, sem «fidelidade da Igreja à própria vocação», toda e qualquer nova estrutura
se corrompe em pouco tempo.
Uma renovação eclesial inadiável
27. Sonho
com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos,
os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado
mais à evangelização do mundo actual que à auto-preservação. A reforma das estruturas,
que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas
elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias
seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante
de «saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece
a sua amizade. Como dizia João Paulo II aos Bispos da Oceânia, «toda a renovação na
Igreja há-de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de introversão
eclesial».
28. A paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque
possui uma grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que requerem
a docilidade e a criatividade missionária do Pastor e da comunidade. Embora não seja
certamente a única instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar
constantemente, continuará a ser «a própria Igreja que vive no meio das casas dos
seus filhos e das suas filhas». Isto supõe que esteja realmente em contacto com as
famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada, separada das
pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos. A paróquia é presença eclesial
no território, âmbito para a escuta da Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo,
o anúncio, a caridade generosa, a adoração e a celebração. Através de todas as suas
actividades, a paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização.
É comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber para continuarem
a caminhar, e centro de constante envio missionário. Temos, porém, de reconhecer que
o apelo à revisão e renovação das paróquias ainda não deu suficientemente fruto, tornando-se
ainda mais próximas das pessoas, sendo âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-se
completamente para a missão.
29. As outras instituições eclesiais, comunidades
de base e pequenas comunidades, movimentos e outras formas de associação são uma riqueza
da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e sectores. Frequentemente
trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam
a Igreja. Mas é muito salutar que não percam o contacto com esta realidade muito rica
da paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja particular.
Esta integração evitará que fiquem só com uma parte do Evangelho e da Igreja, ou que
se transformem em nómades sem raízes.
30. Cada Igreja particular, porção da
Igreja Católica sob a guia do seu Bispo, está, também ela, chamada à conversão missionária.
Ela é o sujeito primário da evangelização, enquanto é a manifestação concreta da única
Igreja num lugar da terra e, nela, «está verdadeiramente presente e opera a Igreja
de Cristo, una, santa, católica e apostólica». É a Igreja encarnada num espaço concreto,
dotada de todos os meios de salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua
alegria de comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por anunciá-Lo
noutros lugares mais necessitados, como numa constante saída para as periferias do
seu território ou para os novos âmbitos socioculturais. Procura estar sempre onde
fazem mais falta a luz e a vida do Ressuscitado. Para que este impulso missionário
seja cada vez mais intenso, generoso e fecundo, exorto também cada uma das Igrejas
particulares a entrar decididamente num processo de discernimento, purificação e reforma.
31. O
Bispo deve favorecer sempre a comunhão missionária na sua Igreja diocesana, seguindo
o ideal das primeiras comunidades cristãs, em que os crentes tinham um só coração
e uma só alma (cf. Act 4, 32) . Para isso, às vezes pôr-se-á à frente para
indicar a estrada e sustentar a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente
no meio de todos com a sua proximidade simples e misericordiosa e, em certas circunstâncias,
deverá caminhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram e sobretudo porque
o próprio rebanho possui o olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão de
promover uma comunhão dinâmica, aberta e missionária, deverá estimular e procurar
o amadurecimento dos organismos de participação propostos pelo Código de Direito
Canónico e de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos,
e não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas o objectivo destes processos
participativos não há-de ser principalmente a organização eclesial, mas o sonho missionário
de chegar a todos.
32. Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros,
devo pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer
aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel
ao significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades actuais da evangelização.
O Papa João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma forma de exercício do
primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra
a uma situação nova». Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas
centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral.
O Concílio Vaticano II afirmou que, à semelhança das antigas Igrejas patriarcais,
as conferências episcopais podem «aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para
que o sentimento colegial leve a aplicações concretas». Mas este desejo não se realizou
plenamente, porque ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências
episcopais que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma
autêntica autoridade doutrinal. Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica
a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária.
33. A pastoral em chave missionária
exige o abandono deste cómodo critério pastoral: «fez-se sempre assim». Convido todos
a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objectivos, as estruturas,
o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Uma identificação
dos fins, sem uma condigna busca comunitária dos meios para os alcançar, está condenada
a traduzir-se em mera fantasia. A todos exorto a aplicarem, com generosidade e coragem,
as orientações deste documento, sem impedimentos nem receios. Importante é não caminhar
sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos Bispos,
num discernimento pastoral sábio e realista.
3. A partir do coração
do Evangelho
34. Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso
aplica-se também à maneira de comunicar a mensagem. No mundo actual, com a velocidade
das comunicações e a selecção interessada dos conteúdos feita pelos mass-media,
a mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida
a alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem
parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema
maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos
secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração
da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém ser realistas e não dar por suposto
que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou
que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que
lhe confere sentido, beleza e fascínio.
35. Uma pastoral em chave missionária
não está obsessionada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas
que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objectivo pastoral e
um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem excepções nem exclusões, o
anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente
e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder
profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas
as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma
fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais directamente o coração
do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico
de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido, o Concílio
Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou “hierarquia” das verdades da doutrina
católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido
tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo
a doutrina moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem
moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e acções que delas procedem.
Aqui o que conta é, antes de mais nada, «a fé que actua pelo amor» (Gal 5,
6). As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça
interior do Espírito: «O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo,
que se manifesta através da fé que opera pelo amor». Por isso afirma que, relativamente
ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia
é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e –
o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto é tarefa especialmente
de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia
e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua omnipotência».
38. É importante
tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar, que recolhe uma antiga
convicção da Igreja. Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho,
é necessário que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com
que se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se
um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas
ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando
obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação
e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da
Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.
39. Tal como
existe uma unidade orgânica entre as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas
do ideal cristão, assim também nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a integridade
da mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se melhor se a colocarmos
em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem cristã: e, neste contexto, todas
as verdades têm a sua própria importância e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação
é fiel ao Evangelho, manifesta-se com clareza a centralidade de algumas verdades e
fica claro que a pregação moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma
ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho
convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos
outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não há-de
ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao serviço desta
resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral
da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior
perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas
acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem
correrá o risco de perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».
4.
A missão que se encarna nas limitações humanas
40. A Igreja, que é discípula
missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e
na sua compreensão da verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer
o juízo da Igreja». Embora de modo diferente, fazem-no também as outras ciências.
Referindo-se às ciências sociais, por exemplo, João Paulo II disse que a Igreja presta
atenção às suas contribuições «para obter indicações concretas que a ajudem no cumprimento
da sua missão de Magistério». Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à
volta das quais se indaga e reflecte com grande liberdade. As diversas linhas de pensamento
filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito
e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro
riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem
nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é
que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da
riqueza inesgotável do Evangelho.
41. Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas
mudanças culturais exigem que prestemos constante atenção ao tentar exprimir as verdades
de sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade; é que,
no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é a substância (...) e outra é a formulação
que a reveste». Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo
que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é
algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Com a santa intenção
de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes
um falso deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos
fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância. Este é o risco mais grave.
Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode ser multiforme. E a renovação das
formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem
evangélica no seu significado imutável».
42. Isto possui uma grande relevância
no anúncio do Evangelho, se temos verdadeiramente a peito fazer perceber melhor a
sua beleza e fazê-la acolher por todos. Em todo o caso, não poderemos jamais tornar
os ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente compreensível e felizmente apreciada
por todos; a fé conserva sempre um aspecto de cruz, certa obscuridade que não tira
firmeza à sua adesão. Há coisas que se compreendem e apreciam só a partir desta adesão
que é irmã do amor, para além da clareza com que se possam compreender as razões e
os argumentos. Por isso, é preciso recordar-se de que cada ensinamento da doutrina
deve situar-se na atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração com a proximidade,
o amor e o testemunho.
43. No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar
também a reconhecer costumes próprios não directamente ligados ao núcleo do Evangelho,
alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não são interpretados da
mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem
até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não
tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem
ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como
canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos dados por Cristo e
pelos Apóstolos ao povo de Deus «são pouquíssimos». E, citando Santo Agostinho, observava
que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação,
«para não tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião numa escravidão,
quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre». Esta advertência, feita há vários
séculos, tem uma actualidade tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar,
quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar
a todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis que acompanham os
seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus não podem esquecer aquilo que
ensina, com muita clareza, o Catecismo da Igreja Católica: «A imputabilidade
e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância,
a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros
factores psíquicos ou sociais». Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico,
é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento
das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário
não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos
incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes limitações
humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem
transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação
e o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa,
para além dos seus defeitos e das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso
evangelizador se move por entre as limitações da linguagem e das circunstâncias. Procura
comunicar cada vez melhor a verdade do Evangelho num contexto determinado, sem renunciar
à verdade, ao bem e à luz que pode dar quando a perfeição não é possível. Um coração
missionário está consciente destas limitações, fazendo-se «fraco com os fracos (...)
e tudo para todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias
seguranças, nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer
na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não
renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada.
5.
Uma mãe de coração aberto
46. A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas
abertas. Sair em direcção aos outros para chegar às periferias humanas não significa
correr pelo mundo sem direcção nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo,
pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências
para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho
pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar
sem dificuldade.
47. A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai.
Um dos sinais concretos desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as portas
abertas. Assim, se alguém quiser seguir uma moção do Espírito e se aproximar à procura
de Deus, não esbarrará com a frieza duma porta fechada. Mas há outras portas que também
não se devem fechar: todos podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos
podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam
fechar por uma razão qualquer. Isto vale sobretudo quando se trata daquele sacramento
que é a «porta»: o Baptismo. A Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental,
não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos.
Estas convicções têm também consequências pastorais, que somos chamados a considerar
com prudência e audácia. Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como
facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para
todos com a sua vida fadigosa.
48. Se a Igreja inteira assume este dinamismo
missionário, há-de chegar a todos, sem excepção. Mas, a quem deveria privilegiar?
Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos
e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes
são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc
14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima.
Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a evangelização
dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar
sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os
deixemos jamais sozinhos!
49. Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida
de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos
sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada
por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade
de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro,
e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos
deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos
nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem
uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do
que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas
que nos dão uma falsa protecção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis,
nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta
e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37).
Capítulo
II NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50. Antes de falar de algumas
questões fundamentais relativas à acção evangelizadora, convém recordar brevemente
o contexto em que temos de viver e agir. É habitual hoje falar-se dum «excesso de
diagnóstico», que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas e realmente aplicáveis.
Por outro lado, também não nos seria de grande proveito um olhar puramente sociológico,
que tivesse a pretensão, com a sua metodologia, de abraçar toda a realidade de maneira
supostamente neutra e asséptica. O que quero oferecer situa-se mais na linha dum discernimento
evangélico. É o olhar do discípulo missionário que «se nutre da luz e da força
do Espírito Santo».
51. Não é função do Papa oferecer uma análise detalhada
e completa da realidade contemporânea, mas animo todas as comunidades a «uma capacidade
sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos». Trata-se duma responsabilidade
grave, pois algumas realidades hodiernas, se não encontrarem boas soluções, podem
desencadear processos de desumanização tais que será difícil depois retroceder. É
preciso esclarecer o que pode ser um fruto do Reino e também o que atenta contra o
projecto de Deus. Isto implica não só reconhecer e interpretar as moções do espírito
bom e do espírito mau, mas também – e aqui está o ponto decisivo – escolher as do
espírito bom e rejeitar as do espírito mau. Pressuponho as várias análises que ofereceram
os outros documentos do Magistério universal, bem como as propostas pelos episcopados
regionais e nacionais. Nesta Exortação, pretendo debruçar-me, brevemente e numa perspectiva
pastoral, apenas sobre alguns aspectos da realidade que podem deter ou enfraquecer
os dinamismos de renovação missionária da Igreja, seja porque afectam a vida e a dignidade
do povo de Deus, seja porque incidem sobre os sujeitos que mais directamente participam
nas instituições eclesiais e nas tarefas de evangelização.
1. Alguns
desafios do mundo actual
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem
histórica, que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos.
São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo,
no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos esquecer que
a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente,
com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se
do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A alegria de viver
frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade
social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes
viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos
qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico,
nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza
e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum
poder muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da exclusão 53. Assim
como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana,
assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade
social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso
sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto
é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há
pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade
e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta
situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho,
sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como
um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura
do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do
fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se,
na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados»,
mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias
da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido
pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social
no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança
vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados
do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para
se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com
este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos
dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já
não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como
se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar
anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda
não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos
parecem um mero espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à
nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação
estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós
e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que,
na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano.
Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35)
encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia
sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe
as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo
a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma
das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem
exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela
minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta
dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos
Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania
invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas
leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países
das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra.
A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que
assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste
sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade
que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado
divinizado, transformados em regra absoluta.
Não a um dinheiro que governa
em vez de servir
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da
ética e a recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo
sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o
dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação
da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida
que está fora das categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável,
não manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena
realização e à independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não
ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido,
animo os peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as
palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos seus próprios
bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos».
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa
mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar
este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade
de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos
e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar
os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada
e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
Não
à desigualdade social que gera violência
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se
maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro
da sociedade e entre os vários povos será impossível desarreigar a violência. Acusam-se
da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades,
as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo
ou mais tarde, há-de provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou
mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos,
nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade.
Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reacção violenta de
quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e económico é injusto
na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido,
que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente,
as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada
acção tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém
um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais
injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe do
chamado «fim da história», já que as condições dum desenvolvimento sustentável e pacífico
ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da
economia actual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo
desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social.
Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas
armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar
enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as
armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos.
Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países
pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa «educação»
que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se
ainda mais irritante, quando os excluídos vêem crescer este câncer social que é a
corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos, empresários
e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes.
Alguns
desafios culturais
61. Evangelizamos também procurando enfrentar os diferentes
desafios que se nos podem apresentar. Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros
ataques à liberdade religiosa ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que,
nalguns países, atingiram níveis alarmantes de ódio e violência. Em muitos lugares,
trata-se mais de uma generalizada indiferença relativista, relacionada com a desilusão
e a crise das ideologias que se verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário.
Isto não prejudica só a Igreja, mas a vida social em geral. Reconhecemos que, numa
cultura onde cada um pretende ser portador duma verdade subjectiva própria, torna-se
difícil que os cidadãos queiram inserir-se num projecto comum que vai além dos benefícios
e desejos pessoais.
62. Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo
que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede o
lugar à aparência. Em muitos países, a globalização comportou uma acelerada deterioração
das raízes culturais com a invasão de tendências pertencentes a outras culturas, economicamente
desenvolvidas mas eticamente debilitadas. Assim se exprimiram, em distintos Sínodos,
os Bispos de vários continentes. Há alguns anos, os Bispos da África, por exemplo,
retomando a Encíclica Sollicitudo rei socialis, assinalaram que muitas vezes
se quer transformar os países africanos em meras «peças de um mecanismo, partes de
uma engrenagem gigantesca. Isto verifica-se com frequência também no domínio dos meios
de comunicação social, os quais, sendo na sua maior parte geridos por centros situados
na parte norte do mundo, nem sempre têm na devida conta as prioridades e os problemas
próprios desses países e não respeitam a sua fisionomia cultural». De igual modo,
os Bispos da Ásia sublinharam «as influências externas que estão a penetrar nas culturas
asiáticas. Vão surgindo formas novas de comportamento resultantes da orientação dos
mass-media (…). Em consequência disso, os aspectos negativos dos mass-media
e espectáculos estão a ameaçar os valores tradicionais».
63. A fé católica
de muitos povos encontra-se hoje perante o desafio da proliferação de novos movimentos
religiosos, alguns tendentes ao fundamentalismo e outros que parecem propor uma espiritualidade
sem Deus. Isto, por um lado, é o resultado duma reacção humana contra a sociedade
materialista, consumista e individualista e, por outro, um aproveitamento das carências
da população que vive nas periferias e zonas pobres, sobrevive no meio de grandes
preocupações humanas e procura soluções imediatas para as suas necessidades. Estes
movimentos religiosos, que se caracterizam pela sua penetração subtil, vêm colmar,
dentro do individualismo reinante, um vazio deixado pelo racionalismo secularista.
Além disso, é necessário reconhecer que, se uma parte do nosso povo baptizado não
sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas com
clima pouco acolhedor nalgumas das nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática
com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos povos.
Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral, bem como uma
sacramentalização sem outras formas de evangelização.
64. O processo de secularização
tende a reduzir a fé e a Igreja ao âmbito privado e íntimo. Além disso, com a negação
de toda a transcendência, produziu-se uma crescente deformação ética, um enfraquecimento
do sentido do pecado pessoal e social e um aumento progressivo do relativismo; e tudo
isso provoca uma desorientação generalizada, especialmente na fase tão vulnerável
às mudanças da adolescência e juventude. Como justamente observam os Bispos dos Estados
Unidos da América, enquanto a Igreja insiste na existência de normas morais objectivas,
válidas para todos, «há aqueles que apresentam esta doutrina como injusta, ou seja,
contrária aos direitos humanos básicos. Tais alegações brotam habitualmente de uma
forma de relativismo moral, que se une consistentemente a uma confiança nos direitos
absolutos dos indivíduos. Nesta perspectiva, a Igreja é sentida como se estivesse
promovendo um convencionalismo particular e interferisse com a liberdade individual».
Vivemos numa sociedade da informação que nos satura indiscriminadamente de dados,
todos postos ao mesmo nível, e acaba por nos conduzir a uma tremenda superficialidade
no momento de enquadrar as questões morais. Por conseguinte, torna-se necessária uma
educação que ensine a pensar criticamente e ofereça um caminho de amadurecimento nos
valores.
65. Apesar de toda a corrente secularista que invade a sociedade,
em muitos países – mesmo onde o cristianismo está em minoria – a Igreja Católica é
uma instituição credível perante a opinião pública, fiável no que diz respeito ao
âmbito da solidariedade e preocupação pelos mais indigentes. Em repetidas ocasiões,
ela serviu de medianeira na solução de problemas que afectam a paz, a concórdia, o
meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis, etc. E como é grande
a contribuição das escolas e das universidades católicas no mundo inteiro! E é muito
bom que assim seja. Mas, quando levantamos outras questões que suscitam menor acolhimento
público, custa-nos a demonstrar que o fazemos por fidelidade às mesmas convicções
sobre a dignidade da pessoa humana e do bem comum.
66. A família atravessa
uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. No caso
da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se
trata da célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na diferença
e a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus filhos. O matrimónio
tende a ser visto como mera forma de gratificação afectiva, que se pode constituir
de qualquer maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a
contribuição indispensável do matrimónio à sociedade supera o nível da afectividade
e o das necessidades ocasionais do casal. Como ensinam os Bispos franceses, não provém
«do sentimento amoroso, efémero por definição, mas da profundidade do compromisso
assumido pelos esposos que aceitam entrar numa união de vida total».
67. O
individualismo pós-moderno e globalizado favorece um estilo de vida que debilita o
desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos
familiares. A acção pastoral deve mostrar ainda melhor que a relação com o nosso Pai
exige e incentiva uma comunhão que cura, promove e fortalece os vínculos interpessoais.
Enquanto no mundo, especialmente nalguns países, se reacendem várias formas de guerras
e conflitos, nós, cristãos, insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar
as feridas, de construir pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a carregar
as cargas uns dos outros» (Gal 6, 2). Além disso, vemos hoje surgir muitas
formas de agregação para a defesa de direitos e a consecução de nobres objectivos.
Deste modo se manifesta uma sede de participação de numerosos cidadãos, que querem
ser construtores do desenvolvimento social e cultural.
Desafios da inculturação
da fé
68. O substrato cristão dalguns povos – sobretudo ocidentais – é
uma realidade viva. Aqui encontramos, especialmente nos mais necessitados, uma reserva
moral que guarda valores de autêntico humanismo cristão. Um olhar de fé sobre a realidade
não pode deixar de reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Significaria não ter
confiança na sua acção livre e generosa pensar que não existem autênticos valores
cristãos, onde uma grande parte da população recebeu o Baptismo e exprime de variadas
maneiras a sua fé e solidariedade fraterna. Aqui há que reconhecer muito mais que
«sementes do Verbo», visto que se trata duma autêntica fé católica com modalidades
próprias de expressão e de pertença à Igreja. Não convém ignorar a enorme importância
que tem uma cultura marcada pela fé, porque, não obstante os seus limites, esta cultura
evangelizada tem, contra os ataques do secularismo actual, muitos mais recursos do
que a mera soma dos crentes. Uma cultura popular evangelizada contém valores de fé
e solidariedade que podem provocar o desenvolvimento duma sociedade mais justa e crente,
e possui uma sabedoria peculiar que devemos saber reconhecer com olhar agradecido.
69. Há uma necessidade imperiosa de evangelizar as culturas para inculturar
o Evangelho. Nos países de tradição católica, tratar-se-á de acompanhar, cuidar e
fortalecer a riqueza que já existe e, nos países de outras tradições religiosas ou
profundamente secularizados, há que procurar novos processos de evangelização da cultura,
ainda que suponham projectos a longo prazo. Entretanto não podemos ignorar que há
sempre uma chamada ao crescimento: toda a cultura e todo o grupo social necessitam
de purificação e amadurecimento. No caso das culturas populares de povos católicos,
podemos reconhecer algumas fragilidades que precisam ainda de ser curadas pelo Evangelho:
o machismo, o alcoolismo, a violência doméstica, uma escassa participação na Eucaristia,
crenças fatalistas ou supersticiosas que levam a recorrer à bruxaria, etc. Mas o melhor
ponto de partida para curar e ver-se livre de tais fragilidades é precisamente a piedade
popular.
70. Certo é também que, às vezes, se dá maior realce a formas exteriores
das tradições de grupos concretos ou a supostas revelações privadas, que se absolutizam,
do que ao impulso da piedade cristã. Há certo cristianismo feito de devoções – próprio
duma vivência individual e sentimental da fé – que, na realidade, não corresponde
a uma autêntica «piedade popular». Alguns promovem estas expressões sem se preocupar
com a promoção social e a formação dos fiéis, fazendo-o nalguns casos para obter benefícios
económicos ou algum poder sobre os outros. Também não podemos ignorar que, nas últimas
décadas, se produziu uma ruptura na transmissão geracional da fé cristã no povo católico.
É inegável que muitos se sentem desiludidos e deixam de se identificar com a tradição
católica, que cresceu o número de pais que não baptizam os seus filhos nem os ensinam
a rezar, e que há um certo êxodo para outras comunidades de fé. Algumas causas desta
ruptura são a falta de espaços de diálogo familiar, a influência dos meios de comunicação,
o subjectivismo relativista, o consumismo desenfreado que o mercado incentiva, a falta
de cuidado pastoral pelos mais pobres, a inexistência dum acolhimento cordial nas
nossas instituições, e a dificuldade que sentimos em recriar a adesão mística da fé
num cenário religioso pluralista.
Desafios das culturas urbanas
71. A
nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta para onde peregrina
toda a humanidade. É interessante que a revelação nos diga que a plenitude da humanidade
e da história se realiza numa cidade. Precisamos de identificar a cidade a partir
dum olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus que habita nas suas
casas, nas suas ruas, nas suas praças. A presença de Deus acompanha a busca sincera
que indivíduos e grupos efectuam para encontrar apoio e sentido para a sua vida. Ele
vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem,
de verdade, de justiça. Esta presença não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada.
Deus não Se esconde de quantos O buscam com coração sincero, ainda que o façam tacteando,
de maneira imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o elemento religioso é mediado
por diferentes estilos de vida, por costumes ligados a um sentido do tempo, do território
e das relações que difere do estilo das populações rurais. Na vida quotidiana, muitas
vezes os citadinos lutam para sobreviver e, nesta luta, esconde-se um sentido profundo
da existência que habitualmente comporta também um profundo sentido religioso. Precisamos
de o contemplar para conseguirmos um diálogo parecido com o que o Senhor teve com
a Samaritana, junto do poço onde ela procurava saciar a sua sede (cf. Jo 4,
7-26).
73. Novas culturas continuam a formar-se nestas enormes geografias humanas
onde o cristão já não costuma ser promotor ou gerador de sentido, mas recebe delas
outras linguagens, símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações
de vida, muitas vezes em contraste com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita
e está em elaboração na cidade. O Sínodo constatou que as transformações destas grandes
áreas e a cultura que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização.
Isto requer imaginar espaços de oração e de comunhão com características inovadoras,
mais atraentes e significativas para as populações urbanas. Os ambientes rurais, devido
à influência dos mass-media, não estão imunes destas transformações culturais
que também operam mudanças significativas nas suas formas de vida.
74. Torna-se
necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus,
com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais. É necessário
chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra
de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. Não se deve esquecer que a
cidade é um âmbito multicultural. Nas grandes cidades, pode observar-se uma trama
em que grupos de pessoas compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões
semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos, em territórios culturais,
em cidades invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas culturais, mas exercem
muitas vezes práticas de segregação e violência. A Igreja é chamada a ser servidora
dum diálogo difícil. Enquanto há citadinos que conseguem os meios adequados para o
desenvolvimento da vida pessoal e familiar, muitíssimos são também os «não-citadinos»,
os «meio-citadinos» ou os «resíduos urbanos». A cidade dá origem a uma espécie de
ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes infinitas
possibilidades, interpõe também numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento da
vida de muitos. Esta contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes
do mundo, as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes
reclamam liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não forem
adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas.
75. Não
podemos ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve o tráfico de drogas e de
pessoas, o abuso e a exploração de menores, o abandono de idosos e doentes, várias
formas de corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço
de encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e
desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e proteger
do que para unir e integrar. A proclamação do Evangelho será uma base para restabelecer
a dignidade da vida humana nestes contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades
vida em abundância (cf. Jo 10, 10). O sentido unitário e completo da vida humana
proposto pelo Evangelho é o melhor remédio para os males urbanos, embora devamos reparar
que um programa e um estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados
para esta realidade. Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração
dos desafios como fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade,
melhora o cristão e fecunda a cidade.
2. Tentações dos agentes pastorais
76. Sinto
uma enorme gratidão pela tarefa de quantos trabalham na Igreja. Não quero agora deter-me
na exposição das actividades dos vários agentes pastorais, desde os Bispos até ao
mais simples e ignorado dos serviços eclesiais. Prefiro reflectir sobre os desafios
que todos eles enfrentam no meio da cultura globalizada actual. Mas, antes de tudo
e como dever de justiça, tenho a dizer que é enorme a contribuição da Igreja no mundo
actual. A nossa tristeza e vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja, e pelos
próprios, não devem fazer esquecer os inúmeros cristãos que dão a vida por amor: ajudam
tantas pessoas seja a curar-se seja a morrer em paz em hospitais precários, acompanham
as pessoas que caíram escravas de diversos vícios nos lugares mais pobres da terra,
prodigalizam-se na educação de crianças e jovens, cuidam de idosos abandonados por
todos, procuram comunicar valores em ambientes hostis, e dedicam-se de muitas outras
maneiras que mostram o imenso amor à humanidade inspirado por Deus feito homem. Agradeço
o belo exemplo que me dão tantos cristãos que oferecem a sua vida e o seu tempo com
alegria. Este testemunho faz-me muito bem e me apoia na minha aspiração pessoal de
superar o egoísmo para uma dedicação maior.
77. Apesar disso, como filhos desta
época, todos estamos de algum modo sob o influxo da cultura globalizada actual, que,
sem deixar de apresentar valores e novas possibilidades, pode também limitar-nos,
condicionar-nos e até mesmo combalir-nos. Reconheço que precisamos de criar espaços
apropriados para motivar e sanar os agentes pastorais, «lugares onde regenerar a sua
fé em Jesus crucificado e ressuscitado, onde compartilhar as próprias questões mais
profundas e as preocupações quotidianas, onde discernir em profundidade e com critérios
evangélicos sobre a própria existência e experiência, com o objectivo de orientar
para o bem e a beleza as próprias opções individuais e sociais». Ao mesmo tempo, quero
chamar a atenção para algumas tentações que afectam, particularmente nos nossos dias,
os agentes pastorais.
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária
78. Hoje
nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo pessoas consagradas, uma preocupação exacerbada
pelos espaços pessoais de autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios deveres
como mero apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria identidade. Ao mesmo
tempo, a vida espiritual confunde-se com alguns momentos religiosos que proporcionam
algum alívio, mas não alimentam o encontro com os outros, o compromisso no mundo,
a paixão pela evangelização. Assim, é possível notar em muitos agentes evangelizadores
– não obstante rezem – uma acentuação do individualismo, uma crise de identidade
e um declínio do fervor. São três males que se alimentam entre si.
79. A
cultura mediática e alguns ambientes intelectuais transmitem, às vezes, uma acentuada
desconfiança quanto à mensagem da Igreja, e um certo desencanto. Em consequência disso,
embora rezando, muitos agentes pastorais desenvolvem uma espécie de complexo de inferioridade
que os leva a relativizar ou esconder a sua identidade cristã e as suas convicções.
Gera-se então um círculo vicioso, porque assim não se sentem felizes com o que são
nem com o que fazem, não se sentem identificados com a missão evangelizadora, e isto
debilita a entrega. Acabam assim por sufocar a alegria da missão numa espécie de obsessão
por serem como todos os outros e terem o que possuem os demais. Deste modo, a tarefa
da evangelização torna-se forçada e dedica-se-lhe pouco esforço e um tempo muito limitado.
80. Nos
agentes pastorais, independentemente do estilo espiritual ou da linha de pensamento
que possam ter, desenvolve-se um relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal.
Tem a ver com as opções mais profundas e sinceras que determinam uma forma de vida
concreta. Este relativismo prático é agir como se Deus não existisse, decidir como
se os pobres não existissem, sonhar como se os outros não existissem, trabalhar como
se aqueles que não receberam o anúncio não existissem. É impressionante como até aqueles
que aparentemente dispõem de sólidas convicções doutrinais e espirituais acabam, muitas
vezes, por cair num estilo de vida que os leva a agarrarem-se a seguranças económicas
ou a espaços de poder e de glória humana que se buscam por qualquer meio, em vez de
dar a vida pelos outros na missão. Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário!
Não
à acédia egoísta
81. Quando mais precisamos dum dinamismo missionário que
leve sal e luz ao mundo, muitos leigos temem que alguém os convide a realizar alguma
tarefa apostólica e procuram fugir de qualquer compromisso que lhes possa roubar o
tempo livre. Hoje, por exemplo, tornou-se muito difícil nas paróquias conseguir catequistas
que estejam preparados e perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo parecido
acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente com o seu tempo pessoal.
Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que as pessoas sentem imperiosamente necessidade
de preservar os seus espaços de autonomia, como se uma tarefa de evangelização fosse
um veneno perigoso e não uma resposta alegre ao amor de Deus que nos convoca para
a missão e nos torna completos e fecundos. Alguns resistem a provar até ao fundo o
gosto da missão e acabam mergulhados numa acédia paralisadora.
82. O problema
não está sempre no excesso de actividades, mas sobretudo nas actividades mal vividas,
sem as motivações adequadas, sem uma espiritualidade que impregne a acção e a torne
desejável. Daí que as obrigações cansem mais do que é razoável, e às vezes façam adoecer.
Não se trata duma fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável e, em definitivo,
não assumida. Esta acédia pastoral pode ter origens diversas: alguns caem nela por
sustentarem projectos irrealizáveis e não viverem de bom grado o que poderiam razoavelmente
fazer; outros, por não aceitarem a custosa evolução dos processos e querem que tudo
caia do Céu; outros, por se apegarem a alguns projectos ou a sonhos de sucesso cultivados
pela sua vaidade; outros, por terem perdido o contacto real com o povo, numa despersonalização
da pastoral que leva a prestar mais atenção à organização do que às pessoas, acabando
assim por se entusiasmarem mais com a «tabela de marcha» do que com a própria marcha;
outros ainda caem na acédia, por não saberem esperar e quererem dominar o ritmo da
vida. A ânsia hodierna de chegar a resultados imediatos faz com que os agentes pastorais
não tolerem facilmente tudo o que signifique alguma contradição, um aparente fracasso,
uma crítica, uma cruz.
83. Assim se gera a maior ameaça, que «é o pragmatismo
cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro da
normalidade, mas na realidade a fé vai-se deteriorando e degenerando na mesquinhez».
Desenvolve-se a psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos em
múmias de museu. Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou consigo mesmos, vivem
constantemente tentados a apegar-se a uma tristeza melosa, sem esperança, que se apodera
do coração como «o mais precioso elixir do demónio». Chamados para iluminar e comunicar
vida, acabam por se deixar cativar por coisas que só geram escuridão e cansaço interior
e corroem o dinamismo apostólico. Por tudo isto, permiti que insista: Não deixemos
que nos roubem a alegria da evangelização!
Não ao pessimismo estéril 84. A
alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar (cf. Jo 16,
22). Os males do nosso mundo – e os da Igreja – não deveriam servir como desculpa
para reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer.
Além disso, o olhar crente é capaz de reconhecer a luz que o Espírito Santo sempre
irradia no meio da escuridão, sem esquecer que, «onde abundou o pecado, superabundou
a graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em que a água
pode ser transformada, e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio. Cinquenta
anos depois do Concílio Vaticano II, apesar de nos entristecerem as misérias do nosso
tempo e estarmos longe de optimismos ingénuos, um maior realismo não deve significar
menor confiança no Espírito nem menor generosidade. Neste sentido, podemos voltar
a ouvir as palavras pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele memorável 11 de Outubro
de 1962: «Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas, ardorosas sem dúvida no zelo,
mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos actuais, não
vêem senão prevaricações e ruínas. [...] Mas a nós parece-nos que devemos discordar
desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se
estivesse iminente o fim do mundo. Na ordem presente das coisas, a misericordiosa
Providência está-nos levantando para uma ordem de relações humanas que, por obra dos
homens e a maior parte das vezes para além do que eles esperam, se encaminham para
o cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados, e tudo, mesmo as adversidades
humanas, converge para o bem da Igreja».
85. Uma das tentações mais sérias
que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação de derrota que nos transforma em pessimistas
lamurientos e desencantados com cara de vinagre. Ninguém pode empreender uma luta,
se de antemão não está plenamente confiado no triunfo. Quem começa sem confiança,
perdeu de antemão metade da batalha e enterra os seus talentos. Embora com a dolorosa
consciência das próprias fraquezas, há que seguir em frente, sem se dar por vencido,
e recordar o que disse o Senhor a São Paulo: «Basta-te a minha graça, porque a força
manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O triunfo cristão é sempre uma cruz,
mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se empunha com ternura
batalhadora contra as investidas do mal. O mau espírito da derrota é irmão da tentação
de separar prematuramente o trigo do joio, resultado de uma desconfiança ansiosa e
egocêntrica.
86. É verdade que, nalguns lugares, se produziu uma «desertificação»
espiritual, fruto do projecto de sociedades que querem construir sem Deus ou que destroem
as suas raízes cristãs. Lá, «o mundo cristão está a tornar-se estéril e se esgota
como uma terra excessivamente desfrutada que se transforma em poeira». Noutros países,
a resistência violenta ao cristianismo obriga os cristãos a viverem a sua fé às escondidas
no país que amam. Esta é outra forma muito triste de deserto. E a própria família
ou o lugar de trabalho podem ser também o tal ambiente árido, onde há que conservar
a fé e procurar irradiá-la. Mas «é precisamente a partir da experiência deste deserto,
deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital para
nós, homens e mulheres. No deserto, é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial
para a vida; assim sendo, no mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do
sentido último da vida, ainda que muitas vezes expressos implícita ou negativamente.
E, no deserto, existe sobretudo a necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias
vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança».
Em todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos outros.
Às vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz que
o Senhor, trespassado, Se nos entregou como fonte de água viva. Não deixemos que nos
roubem a esperança!
Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo
87. Neste
tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos
inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos,
misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco
caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa
caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de
comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre
todos. Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos trilhar este
caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é
provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá com cada opção egoísta
que fizermos.
88. O ideal cristão convidará sempre a superar a suspeita, a
desconfiança permanente, o medo de sermos invadidos, as atitudes defensivas que nos
impõe o mundo actual. Muitos tentam escapar dos outros fechando-se na sua privacidade
confortável ou no círculo reduzido dos mais íntimos, e renunciam ao realismo da dimensão
social do Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual,
sem carne nem cruz, também se pretendem relações interpessoais mediadas apenas por
sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas que se podem acender e apagar à vontade.
Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto
do outro, com a sua presença física que interpela, com o seu sofrimentos e suas reivindicações,
com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de
Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço,
da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos
à revolução da ternura.
89. O isolamento, que é uma concretização do imanentismo,
pode exprimir-se numa falsa autonomia que exclui Deus, mas pode também encontrar na
religião uma forma de consumismo espiritual à medida do próprio individualismo doentio.
O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa época. são fenómenos
ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente
à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas
alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não
encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz,
ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão
enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus.
90. As formas
próprias da religiosidade popular são encarnadas, porque brotaram da encarnação da
fé cristã numa cultura popular. Por isso mesmo, incluem uma relação pessoal, não com
energias harmonizadoras, mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm carne, têm
rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades relacionais e não tanto fugas individualistas.
Noutros sectores da nossa sociedade, cresce o apreço por várias formas de «espiritualidade
do bem-estar» sem comunidade, por uma «teologia da prosperidade» sem compromissos
fraternos ou por experiências subjectivas sem rostos, que se reduzem a uma busca interior
imanentista.
91. Um desafio importante é mostrar que a solução nunca consistirá
em escapar de uma relação pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos
comprometa com os outros. Isto é o que se verifica hoje quando os crentes procuram
esconder-se e livrar-se dos outros, e quando subtilmente escapam de um lugar para
outro ou de uma tarefa para outra, sem criar vínculos profundos e estáveis: «A imaginação
e mudança de lugares enganou a muitos». É um remédio falso que faz adoecer o coração
e, às vezes, o corpo. Faz falta ajudar a reconhecer que o único caminho é aprender
a encontrar os demais com a atitude adequada, que é valorizá-los e aceitá-los como
companheiros de estrada, sem resistências interiores. Melhor ainda, trata-se de aprender
a descobrir Jesus no rosto dos outros, na sua voz, nas suas reivindicações; e aprender
também a sofrer, num abraço com Jesus crucificado, quando recebemos agressões injustas
ou ingratidões, sem nos cansarmos jamais de optar pela fraternidade.
92. Nisto
está a verdadeira cura: de facto, o modo de nos relacionarmos com os outros que, em
vez de nos adoecer, nos cura é uma fraternidade mística, contemplativa, que
sabe ver a grandeza sagrada do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser humano,
que sabe tolerar as moléstias da convivência agarrando-se ao amor de Deus, que sabe
abrir o coração ao amor divino para procurar a felicidade dos outros como a procura
o seu Pai bom. Precisamente nesta época, inclusive onde são um «pequenino rebanho»
(Lc 12, 32), os discípulos do Senhor são chamados a viver como comunidade que
seja sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16). São chamados a testemunhar,
de forma sempre nova, uma pertença evangelizadora. Não deixemos que nos roubem a comunidade!
Não
ao mundanismo espiritual
93. O mundanismo espiritual, que se esconde por
detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez
da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal. É aquilo que o Senhor
censurava aos fariseus: «Como vos é possível acreditar, se andais à procura da glória
uns dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus único?» (Jo 5, 44).
É uma maneira subtil de procurar «os próprios interesses, não os interesses de Jesus
Cristo» (Fl 2, 21). Reveste-se de muitas formas, de acordo com o tipo de pessoas
e situações em que penetra. Por cultivar o cuidado da aparência, nem sempre suscita
pecados de domínio público, pelo que externamente tudo parece correcto. Mas, se invadisse
a Igreja, «seria infinitamente mais desastroso do que qualquer outro mundanismo meramente
moral».
94. Este mundanismo pode alimentar-se sobretudo de duas maneiras profundamente
relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjectivismo,
onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos
que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada
na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo
auto-referencial e prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças
e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente
fiel a um certo estilo católico próprio do passado. É uma suposta segurança doutrinal
ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de
evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à
graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem
os outros interessam verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo antropocêntrico.
Não é possível imaginar que, destas formas desvirtuadas do cristianismo, possa brotar
um autêntico dinamismo evangelizador.
95. Este obscuro mundanismo manifesta-se
em muitas atitudes, aparentemente opostas mas com a mesma pretensão de «dominar o
espaço da Igreja». Nalguns, há um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e
do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção
no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja
transforma-se numa peça de museu ou numa possessão de poucos. Noutros, o próprio mundanismo
espiritual esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas sociais e
políticas, ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou numa atracção
pelas dinâmicas de auto-estima e de realização autoreferencial. Também se pode traduzir
em várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia
de viagens, reuniões, jantares, recepções. Ou então desdobra-se num funcionalismo
empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o principal
beneficiário não é o povo de Deus mas a Igreja como organização. Em qualquer um dos
casos, não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se
em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas
multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma
autocomplacência egocêntrica.
96. Neste contexto, alimenta-se a vanglória de
quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados
antes que simples soldados dum batalhão que continua a lutar. Quantas vezes sonhamos
planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais
derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser história
de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância
no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é «suor do nosso rosto». Em vez disso,
entretemo-nos vaidosos a falar sobre «o que se deveria fazer» – o pecado do «deveriaqueísmo»
– como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora.
Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade
do nosso povo fiel.
97. Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de longe,
rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente
os erros alheios e vive obcecado pela aparência. Circunscreveu os pontos de referência
do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente,
não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. É uma tremenda
corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de
saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus
nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais! Este mundanismo
asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos
centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa vazia de Deus. Não deixemos
que nos roubem o Evangelho!
Não à guerra entre nós
98. Dentro
do povo de Deus e nas diferentes comunidades, quantas guerras! No bairro, no local
de trabalho, quantas guerras por invejas e ciúmes, mesmo entre cristãos! O mundanismo
espiritual leva alguns cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se interpõem
na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança económica. Além disso, alguns
deixam de viver uma adesão cordial à Igreja por alimentar um espírito de contenda.
Mais do que pertencer à Igreja inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a este
ou àquele grupo que se sente diferente ou especial.
99. O mundo está dilacerado
pelas guerras e a violência, ou ferido por um generalizado individualismo que divide
os seres humanos e põe-nos uns contra os outros visando o próprio bem-estar. Em vários
países, ressurgem conflitos e antigas divisões que se pensavam em parte superados.
Aos cristãos de todas as comunidades do mundo, quero pedir-lhes de modo especial um
testemunho de comunhão fraterna, que se torne fascinante e resplandecente. Que todos
possam admirar como vos preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais
animais e ajudais: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos
amardes uns aos outros» (Jo 13, 35). Foi o que Jesus, com uma intensa oração,
Jesus pediu ao Pai: «Que todos sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia» (Jo
17, 21). Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo barco e vamos para o mesmo
porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os frutos alheios, que são de todos.
100. Para
quantos estão feridos por antigas divisões, resulta difícil aceitar que os exortemos
ao perdão e à reconciliação, porque pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos
fazer-lhes perder a memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades
autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz que atrai. Por isso
me dói muito comprovar como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas,
se dá espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme,
a desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que parecem
uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes comportamentos?
101. Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que bom é termos
esta lei! Como nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns aos outros! Sim, apesar de
tudo! A cada um de nós é dirigida a exortação de Paulo: «Não te deixes vencer pelo
mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos de
fazer o bem» (Gal 6, 9). Todos nós provamos simpatias e antipatias, e talvez
neste momento estejamos chateados com alguém. Pelo menos digamos ao Senhor: «Senhor,
estou chateado com este, com aquela. Peço-Vos por ele e por ela». Rezar pela pessoa
com quem estamos irritados é um belo passo rumo ao amor, e é um acto de evangelização.
Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!
Outros
desafios eclesiais
102. A imensa maioria do povo de Deus é constituída
por leigos. Ao seu serviço, está uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a consciência
da identidade e da missão dos leigos na Igreja. Embora não suficiente, pode-se contar
com um numeroso laicado, dotado de um arreigado sentido de comunidade e uma grande
fidelidade ao compromisso da caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas, a tomada
de consciência desta responsabilidade laical que nasce do Baptismo e da Confirmação
não se manifesta de igual modo em toda a parte; nalguns casos, porque não se formaram
para assumir responsabilidades importantes, noutros por não encontrar espaço nas suas
Igrejas particulares para poderem exprimir-se e agir por causa dum excessivo clericalismo
que os mantém à margem das decisões. Apesar de se notar uma maior participação de
muitos nos ministérios laicais, este compromisso não se reflecte na penetração dos
valores cristãos no mundo social, político e económico; limita-se muitas vezes às
tarefas no seio da Igreja, sem um empenhamento real pela aplicação do Evangelho na
transformação da sociedade. A formação dos leigos e a evangelização das categorias
profissionais e intelectuais constituem um importante desafio pastoral.
103. A
Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma sensibilidade,
uma intuição e certas capacidades peculiares, que habitualmente são mais próprias
das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial solicitude feminina pelos outros,
que se exprime de modo particular, mas não exclusivamente, na maternidade. Vejo, com
prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais juntamente com
os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam
novas contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços
para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é necessário
em todas as expressões da vida social; por isso deve ser garantida a presença das
mulheres também no âmbito do trabalho» e nos vários lugares onde se tomam as decisões
importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
104. As reivindicações
dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres
têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se
podem iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo
Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão, mas
pode tornar-se particularmente controversa se se identifica demasiado a potestade
sacramental com o poder. Não se esqueça que, quando falamos da potestade sacerdotal,
«estamos na esfera da função e não na da dignidade e da santidade».
O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo,
mas a grande dignidade vem do Baptismo, que é acessível a todos. A configuração do
sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como fonte principal da graça – não comporta
uma exaltação que o coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão
justificação à superioridade de uns sobre os outros». Com efeito, uma mulher,
Maria, é mais importante do que os Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial
é considerada «hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente
à santidade dos membros do corpo místico de Cristo». A sua pedra de fecho e o seu
fulcro não são o poder entendido como domínio, mas a potestade de administrar o sacramento
da Eucaristia; daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui
está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a
reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres
onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja.
105. A
pastoral juvenil, tal como estávamos habituados a desenvolvê-la, sofreu o impacto
das mudanças sociais. Nas estruturas ordinárias, os jovens habitualmente não encontram
respostas para as suas preocupações, necessidades, problemas e feridas. A nós, adultos,
custa-nos ouvi-los com paciência, compreender as suas preocupações ou as suas reivindicações,
e aprender a falar-lhes na linguagem que eles entendem. Pela mesma razão, as propostas
educacionais não produzem os frutos esperados. A proliferação e o crescimento de associações
e movimentos predominantemente juvenis podem ser interpretados como uma acção do Espírito
que abre caminhos novos em sintonia com as suas expectativas e a busca de espiritualidade
profunda e dum sentido mais concreto de pertença. Todavia é necessário tornar mais
estável a participação destas agregações no âmbito da pastoral de conjunto da Igreja.
106. Embora nem sempre seja fácil abordar os jovens, houve crescimento em
dois aspectos: a consciência de que toda a comunidade os evangeliza e educa, e a urgência
de que eles tenham um protagonismo maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto
de crise do compromisso e dos laços comunitários, são muitos os jovens que se solidarizam
contra os males do mundo, aderindo a várias formas de militância e voluntariado. Alguns
participam na vida da Igreja, integram grupos de serviço e diferentes iniciativas
missionárias nas suas próprias dioceses ou noutros lugares. Como é bom que os jovens
sejam «caminheiros da fé», felizes por levarem Jesus Cristo a cada esquina, a cada
praça, a cada canto da terra!
107. Em muitos lugares, há escassez de vocações
ao sacerdócio e à vida consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta de
ardor apostólico contagioso nas comunidades, pelo que estas não entusiasmam nem fascinam.
Onde há vida, fervor, paixão de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas.
Mesmo em paróquias onde os sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é a vida
fraterna e fervorosa da comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente
a Deus e à evangelização, especialmente se essa comunidade vivente reza insistentemente
pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens um caminho de especial consagração.
Por outro lado, apesar da escassez vocacional, hoje temos noção mais clara da necessidade
de melhor selecção dos candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os seminários
com qualquer tipo de motivações, e menos ainda se estas estão relacionadas com insegurança
afectiva, busca de formas de poder, glória humana ou bem-estar económico.
108. Como
já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo, mas convido as comunidades
a completarem e a enriquecerem estas perspectivas a partir da consciência dos desafios
próprios e das comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em conta que,
todas as vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade actual, é conveniente
ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a esperança dos povos. Os idosos
fornecem a memória e a sabedoria da experiência, que convida a não repetir tontamente
os mesmos erros do passado. Os jovens chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança,
porque trazem consigo as novas tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de
modo que não fiquemos encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não
são fonte de vida no mundo actual.
109. Os desafios existem para ser superados.
Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança.
Não deixemos que nos roubem a força missionária!
Capítulo III O
ANÚNCIO DO EVANGELHO
110. Depois de considerar alguns desafios da realidade
actual, quero agora recordar o dever que incumbe sobre nós em toda e qualquer época
e lugar, porque «não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito
de Jesus como Senhor» e sem existir uma «primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer
trabalho de evangelização». Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos, João
Paulo II afirmou que, se a Igreja «deve realizar o seu destino providencial, então
uma evangelização entendida como o jubiloso, paciente e progressivo anúncio da Morte
salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser a vossa prioridade absoluta». Isto
é válido para todos.
1. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho
111. A
evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do que
uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para
Deus. Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes na Trindade,
mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que sempre
transcende toda a necessária expressão institucional. Proponho que nos detenhamos
um pouco nesta forma de compreender a Igreja, que tem o seu fundamento último na iniciativa
livre e gratuita de Deus.
Um povo para todos
112. A salvação,
que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia. Não há acção humana, por melhor
que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para
nos unir a Si. Envia o seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer seus filhos,
para nos transformar e tornar capazes de responder com a nossa vida ao seu amor. A
Igreja é enviada por Jesus Cristo como sacramento da salvação oferecida por Deus.
Através da sua acção evangelizadora, ela colabora como instrumento da graça divina,
que opera incessantemente para além de toda e qualquer possível supervisão. Bem o
exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões do Sínodo: «É sempre importante saber que
a primeira palavra, a iniciativa verdadeira, a actividade verdadeira vem de Deus e
só inserindo-nos nesta iniciativa divina, só implorando esta iniciativa divina, nos
podemos tornar também – com Ele e n'Ele – evangelizadores». O princípio da primazia
da graça deve ser um farol que ilumine constantemente as nossas reflexões sobre
a evangelização.
113. Esta salvação, que Deus realiza e a Igreja jubilosamente
anuncia, é para todos, e Deus criou um caminho para Se unir a cada um dos seres humanos
de todos os tempos. Escolheu convocá-los como povo, e não como seres isolados. Ninguém
se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças.
Deus atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida
numa comunidade humana supõe. Este povo, que Deus escolheu para Si e convocou, é a
Igreja. Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um grupo de
elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos» (Mt 28, 19).
São Paulo afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não há judeu nem grego (...), porque
todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu gostaria de dizer àqueles
que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou aos indiferentes: o Senhor
também te chama para seres parte do seu povo, e fá-lo com grande respeito e amor!
114. Ser
Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande projecto de amor do Pai.
Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar e levar
a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado
de ter respostas que encorajem, dêem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja
deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos,
amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho.
Um
povo com muitos rostos
115. Este Povo de Deus encarna-se nos povos da
Terra, cada um dos quais tem a sua cultura própria. A noção de cultura é um instrumento
precioso para compreender as diversas expressões da vida cristã que existem no povo
de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma determinada sociedade possui, da forma
peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas
e com Deus. Assim entendida, a cultura abrange a totalidade da vida dum povo. Cada
povo, na sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura com legítima autonomia.
Isso fica-se a dever ao facto de que a pessoa humana, «por sua natureza, necessita
absolutamente da vida social» e mantém contínua referência à sociedade, na qual vive
uma maneira concreta de se relacionar com a realidade. O ser humano está sempre culturalmente
situado: «natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas». A graça supõe a cultura,
e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe.
116. Ao longo destes
dois milénios de cristianismo, uma quantidade inumerável de povos recebeu a graça
da fé, fê-la florir na sua vida diária e transmitiu-a segundo as próprias modalidades
culturais. Quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda
a sua cultura com a força transformadora do Evangelho. E assim, como podemos ver na
história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas «permanecendo
o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o cristianismo
assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido
e se radicar». Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria
cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra «a beleza deste rosto
pluriforme». Através das manifestações cristãs dum povo evangelizado, o Espírito Santo
embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e presenteando-a com
um novo rosto. Pela inculturação, a Igreja «introduz os povos com as suas culturas
na sua própria comunidade», porque «cada cultura oferece formas e valores positivos
que podem enriquecer o modo como o Evangelho é pregado, compreendido e vivido». Assim,
«a Igreja, assumindo os valores das diversas culturas, torna-se sponsa ornata monilibus
suis, a noiva que se adorna com suas jóias (cf. Is 61, 10)».
117. Se
for bem entendida, a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja. É o Espírito
Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que transforma os nossos corações e nos torna capazes
de entrar na comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo encontra a sua unidade.
O Espírito Santo constrói a comunhão e a harmonia do povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia,
tal como é o vínculo de amor entre o Pai e o Filho. É Ele que suscita uma abundante
e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca
é uniformidade, mas multiforme harmonia que atrai. A evangelização reconhece com alegria
estas múltiplas riquezas que o Espírito gera na Igreja. Não faria justiça à lógica
da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas
culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento
do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas
e possui um conteúdo transcultural. Por isso, na evangelização de novas culturas ou
de culturas que não acolheram a pregação cristã, não é indispensável impor uma determinada
forma cultural, por mais bela e antiga que seja, juntamente com a proposta do Evangelho.
A mensagem, que anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes,
na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais
fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.
118. Os Bispos da Oceânia
pediram que a Igreja neste continente «desenvolva uma compreensão e exposição da verdade
de Cristo partindo das tradições e culturas locais», e instaram todos os missionários
«a trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para garantir que a doutrina e
a vida da Igreja sejam expressas em formas legítimas e apropriadas a cada cultura».
Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé
cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos povos europeus num determinado momento
da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e
expressão duma cultura. É indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério
da redenção de Cristo.
Todos somos discípulos missionários
119. Em
todos os baptizados, desde o primeiro ao último, actua a força santificadora do Espírito
que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta unção, que o torna
infalível «in credendo», ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não
encontre palavras para explicar a sua fé. O Espírito guia-o na verdade e condu-lo
à salvação. Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a totalidade
dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir
o que vem realmente de Deus. A presença do Espírito confere aos cristãos uma certa
conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las
intuitivamente, embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão.
120. Em
virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário
(cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados, independentemente da própria função
na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo de evangelização,
e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes qualificados
enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas acções. A nova evangelização
deve implicar um novo protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção transforma-se
num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu compromisso de
evangelização, porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de Deus que
o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode
esperar que lhe dêem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário
na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não digamos mais
que somos «discípulos» e «missionários», mas sempre que somos «discípulos missionários».
Se não estivermos convencidos disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo
depois de terem conhecido o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria:
«Encontrámos o Messias» (Jo 1, 41). A Samaritana, logo que terminou o seu diálogo
com Jesus, tornou-se missionária, e muitos samaritanos acreditaram em Jesus «devido
às palavras da mulher» (Jo 4, 39). Também São Paulo, depois do seu encontro
com Jesus Cristo, «começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus era o Filho de
Deus» (Act 9, 20). Porque esperamos nós?
121. Certamente todos somos
chamados a crescer como evangelizadores. Devemos procurar simultaneamente uma melhor
formação, um aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho.
Neste sentido, todos devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente;
isto não significa que devemos renunciar à missão evangelizadora, mas encontrar o
modo de comunicar Jesus que corresponda à situação em que vivemos. Seja como for,
todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do
Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua
Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não
é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver
e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros. A nossa imperfeição não
deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos
na mediocridade, mas continuarmos a crescer. O testemunho de fé, que todo o cristão
é chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo: «Não que já o tenha alcançado
ou já seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço, (…) lançando-me para o que vem
à frente» (Fl 3, 12-13).
A força evangelizadora da piedade popular
122. Da
mesma forma, podemos pensar que os diferentes povos, nos quais foi inculturado o Evangelho,
são sujeitos colectivos activos, agentes da evangelização. Assim é, porque cada povo
é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é algo de dinâmico,
que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à seguinte um conjunto
de atitudes relativas às diversas situações existenciais, que esta nova geração deve
reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano «é simultaneamente filho e pai
da cultura onde está inserido». Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu
processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre nova; daí
a importância da evangelização entendida como inculturação. Cada porção do povo de
Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria, dá testemunho
da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode dizer-se
que «o povo se evangeliza continuamente a si mesmo». Aqui ganha importância a piedade
popular, verdadeira expressão da actividade missionária espontânea do povo de Deus.
Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito
Santo.
123. Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em que a fé recebida
se encarnou numa cultura e continua a transmitir-se. Vista por vezes com desconfiança,
a piedade popular foi objecto de revalorização nas décadas posteriores ao Concílio.
Quem deu um impulso decisivo nesta direcção, foi Paulo VI na sua Exortação Apostólica
Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade popular «traduz em si uma certa
sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar» e «torna as pessoas
capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao
heroísmo, quando se trata de manifestar a fé». Já mais perto dos nossos dias, Bento
XVI, na América Latina, assinalou que se trata de um «precioso tesouro da Igreja Católica»
e que nela «aparece a alma dos povos latino-americanos».
124. No Documento
de Aparecida, descrevem-se as riquezas que o Espírito Santo explicita na piedade
popular por sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente, onde uma multidão imensa
de cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, os Bispos chamam-na também
«espiritualidade popular» ou «mística popular». Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade
encarnada na cultura dos simples». Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os
mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental e, no acto de fé, acentua
mais o credere in Deum que o credere Deum. É «uma maneira legítima de
viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionários»;
comporta a graça da missionariedade, do sair de si e do peregrinar: «O caminhar juntos
para os santuários e o participar em outras manifestações da piedade popular, levando
também os filhos ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador».
Não coarctemos nem pretendamos controlar esta força missionária!
125. Para
compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não
procura julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade afectiva que dá o amor é que
podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente
nos pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que se agarram
a um terço ainda que não saibam elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de
esperança contida numa vela que se acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria,
ou nos olhares de profundo amor a Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus,
não pode ver estas acções unicamente como uma busca natural da divindade; são a manifestação
duma vida teologal animada pela acção do Espírito Santo, que foi derramado em nossos
corações (cf. Rm 5, 5).
126. Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho
inculturado, subjaz uma força activamente evangelizadora que não podemos subestimar:
seria ignorar a obra do Espírito Santo. Ao contrário, somos chamados a encorajá-la
e fortalecê-la para aprofundar o processo de inculturação, que é uma realidade nunca
acabada. As expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as
sabe ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção particularmente
na hora de pensar a nova evangelização.
De pessoa a pessoa
127. Hoje
que a Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária, há uma forma de pregação
que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas
com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação
informal que se pode realizar durante uma conversa, e é também a que realiza um missionário
quando visita um lar. Ser discípulo significa ter a disposição permanente de levar
aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua,
na praça, no trabalho, num caminho.
128. Nesta pregação, sempre respeitosa
e amável, o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime
e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os seus entes
queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois desta conversa é que se pode
apresentar-lhe a Palavra, seja pela leitura de algum versículo ou de modo narrativo,
mas sempre recordando o anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem,
entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a sua amizade. É
o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem sempre sabe
aprender, com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda que sempre
nos ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais directa, outras através dum
testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio Espírito
Santo possa suscitar numa circunstância concreta. Se parecer prudente e houver condições,
é bom que este encontro fraterno e missionário conclua com uma breve oração que se
relacione com as preocupações que a pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais claramente
que foi ouvida e interpretada, que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá
que a Palavra de Deus fala realmente à sua própria vida.
129. Contudo não se
deve pensar que o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas
fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo absolutamente
invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria impossível descrevê-las
ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é o povo de Deus com seus gestos e sinais
inumeráveis. Por conseguinte, se o Evangelho se encarnou numa cultura, já não se comunica
apenas através do anúncio de pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos
países onde o cristianismo é minoria, para além de animar cada baptizado a anunciar
o Evangelho, as Igrejas particulares hão-de promover activamente formas, pelo menos
incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar é que a pregação do Evangelho,
expressa com categorias próprias da cultura onde é anunciado, provoque uma nova síntese
com essa cultura. Embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos
demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível
que, em vez de sermos criativos, nos deixemos simplesmente ficar cómodos sem provocar
qualquer avanço e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos
com a nossa cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja.
Carismas
ao serviço da comunhão evangelizadora
130. O Espírito Santo enriquece toda
a Igreja evangelizadora também com diferentes carismas. São dons para renovar e edificar
a Igreja. Não se trata de um património fechado, entregue a um grupo para que o guarde;
mas são presentes do Espírito integrados no corpo eclesial, atraídos para o centro
que é Cristo, donde são canalizados num impulso evangelizador. Um sinal claro da autenticidade
dum carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se integrar harmoniosamente
na vida do povo santo de Deus para o bem de todos. Uma verdadeira novidade suscitada
pelo Espírito não precisa de fazer sombra sobre outras espiritualidades e dons para
se afirmar a si mesma. Quanto mais um carisma dirigir o seu olhar para o coração do
Evangelho, tanto mais eclesial será o seu exercício. É na comunhão, mesmo que seja
fadigosa, que um carisma se revela autêntica e misteriosamente fecundo. Se vive este
desafio, a Igreja pode ser um modelo para a paz no mundo.
131. As diferenças
entre as pessoas e as comunidades por vezes são incómodas, mas o Espírito Santo, que
suscita esta diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo
evangelizador que actua por atracção. A diversidade deve ser sempre conciliada com
a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade
e, ao mesmo tempo, realizar a unidade. Ao invés, quando somos nós que pretendemos
a diversidade e nos fechamos em nossos particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos
a divisão; e, por outro lado, quando somos nós que queremos construir a unidade com
os nossos planos humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação. Isto não
ajuda a missão da Igreja.
Cultura, pensamento e educação
132. O
anúncio às culturas implica também um anúncio às culturas profissionais, científicas
e académicas. É o encontro entre a fé, a razão e as ciências, que visa desenvolver
um novo discurso sobre a credibilidade, uma apologética original que ajude a criar
as predisposições para que o Evangelho seja escutado por todos. Quando algumas categorias
da razão e das ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se
instrumentos de evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez
assumido, não só é redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e
renovar o mundo.
133. Uma vez que não basta a preocupação do evangelizador
por chegar a cada pessoa, mas o Evangelho também se anuncia às culturas no seu conjunto,
a teologia – e não só a teologia pastoral – em diálogo com outras ciências e experiências
humanas tem grande importância para pensar como fazer chegar a proposta do Evangelho
à variedade dos contextos culturais e dos destinatários. A Igreja, comprometida na
evangelização, aprecia e encoraja o carisma dos teólogos e o seu esforço na investigação
teológica, que promove o diálogo com o mundo da cultura e da ciência. Faço apelo aos
teólogos para que cumpram este serviço como parte da missão salvífica da Igreja. Mas,
para isso, é necessário que tenham a peito a finalidade evangelizadora da Igreja e
da própria teologia, e não se contentem com uma teologia de gabinete.
134. As
universidades são um âmbito privilegiado para pensar e desenvolver este compromisso
de evangelização de modo interdisciplinar e inclusivo. As escolas católicas, que sempre
procuram conjugar a tarefa educacional com o anúncio explícito do Evangelho, constituem
uma contribuição muito válida para a evangelização da cultura, mesmo em países e cidades
onde uma situação adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade para se encontrar
os caminhos adequados.
2. A homilia
135. Consideremos agora
a pregação dentro da Liturgia, que requer uma séria avaliação por parte dos Pastores.
Deter-me-ei particularmente, e até com certa meticulosidade, na homilia e sua preparação,
porque são muitas as reclamações relacionadas com este ministério importante, e não
podemos fechar os ouvidos. A homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade
e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os fiéis
lhe dão muita importância; e, muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros
ordenados sofrem: uns a ouvir e os outros a pregar. É triste que assim seja. A homilia
pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador encontro
com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento.
136. Renovemos
a nossa confiança na pregação, que se funda na convicção de que é Deus que deseja
alcançar os outros através do pregador e de que Ele mostra o seu poder através da
palavra humana. São Paulo fala vigorosamente sobre a necessidade de pregar, porque
o Senhor quis chegar aos outros por meio também da nossa palavra (cf. Rm 10,
14-17). Com a palavra, Nosso Senhor conquistou o coração da gente. De todas as partes,
vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45). Ficavam maravilhados, «bebendo» os seus
ensinamentos (cf. Mc 6, 2). Sentiam que lhes falava como quem tem autoridade
(cf. Mc 1, 27). E os Apóstolos, que Jesus estabelecera «para estarem com Ele
e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraíram para o seio da Igreja todos
os povos com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).
O contexto litúrgico
137. Agora
é oportuno recordar que «a proclamação litúrgica da Palavra de Deus, principalmente
no contexto da assembleia eucarística, não é tanto um momento de meditação e de catequese,
como sobretudo o diálogo de Deus com o seu povo, no qual se proclamam as maravilhas
da salvação e se propõem continuamente as exigências da Aliança». Reveste-se de um
valor especial a homilia, derivado do seu contexto eucarístico, que supera toda a
catequese por ser o momento mais alto do diálogo entre Deus e o seu povo, antes da
comunhão sacramental. A homilia é um retomar este diálogo que já está estabelecido
entre o Senhor e o seu povo. Aquele que prega deve conhecer o coração da sua comunidade
para identificar onde está vivo e ardente o desejo de Deus e também onde é que este
diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar fruto.
138. A homilia não pode
ser um espectáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos recursos mediáticos,
mas deve dar fervor e significado à celebração. É um género peculiar, já que se trata
de uma pregação no quadro duma celebração litúrgica; por conseguinte, deve
ser breve e evitar que se pareça com uma conferência ou uma lição. O pregador pode
até ser capaz de manter vivo o interesse das pessoas por uma hora, mas assim a sua
palavra torna-se mais importante que a celebração da fé. Se a homilia se prolonga
demasiado, lesa duas características da celebração litúrgica: a harmonia entre as
suas partes e o seu ritmo. Quando a pregação se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se
como parte da oferenda que se entrega ao Pai e como mediação da graça que Cristo derrama
na celebração. Este mesmo contexto exige que a pregação oriente a assembleia, e também
o pregador, para uma comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a vida. Isto
requer que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o Senhor brilhe
mais que o ministro.
A conversa da mãe
139. Dissemos que o povo
de Deus, pela acção constante do Espírito nele, se evangeliza continuamente a si mesmo.
Que implicações tem esta convicção para o pregador? Lembra-nos que a Igreja é mãe
e prega ao povo como uma mãe fala ao seu filho, sabendo que o filho tem confiança
de que tudo o que se lhe ensina é para seu bem, porque se sente amado. Além disso,
a boa mãe sabe reconhecer tudo o que Deus semeou no seu filho, escuta as suas preocupações
e aprende com ele. O espírito de amor que reina numa família guia tanto a mãe como
o filho nos seus diálogos, nos quais se ensina e aprende, se corrige e valoriza o
que é bom; assim deve acontecer também na homilia. O Espírito que inspirou os Evangelhos
e actua no povo de Deus, inspira também como se deve escutar a fé do povo e como se
deve pregar em cada Eucaristia. Portanto a pregação cristã encontra, no coração da
cultura do povo, um manancial de água viva tanto para saber o que se deve dizer como
para encontrar o modo mais apropriado para o dizer. Assim como todos gostamos que
nos falem na nossa língua materna, assim também, na fé, gostamos que nos falem em
termos da «cultura materna», em termos do idioma materno (cf. 2 Mac 7, 21.27),
e o coração dispõe-se a ouvir melhor. Esta linguagem é uma tonalidade que transmite
coragem, inspiração, força, impulso.
140. Este âmbito materno-eclesial, onde
se desenrola o diálogo do Senhor com o seu povo, deve ser encarecido e cultivado através
da proximidade cordial do pregador, do tom caloroso da sua voz, da mansidão do estilo
das suas frases, da alegria dos seus gestos. Mesmo que às vezes a homilia seja um
pouco maçante, se houver este espírito materno-eclesial, será sempre fecunda, tal
como os conselhos maçantes duma mãe, com o passar do tempo, dão fruto no coração dos
filhos.
141. Ficamos admirados com os recursos empregues pelo Senhor para
dialogar com o seu povo, revelar o seu mistério a todos, cativar a gente comum com
ensinamentos tão elevados e exigentes. Creio que o segredo de Jesus esteja escondido
naquele seu olhar o povo mais além das suas fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino
rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus prega
com este espírito. Transbordando de alegria no Espírito, bendiz o Pai por Lhe atrair
os pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas
coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos» (Lc 10,
21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em dialogar com o seu povo, e compete ao
pregador fazer sentir este gosto do Senhor ao seu povo.
Palavras que abrasam
os corações
142. Um diálogo é muito mais do que a comunicação duma verdade.
Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através das palavras
entre aqueles que se amam. É um bem que não consiste em coisas, mas nas próprias pessoas
que mutuamente se dão no diálogo. A pregação puramente moralista ou doutrinadora e
também a que se transforma numa lição de exegese reduzem esta comunicação entre os
corações que se verifica na homilia e que deve ter um carácter quase sacramental:
«A fé surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de Cristo» (Rm 10,
17). Na homilia, a verdade anda de mãos dadas com a beleza e o bem. Não se trata de
verdades abstractas ou de silogismos frios, porque se comunica também a beleza das
imagens que o Senhor utilizava para incentivar a prática do bem. A memória do povo
fiel, como a de Maria, deve ficar transbordante das maravilhas de Deus. O seu coração,
esperançado na prática alegre e possível do amor que lhe foi anunciado, sente que
toda a palavra na Escritura, antes de ser exigência, é dom.
143. O desafio
duma pregação inculturada consiste em transmitir a síntese da mensagem evangélica,
e não ideias ou valores soltos. Onde está a tua síntese, ali está o teu coração. A
diferença entre fazer luz com sínteses e o fazê-lo com ideias soltas é a mesma que
há entre o ardor do coração e o tédio. O pregador tem a belíssima e difícil missão
de unir os corações que se amam: o do Senhor e os do seu povo. O diálogo entre Deus
e o seu povo reforça ainda mais a aliança entre ambos e estreita o vínculo da caridade.
Durante o tempo da homilia, os corações dos crentes fazem silêncio e deixam-No falar
a Ele. O Senhor e o seu povo falam-se de mil e uma maneiras directamente, sem intermediários,
mas, na homilia, querem que alguém sirva de instrumento e exprima os sentimentos,
de modo que, depois, cada um possa escolher como continuar a sua conversa. A palavra
é, essencialmente, mediadora e necessita não só dos dois dialogantes mas também de
um pregador que a represente como tal, convencido de que «não nos pregamos a nós mesmos,
mas a Cristo Jesus, o Senhor, e nos consideramos vossos servos, por amor de Jesus»
(2 Cor 4, 5).
144. Falar com o coração implica mantê-lo não só ardente,
mas também iluminado pela integridade da Revelação e pelo caminho que essa Palavra
percorreu no coração da Igreja e do nosso povo fiel ao longo da sua história. A identidade
cristã, que é aquele abraço baptismal que o Pai nos deu em pequeninos, faz-nos anelar,
como filhos pródigos – e predilectos em Maria –, pelo outro abraço, o do Pai misericordioso
que nos espera na glória. Fazer com que o nosso povo se sinta, de certo modo, no meio
destes dois abraços é a tarefa difícil, mas bela, de quem prega o Evangelho.
3.
A preparação da pregação
145. A preparação da pregação é uma tarefa tão
importante que convém dedicar-lhe um tempo longo de estudo, oração, reflexão e criatividade
pastoral. Com muita amizade, quero deter-me a propor um itinerário de preparação da
homilia. Trata-se de indicações que, para alguns, poderão parecer óbvias, mas considero
oportuno sugeri-las para recordar a necessidade de dedicar um tempo privilegiado a
este precioso ministério. Alguns párocos sustentam frequentemente que isto não é possível
por causa de tantas incumbências que devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir
que todas as semanas se dedique a esta tarefa um tempo pessoal e comunitário suficientemente
longo, mesmo que se tenha de dar menos tempo a outras tarefas também importantes.
A confiança no Espírito Santo que actua na pregação não é meramente passiva, mas activa
e criativa. Implica oferecer-se como instrumento (cf. Rm 12, 1), com
todas as próprias capacidades, para que possam ser utilizadas por Deus. Um pregador
que não se prepara não é «espiritual»: é desonesto e irresponsável quanto aos dons
que recebeu.
O culto da verdade
146. O primeiro passo, depois
de invocar o Espírito Santo, é prestar toda a atenção ao texto bíblico, que deve ser
o fundamento da pregação. Quando alguém se detém procurando compreender qual é a mensagem
dum texto, exerce o «culto da verdade». É a humildade do coração que reconhece que
a Palavra sempre nos transcende, que somos, «não os árbitros nem os proprietários,
mas os depositários, os arautos e os servidores». Esta atitude de humilde e deslumbrada
veneração da Palavra exprime-se detendo-se a estudá-la com o máximo cuidado e com
um santo temor de a manipular. Para se poder interpretar um texto bíblico, faz falta
paciência, pôr de parte toda a ansiedade e atribuir-lhe tempo, interesse e dedicação
gratuita. Há que pôr de lado qualquer preocupação que nos inquiete, para entrar
noutro âmbito de serena atenção. Não vale a pena dedicar-se a ler um texto bíblico,
se aquilo que se quer obter são resultados rápidos, fáceis ou imediatos. Por isso,
a preparação da pregação requer amor. Uma pessoa só dedica um tempo gratuito e sem
pressa às coisas ou às pessoas que ama; e aqui trata-se de amar a Deus, que quis falar.
A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se todo o tempo que for necessário, com
a atitude dum discípulo: «Fala, Senhor; o teu servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em
primeiro lugar, convém estarmos seguros de compreender adequadamente o significado
das palavras que lemos. Quero insistir em algo que parece evidente, mas que
nem sempre é tido em conta: o texto bíblico, que estudamos, tem dois ou três mil anos,
a sua linguagem é muito diferente da que usamos agora. Por mais que nos pareça termos
entendido as palavras, que estão traduzidas na nossa língua, isso não significa que
compreendemos correctamente tudo o que o escritor sagrado queria exprimir. São conhecidos
os vários recursos que proporciona a análise literária: prestar atenção às palavras
que se repetem ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o dinamismo próprio dum texto,
considerar o lugar que ocupam os personagens, etc. Mas o objectivo não é o de compreender
todos os pequenos detalhes dum texto; o mais importante é descobrir qual é a mensagem
principal, a mensagem que confere estrutura e unidade ao texto. Se o pregador
não faz este esforço, é possível que também a sua pregação não tenha unidade nem ordem;
o seu discurso será apenas uma súmula de várias ideias desarticuladas que não conseguirão
mobilizar os outros. A mensagem central é aquela que o autor quis primariamente transmitir,
o que implica identificar não só uma ideia mas também o efeito que esse autor quis
produzir. Se um texto foi escrito para consolar, não deveria ser utilizado para corrigir
erros; se foi escrito para exortar, não deveria ser utilizado para instruir; se foi
escrito para ensinar algo sobre Deus, não deveria ser utilizado para explicar várias
opiniões teológicas; se foi escrito para levar ao louvor ou ao serviço missionário,
não o utilizemos para informar sobre as últimas notícias.
148. É verdade que,
para se entender adequadamente o sentido da mensagem central dum texto, é preciso
colocá-lo em ligação com o ensinamento da Bíblia inteira, transmitida pela Igreja.
Este é um princípio importante da interpretação bíblica, que tem em conta que o Espírito
Santo não inspirou só uma parte, mas a Bíblia inteira, e que, nalgumas questões, o
povo cresceu na sua compreensão da vontade de Deus a partir da experiência vivida.
Assim se evitam interpretações equivocadas ou parciais, que contradizem outros ensinamentos
da mesma Escritura. Mas isto não significa enfraquecer a acentuação própria e específica
do texto que se deve pregar. Um dos defeitos duma pregação enfadonha e ineficaz é
precisamente não poder transmitir a força própria do texto que foi proclamado.
A
personalização da Palavra
149. O pregador «deve ser o primeiro a desenvolver
uma grande familiaridade pessoal com a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer o aspecto
linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; precisa de se abeirar da Palavra
com o coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos
e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade». Faz-nos bem renovar, cada dia, cada
domingo, o nosso ardor na preparação da homilia, e verificar se, em nós mesmos, cresce
o amor pela Palavra que pregamos. É bom não esquecer que, «particularmente, a maior
ou menor santidade do ministro influi sobre o anúncio da Palavra». Como diz São Paulo,
«falamos, não para agradar aos homens, mas a Deus que põe à prova os nossos corações»
(1 Ts 2, 4). Se está vivo este desejo de, primeiro, ouvirmos nós a Palavra
que temos de pregar, esta transmitir-se-á duma maneira ou doutra ao povo fiel de Deus:
«A boca fala da abundância do coração» (Mt 12, 34). As leituras do domingo
ressoarão com todo o seu esplendor no coração do povo, se primeiro ressoarem assim
no coração do Pastor.
150. Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres, muito
exigentes com os outros, que ensinavam a Palavra de Deus mas não se deixavam iluminar
por ela: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros,
mas eles não põem nem um dedo para os deslocar» (Mt 23, 4). E o Apóstolo São
Tiago exortava: «Meus irmãos, não haja muitos entre vós que pretendam ser mestres,
sabendo que nós teremos um julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser pregar, deve
primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na sua vida
concreta. Assim, a pregação consistirá na actividade tão intensa e fecunda que é «comunicar
aos outros o que foi contemplado». Por tudo isto, antes de preparar concretamente
o que vai dizer na pregação, o pregador tem que aceitar ser primeiro trespassado por
essa Palavra que há-de trespassar os outros, porque é uma Palavra viva e eficaz,
que, como uma espada, «penetra até à divisão da alma e do corpo, das articulações
e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração» (Heb 4, 12).
Isto tem um valor pastoral. Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as testemunhas:
«Tem sede de autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe falem de um Deus
que eles conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o invisível».
151. Não
nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo
profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços. Indispensável
é que o pregador esteja seguro de que Deus o ama, de que Jesus Cristo o salvou, de
que o seu amor tem sempre a última palavra. À vista de tanta beleza, sentirá muitas
vezes que a sua vida não lhe dá plenamente glória e desejará sinceramente corresponder
melhor a um amor tão grande. Todavia, se não se detém com sincera abertura a escutar
esta Palavra, se não deixa que a mesma toque a sua vida, que o interpele, exorte,
mobilize, se não dedica tempo para rezar com esta Palavra, então na realidade será
um falso profeta, um embusteiro ou um charlatão vazio. Em todo o caso, desde que reconheça
a sua pobreza e deseje comprometer-se mais, sempre poderá dar Jesus Cristo, dizendo
como Pedro: «Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou» (Act 3,
6). O Senhor quer servir-Se de nós como seres vivos, livres e criativos, que se deixam
penetrar pela sua Palavra antes de a transmitir; a sua mensagem deve passar realmente
através do pregador, e não só pela sua razão, mas tomando posse de todo o seu ser.
O Espírito Santo, que inspirou a Palavra, é quem «hoje ainda, como nos inícios da
Igreja, age em cada um dos evangelizadores que se deixa possuir e conduzir por Ele,
e põe na sua boca as palavras que ele sozinho não poderia encontrar».
A
leitura espiritual
152. Há uma modalidade concreta para escutarmos aquilo
que o Senhor nos quer dizer na sua Palavra e nos deixarmos transformar pelo Espírito:
designamo-la por «lectio divina». Consiste na leitura da Palavra de Deus num
tempo de oração, para lhe permitir que nos ilumine e renove. Esta leitura orante da
Bíblia não está separada do estudo que o pregador realiza para individuar a mensagem
central do texto; antes pelo contrário, é dela que deve partir para procurar descobrir
aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer à sua própria vida. A leitura espiritual
dum texto deve partir do seu sentido literal. Caso contrário, uma pessoa facilmente
fará o texto dizer o que lhe convém, o que serve para confirmar as suas próprias decisões,
o que se adapta aos seus próprios esquemas mentais. E isto seria, em última análise,
usar o sagrado para proveito próprio e passar esta confusão para o povo de Deus. Nunca
devemos esquecer-nos de que, por vezes, «também Satanás se disfarça em anjo de luz»
(2 Cor 11, 14).
153. Na presença de Deus, numa leitura tranquila do
texto, é bom perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim que me diz este texto?
Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que me dá fastídio neste
texto? Porque é que isto não me interessa?»; ou então: «De que gosto? Em que me estimula
esta Palavra? Que me atrai? E porque me atrai?». Quando se procura ouvir o Senhor,
é normal ter tentações. Uma delas é simplesmente sentir-se chateado e acabrunhado
e dar tudo por encerrado; outra tentação muito comum é começar a pensar naquilo que
o texto diz aos outros, para evitar de o aplicar à própria vida. Acontece também começar
a procurar desculpas, que nos permitam diluir a mensagem específica do texto. Outras
vezes pensamos que Deus nos exige uma decisão demasiado grande, que ainda não estamos
em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas a perderem a alegria do encontro com
a Palavra, mas isso significaria esquecer que ninguém é mais paciente do que Deus
Pai, ninguém compreende e sabe esperar como Ele. Deus convida sempre a dar um passo
mais, mas não exige uma resposta completa, se ainda não percorremos o caminho que
a torna possível. Apenas quer que olhemos com sinceridade a nossa vida e a apresentemos
sem fingimento diante dos seus olhos, que estejamos dispostos a continuar a crescer,
e peçamos a Ele o que ainda não podemos conseguir.
À escuta do povo
154. O
pregador deve também pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os
fiéis precisam de ouvir. Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um contemplativo
do povo. Desta forma, descobre «as aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras
de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que caracterizam este ou aquele aglomerado
humano», prestando atenção «ao povo concreto com os seus sinais e símbolos
e respondendo aos problemas que apresenta». Trata-se de relacionar a mensagem do texto
bíblico com uma situação humana, com algo que as pessoas vivem, com uma experiência
que precisa da luz da Palavra. Esta preocupação não é ditada por uma atitude oportunista
ou diplomática, mas é profundamente religiosa e pastoral. No fundo, é uma «sensibilidade
espiritual para saber ler nos acontecimentos a mensagem de Deus», e isto é muito mais
do que encontrar algo interessante para dizer. Procura-se descobrir «o que o Senhor
tem a dizer nessas circunstâncias». Então a preparação da pregação transforma-se
num exercício de discernimento evangélico, no qual se procura reconhecer –
à luz do Espírito – «um “apelo” que Deus faz ressoar na própria situação histórica:
também nele e através dele, Deus chama o crente».
155. Nesta busca, é possível
recorrer apenas a alguma experiência humana frequente, como, por exemplo, a alegria
dum reencontro, as desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor alheia, a incerteza
perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.; mas faz falta intensificar
a sensibilidade para se reconhecer o que isso realmente tem a ver com a vida das pessoas.
Recordemos que nunca se deve responder a perguntas que ninguém se põe, nem
convém fazer a crónica da actualidade para despertar interesse; para isso, já existem
os programas televisivos. Em todo o caso, é possível partir de algum facto para que
a Palavra possa repercutir fortemente no seu apelo à conversão, à adoração, a atitudes
concretas de fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às vezes, que algumas
pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na pregação, mas nem por isso
se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos pedagógicos
156. Alguns
acreditam que podem ser bons pregadores por saber o que devem dizer, mas descuidam
o como, a forma concreta de desenvolver uma pregação. Zangam-se quando os outros
não os ouvem ou não os apreciam, mas talvez não se tenham empenhado por encontrar
a forma adequada de apresentar a mensagem. Lembremo-nos de que «a evidente importância
do conteúdo da evangelização não deve esconder a importância dos métodos e dos meios
da mesma evangelização». A preocupação com a forma de pregar também é uma atitude
profundamente espiritual. É responder ao amor de Deus, entregando-nos com todas as
nossas capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia; mas também é um exímio
exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer aos outros algo de má qualidade.
Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação para se preparar a pregação de modo
a garantir uma apropriada extensão: «Sê conciso no teu falar: muitas coisas em poucas
palavras» (Sir 32, 8).
157. Apenas, para exemplificar, recordemos alguns
recursos práticos que podem enriquecer uma pregação e torná-la mais atraente. Um dos
esforços mais necessários é aprender a usar imagens na pregação, isto é, a falar por
imagens. Às vezes usam-se exemplos para tornar mais compreensível algo que se quer
explicar, mas estes exemplos frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento, enquanto
as imagens ajudam a apreciar e acolher a mensagem que se quer transmitir. Uma imagem
fascinante faz com que se sinta a mensagem como algo familiar, próximo, possível,
relacionado com a própria vida. Uma imagem apropriada pode levar a saborear a mensagem
que se quer transmitir, desperta um desejo e motiva a vontade na direcção do Evangelho.
Uma boa homilia, como me dizia um antigo professor, deve conter «uma ideia, um sentimento,
uma imagem».
158. Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam muito desta pregação
e dela poderão tirar fruto, contanto que ela seja simples, clara, directa, adaptada».
A simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem que os destinatários
compreendam, para não correr o risco de falar ao vento. Acontece frequentemente que
os pregadores usam palavras que aprenderam nos seus estudos e em certos ambientes,
mas que não fazem parte da linguagem comum das pessoas que os ouvem. Há palavras próprias
da teologia ou da catequese, cujo significado não é compreensível para a maioria dos
cristãos. O maior risco dum pregador é habituar-se à sua própria linguagem e pensar
que todos os outros a usam e compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à linguagem
dos outros, para poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso
partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e a clareza
são duas coisas diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas pouco clara a
pregação. Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela sua falta de lógica,
ou porque trata vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado necessário é
procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem clara e ligação entre as
frases, de modo que as pessoas possam facilmente seguir o pregador e captar a lógica
do que lhes diz.
159. Outra característica é a linguagem positiva. Não diz
tanto o que não se deve fazer, como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor. E,
se aponta algo negativo, sempre procura mostrar também um valor positivo que atraia,
para não se ficar pela queixa, o lamento, a crítica ou o remorso. Além disso, uma
pregação positiva oferece sempre esperança, orienta para o futuro, não nos deixa prisioneiros
da negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos e leigos se reúnam periodicamente
para encontrarem, juntos, os recursos que tornem mais atraente a pregação!
4.
Uma evangelização para o aprofundamento do querigma
160. O mandato missionário
do Senhor inclui o apelo ao crescimento da fé, quando diz: «ensinando-os a
cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 20). Daqui se vê claramente
que o primeiro anúncio deve desencadear também um caminho de formação e de amadurecimento.
A evangelização procura também o crescimento, o que implica tomar muito a sério em
cada pessoa o projecto que Deus tem para ela. Cada ser humano precisa sempre mais
de Cristo, e a evangelização não deveria deixar que alguém se contente com pouco,
mas possa dizer com plena verdade: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive
em mim» (Gal 2, 20).
161. Não seria correcto que este apelo ao crescimento
fosse interpretado, exclusiva ou prioritariamente, como formação doutrinal. Trata-se
de «cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou como resposta ao seu amor, sobressaindo,
junto com todas as virtudes, aquele mandamento novo que é o primeiro, o maior, o que
melhor nos identifica como discípulos: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns
aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). É evidente que, quando os autores
do Novo Testamento querem reduzir a mensagem moral cristã a uma última síntese, ao
mais essencial, apresentam-nos a exigência irrenunciável do amor ao próximo: «Quem
ama o próximo cumpre plenamente a lei. (…) É no amor que está o pleno cumprimento
da lei» (Rm 13, 8.10). De igual modo, São Paulo, para quem o mandamento do
amor não só resume a lei mas constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda a
lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como
a ti mesmo» (Gal 5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a vida cristã como
um caminho de crescimento no amor: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de caridade
uns para com os outros e para com todos» (1 Ts 3, 12). Também São Tiago exorta
os cristãos a cumprir «a lei do Reino, de acordo com a Escritura: Amarás o
teu próximo como a ti mesmo» (2, 8), acabando por não citar nenhum preceito.
162. Entretanto,
este caminho de resposta e crescimento aparece sempre precedido pelo dom, porque o
antecede aquele outro pedido do Senhor: «baptizando-os em nome...» (Mt 28,
19). A adopção como filhos que o Pai oferece gratuitamente e a iniciativa do dom da
sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4, 7) são a condição que torna possível
esta santificação constante, que agrada a Deus e Lhe dá glória. É deixar-se transformar
em Cristo, vivendo progressivamente «de acordo com o Espírito» (Rm 8, 5).
Uma
catequese querigmática e mistagógica
163. A educação e a catequese estão
ao serviço deste crescimento. Já temos à disposição vários textos do Magistério e
subsídios sobre a catequese, preparados pela Santa Sé e por diversos episcopados.
Lembro a Exortação Apostólica Catechesi tradendae (1979), o Directório Geral
para a Catequese (1997) e outros documentos cujo conteúdo, sempre actual, não
é necessário repetir aqui. Queria deter-me apenas nalgumas considerações que me parece
oportuno evidenciar.
164. Voltámos a descobrir que também na catequese tem
um papel fundamental o primeiro anúncio ou querigma, que deve ocupar o centro
da actividade evangelizadora e de toda a tentativa de renovação eclesial. O querigma
é trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma de línguas e nos faz crer
em Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e comunica a misericórdia
infinita do Pai. Na boca do catequista, volta a ressoar sempre o primeiro anúncio:
«Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os
dias para te iluminar, fortalecer, libertar». Ao designar-se como «primeiro» este
anúncio, não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece
ou substitui por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido qualitativo,
porque é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de
diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou
doutra, durante a catequese, em todas as suas etapas e momentos. Por isso, também
«o sacerdote, como a Igreja, deve crescer na consciência da sua permanente necessidade
de ser evangelizado».
165. Não se deve pensar que, na catequese, o querigma
é deixado de lado em favor duma formação supostamente mais «sólida». Nada há de mais
sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio.
Toda a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma que se
vai, cada vez mais e melhor, fazendo carne, que nunca deixa de iluminar a tarefa catequética,
e permite compreender adequadamente o sentido de qualquer tema que se desenvolve na
catequese. É o anúncio que dá resposta ao anseio de infinito que existe em todo o
coração humano. A centralidade do querigma requer certas características do
anúncio que hoje são necessárias em toda a parte: que exprima o amor salvífico de
Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que não imponha a verdade mas faça
apelo à liberdade, que seja pautado pela alegria, o estímulo, a vitalidade e uma integralidade
harmoniosa que não reduza a pregação a poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas
que evangélicas. Isto exige do evangelizador certas atitudes que ajudam a acolher
melhor o anúncio: proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial
que não condena.
166. Outra característica da catequese, que se desenvolveu
nas últimas décadas, é a iniciação mistagógica, que significa essencialmente
duas coisas: a necessária progressividade da experiência formativa na qual intervém
toda a comunidade e uma renovada valorização dos sinais litúrgicos da iniciação cristã.
Muitos manuais e planificações ainda não se deixaram interpelar pela necessidade duma
renovação mistagógica, que poderia assumir formas muito diferentes de acordo com o
discernimento de cada comunidade educativa. O encontro catequético é um anúncio da
Palavra e está centrado nela, mas precisa sempre duma ambientação adequada e duma
motivação atraente, do uso de símbolos eloquentes, da sua inserção num amplo processo
de crescimento e da integração de todas as dimensões da pessoa num caminho comunitário
de escuta e resposta.
167. É bom que toda a catequese preste uma especial atenção
à «via da beleza (via pulchritudinis)». Anunciar Cristo significa mostrar que
crer n’Ele e segui-Lo não é algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz
de cumular a vida dum novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das provações.
Nesta perspectiva, todas as expressões de verdadeira beleza podem ser reconhecidas
como uma senda que ajuda a encontrar-se com o Senhor Jesus. Não se trata de fomentar
um relativismo estético, que pode obscurecer o vínculo indivisível entre verdade,
bondade e beleza, mas de recuperar a estima da beleza para poder chegar ao coração
do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do Ressuscitado. Se nós,
como diz Santo Agostinho, não amamos senão o que é belo, o Filho feito homem, revelação
da beleza infinita, é sumamente amável e atrai-nos para Si com laços de amor. Por
isso, torna-se necessário que a formação na via pulchritudinis esteja inserida
na transmissão da fé. É desejável que cada Igreja particular incentive o uso das artes
na sua obra evangelizadora, em continuidade com a riqueza do passado, mas também na
vastidão das suas múltiplas expressões actuais, a fim de transmitir a fé numa nova
«linguagem parabólica». É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos
símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza
que se manifestam em diferentes âmbitos culturais, incluindo aquelas modalidades não
convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para os evangelizadores,
mas tornaram-se particularmente atraentes para os outros.
168. Relativamente
à proposta moral da catequese, que convida a crescer na fidelidade ao estilo de vida
do Evangelho, é oportuno indicar sempre o bem desejável, a proposta de vida, de maturidade,
de realização, de fecundidade, sob cuja luz se pode entender a nossa denúncia dos
males que a podem obscurecer. Mais do que como peritos em diagnósticos apocalípticos
ou juízes sombrios que se comprazem em detectar qualquer perigo ou desvio, é bom que
nos possam ver como mensageiros alegres de propostas altas, guardiões do bem e da
beleza que resplandecem numa vida fiel ao Evangelho.
O acompanhamento pessoal
dos processos de crescimento
169. Numa civilização paradoxalmente ferida
pelo anonimato e, simultaneamente, obcecada com os detalhes da vida alheia, descaradamente
doente de morbosa curiosidade, a Igreja tem necessidade de um olhar solidário para
contemplar, comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias.
Neste mundo, os ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem tornar presente
a fragrância da presença solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja deverá
iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta «arte do acompanhamento»,
para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do
outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade,
com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte
e anime a amadurecer na vida cristã.
170. Embora possa soar óbvio, o acompanhamento
espiritual deve conduzir cada vez mais para Deus, em quem podemos alcançar a verdadeira
liberdade. Alguns crêem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem se dar conta
que ficam existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar para onde sempre possam
voltar. Deixam de ser peregrinos para se transformarem em errantes, que giram indefinidamente
ao redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum. O acompanhamento seria contraproducente,
caso se tornasse uma espécie de terapia que incentive esta reclusão das pessoas na
sua imanência e deixe de ser uma peregrinação com Cristo para o Pai.
171. Hoje
mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que conheçam, a partir da sua experiência
de acompanhamento, o modo de proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão,
a arte de esperar, a docilidade ao Espírito, para no meio de todos defender as ovelhas
a nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho. Precisamos de nos exercitar
na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro,
é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe
um verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra
oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta
escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento
genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder plenamente
ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria
vida. Mas sempre com a paciência de quem está ciente daquilo que ensinava São Tomás
de Aquino: alguém pode ter a graça e a caridade, mas não praticar bem nenhuma das
virtudes «por causa de algumas inclinações contrárias» que persistem. Por outras palavras,
as virtudes organizam-se sempre e necessariamente «in habitu», embora os condicionamentos
possam dificultar as operações desses hábitos virtuosos. Por isso, faz falta
«uma pedagogia que introduza a pessoa passo a passo até chegar à plena apropriação
do mistério». Para se chegar a um estado de maturidade, isto é, para que as pessoas
sejam capazes de decisões verdadeiramente livres e responsáveis, é preciso dar tempo
ao tempo, com uma paciência imensa. Como dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro
de Deus».
172. Quem acompanha sabe reconhecer que a situação de cada pessoa
diante de Deus e a sua vida em graça é um mistério que ninguém pode conhecer plenamente
a partir do exterior. O Evangelho propõe-nos que se corrija e ajude a crescer uma
pessoa a partir do reconhecimento da maldade objectiva das suas acções (cf. Mt
18, 15), mas sem proferir juízos sobre a sua responsabilidade e culpabilidade (cf.
Mt 7, 1; Lc 6, 37). Seja como for, um válido acompanhante não transige
com os fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre convida a querer curar-se, a pegar
no catre (cf. Mt 9, 6), a abraçar a cruz, a deixar tudo e partir sem cessar
para anunciar o Evangelho. A experiência pessoal de nos deixarmos acompanhar e curar,
conseguindo exprimir com plena sinceridade a nossa vida a quem nos acompanha, ensina-nos
a ser pacientes e compreensivos com os outros e habilita-nos a encontrar as formas
para despertar neles a confiança, a abertura e a vontade de crescer.
173. O
acompanhamento espiritual autêntico começa sempre e prossegue no âmbito do serviço
à missão evangelizadora. A relação de Paulo com Timóteo e Tito é exemplo deste acompanhamento
e desta formação durante a acção apostólica. Ao mesmo tempo que lhes confia a missão
de permanecer numa cidade concreta para «acabar de organizar o que ainda falta» (Tt
1, 5; cf. 1 Tm 1, 3-5), dá-lhes os critérios para a vida pessoal e a actividade
pastoral. Isto é claramente distinto de todo o tipo de acompanhamento intimista, de
auto-realização isolada. Os discípulos missionários acompanham discípulos missionários.
Ao
redor da Palavra de Deus
174. Não é só a homilia que se deve alimentar
da Palavra de Deus. Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada,
meditada, vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é fonte da evangelização.
Por isso, é preciso formar-se continuamente na escuta da Palavra. A Igreja não evangeliza,
se não se deixa continuamente evangelizar. É indispensável que a Palavra de Deus «se
torne cada vez mais o coração de toda a actividade eclesial». A Palavra de Deus ouvida
e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos
e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico na vida diária. Superámos
já a velha contraposição entre Palavra e Sacramento: a Palavra proclamada, viva e
eficaz, prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança a
sua máxima eficácia.
175. O estudo da Sagrada Escritura deve ser uma porta
aberta para todos os crentes. É fundamental que a Palavra revelada fecunde radicalmente
a catequese e todos os esforços para transmitir a fé. A evangelização requer a familiaridade
com a Palavra de Deus, e isto exige que as dioceses, paróquias e todos os grupos católicos
proponham um estudo sério e perseverante da Bíblia e promovam igualmente a sua leitura
orante pessoal e comunitária. Nós não procuramos Deus tacteando, nem precisamos de
esperar que Ele nos dirija a palavra, porque realmente «Deus falou, já não é o grande
desconhecido, mas mostrou-Se a Si mesmo». Acolhamos o tesouro sublime da Palavra revelada!
Capítulo
IV A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
176. Evangelizar é tornar
o Reino de Deus presente no mundo. «Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém,
chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização,
a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar». Desejo agora partilhar
as minhas preocupações relacionadas com a dimensão social da evangelização, precisamente
porque, se esta dimensão não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco
de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.
1.
As repercussões comunitárias e sociais do querigma
177. O querigma
possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece
a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem
uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade.
Confissão da fé
e compromisso social
178. Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser
humano implica descobrir que «assim lhe confere uma dignidade infinita». Confessar
que o Filho de Deus assumiu a nossa carne humana significa que cada pessoa humana
foi elevada até ao próprio coração de Deus. Confessar que Jesus deu o seu sangue por
nós impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo
o ser humano. A sua redenção tem um sentido social, porque «Deus, em Cristo, não redime
somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os homens». Confessar
que o Espírito Santo actua em todos implica reconhecer que Ele procura permear toda
a situação humana e todos os vínculos sociais: «O Espírito Santo possui uma inventiva
infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes
humanas mais complexas e impenetráveis». A evangelização procura colaborar também
com esta acção libertadora do Espírito. O próprio mistério da Trindade nos recorda
que somos criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos realizar-nos
nem salvar-nos sozinhos. A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão
íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente
exprimir e desenvolver em toda a acção evangelizadora. A aceitação do primeiro anúncio,
que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos comunica,
provoca na vida da pessoa e nas suas acções uma primeira e fundamental reacção: desejar,
procurar e ter a peito o bem dos outros.
179. Este laço indissolúvel entre
a recepção do anúncio salvífico e um efectivo amor fraterno exprime-se nalguns textos
da Escritura, que convém considerar e meditar atentamente para tirar deles todas as
consequências. É uma mensagem a que frequentemente nos habituamos e repetimos quase
mecanicamente, mas sem nos assegurarmos de que tenha real incidência na nossa vida
e nas nossas comunidades. Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva
a perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da fraternidade
e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o prolongamento permanente
da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos
mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). O que fizermos aos outros,
tem uma dimensão transcendente: «Com a medida com que medirdes, assim sereis medidos»
(Mt 7, 2); e corresponde à misericórdia divina para connosco: «Sede misericordiosos
como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis,
e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...).
A medida que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38). Nestes
textos, exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o irmão», como
um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e como o sinal
mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento espiritual em resposta à
doação absolutamente gratuita de Deus. Por isso mesmo, «também o serviço da caridade
é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável da sua própria
essência». Assim como a Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente
dessa natureza a caridade efectiva para com o próximo, a compaixão que compreende,
assiste e promove.
O Reino que nos chama
180. Ao lermos as Escrituras,
fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com
Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma
de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia
constituir uma «caridade por receita», uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar
a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43);
trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar
entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade
para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar
consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus
e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33). O projecto
de Jesus é instaurar o Reino de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai
que o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).
181. O Reino, que se antecipa
e cresce entre nós, abrange tudo, como nos recorda aquele princípio de discernimento
que Paulo VI propunha a propósito do verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens
e o homem todo». Sabemos que «a evangelização não seria completa, se ela não tomasse
em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e
a vida concreta, pessoal e social, dos homens». É o critério da universalidade, próprio
da dinâmica do Evangelho, dado que o Pai quer que todos os homens se salvem; e o seu
plano de salvação consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo n’Ele o que há no
céu e na terra» (Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai
o Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15), porque toda «a criação se encontra
em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19).
Toda a criação significa também todos os aspectos da vida humana, de tal modo que
«a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato
de caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes
da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho». A verdadeira
esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história.
A
doutrina da Igreja sobre as questões sociais
182. Os ensinamentos da Igreja
acerca de situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos
e podem ser objecto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem pretender
entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades
que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para que
«possam incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas». Os Pastores,
acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões
sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização
implica e exige uma promoção integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que
a religião deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas
para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta terra,
embora estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para
nosso usufruto» (1 Tm 6, 17), para que todos possam usufruir delas.
Por isso, a conversão cristã exige rever «especialmente tudo o que diz respeito à
ordem social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode
exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer
influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições
da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos
cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco
de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica
– que nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar
o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem
por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade
que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças,
com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos.
Embora «a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política», a
Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça». Todos os cristãos,
incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor.
É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo
e construtivo, orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não deixa de ser
um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo,
«une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades
eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
184. Aqui não é o
momento para explanar todas as graves questões sociais que afectam o mundo actual,
algumas das quais já comentei no terceiro capítulo. Este não é um documento social
e, para nos ajudar a reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito
apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente
recomendo. Além disso, nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio da interpretação
da realidade social ou da apresentação de soluções para os problemas contemporâneos.
Posso repetir aqui o que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante situações,
assim tão diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única,
como o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa,
nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem, com objectividade,
a situação própria do seu país».
185. Em seguida, procurarei concentrar-me
sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais neste momento da história.
Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que irão determinar o
futuro da humanidade. A primeira é a inclusão social dos pobres; e a segunda, a questão
da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres
186. Deriva
da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados,
a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.
Unidos
a Deus, ouvimos um clamor
187. Cada cristão e cada comunidade são chamados
a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que
possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para
ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para descobrir
como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão do meu povo que
está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores; conheço, na verdade,
os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (...). E agora, vai; Eu te envio...»
(Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com as suas necessidades: «Os filhos
de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz
3, 15). Ficar surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir
o pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projecto, porque esse pobre «clamaria
ao Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E
a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi directamente sobre a nossa
relação com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá
a sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir
bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como
é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17). Lembremos também
com quanta convicção o Apóstolo São Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos:
«Olhai que o salário que não pagastes, aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos,
está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo»
(5, 4).
188. A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva
da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma
missão reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia
e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas
as suas forças». Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos:
«Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para
resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos
pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias
muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal
interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns actos esporádicos
de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade,
de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns.
189. A
solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a função social da propriedade
e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A
posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem
melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver
ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando
se fazem carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis.
Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que
essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às
vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra,
porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito
pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados
como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos
dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso
recordar-se sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade,
e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento
não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os
mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar,
com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para falarmos adequadamente
dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos
outros povos ou de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade
que «permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada
homem é chamado a desenvolver-se».
191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos
são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem
se expressaram os Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e
esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações
das periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde
– lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo
o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para
todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava
com a prática generalizada do desperdício».
192. Mas queremos ainda mais, o
nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso
«sustento» para todos, mas «prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos».
Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque,
no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece
a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens
que estão destinados ao uso comum.
Fidelidade ao Evangelho, para não correr
em vão
193. Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em
nós, quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio.
Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que
ressoem vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho proclama: «Felizes os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo São Tiago ensina que
a misericórdia para com os outros permite-nos sair triunfantes no juízo divino: «Falai
e procedei como pessoas que hão-de ser julgadas segundo a lei da liberdade. Porque,
quem não pratica a misericórdia, será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia
não teme o julgamento» (2, 12-13). Neste texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro
do que tinha de mais rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía
um especial valor salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e as
tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes; talvez isto consiga prolongar
a tua prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a literatura sapiencial
fala da esmola como exercício concreto da misericórdia para com os necessitados: «A
esmola livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12, 9). E de forma ainda
mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o fogo ardente, e a esmola expia
o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese no Novo Testamento: «Mantende entre
vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão dos pecados» (1 Pd
4, 8). Esta verdade permeou profundamente a mentalidade dos Padres da Igreja, tendo
exercido uma resistência profética como alternativa cultural face ao individualismo
hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos
a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque,
da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião
de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que
nos é oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».
194. É uma mensagem
tão clara, tão directa, tão simples e eloquente que nenhuma hermenêutica eclesial
tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja sobre estes textos não deveria
ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar a assumi-los com
coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão simples? As elaborações conceptuais
hão-de favorecer o contacto com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos
dela. Isto vale sobretudo para as exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação,
ao amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com
o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras
e com os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos preocupemos só com
não cair em erros doutrinais, mas também com ser fiéis a este caminho luminoso de
vida e sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos defensores da “ortodoxia” a acusação
de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis
de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações».
195. Quando
São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava a correr
ou tinha corrido em vão» (Gal 2, 2), o critério-chave de autenticidade que
lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gal 2, 10). Este critério
importante para que as comunidades paulinas não se deixassem arrastar pelo estilo
de vida individualista dos pagãos, tem uma grande actualidade no contexto actual em
que tende a desenvolver-se um novo paganismo individualista. A própria beleza do Evangelho
nem sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que nunca deve
faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora.
196. Às
vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos
com as imensas possibilidades de consumo e de distracção que esta sociedade oferece.
Gera-se assim uma espécie de alienação que nos afecta a todos, pois «alienada é a
sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna
mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus
197. No coração
de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo «Se fez pobre»
(2 Cor 8, 9). Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres.
Esta salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem humilde, duma pequena povoação
perdida na periferia dum grande império. O Salvador nasceu num presépio, entre animais,
como sucedia com os filhos dos mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente
com dois pombinhos, a oferta de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf.
Lc 2, 24; Lv 5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou
com suas mãos para ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No multidões
de deserdados, pondo assim em evidência o que Ele mesmo dissera: «O Espírito do Senhor
está sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4,
18). A quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza, assegurou
que Deus os tinha no âmago do seu coração: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é
o Reino de Deus» (Lc 6, 20); e com eles Se identificou: «Tive fome e destes-Me
de comer», ensinando que a misericórdia para com eles é a chave do Céu (cf. Mt
25, 34-40).
198. Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica
que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus «manifesta a sua misericórdia
antes de mais» a eles. Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de
todos os cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos que estão em Cristo
Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção
pelos pobres, entendida como uma «forma especial de primado na prática da caridade
cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja». Como ensinava Bento XVI, esta
opção «está implícita na fé cristológica naquele Deus que Se fez pobre por nós, para
enriquecer-nos com sua pobreza». Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres.
Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas
próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar
por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas
vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo
neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus
amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus
nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente
em acções ou em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em
movimento não é um excesso de activismo, mas primariamente uma atenção prestada
ao outro «considerando-o como um só consigo mesmo». Esta atenção amiga é o início
duma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efectivamente
o seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de
ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo,
permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo,
independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra,
depende que lhe dê algo de graça». Quando amado, o pobre «é estimado como de alto
valor», e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de
qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos.
Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente
no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os pobres se sintam, em
cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz
apresentação da boa nova do Reino?» Sem a opção preferencial pelos pobres, «o anúncio
do Evangelho – e este anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido
ou de afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente
nos apresenta».
200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja
Católica, desejo afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres
é a falta de cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura
à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade,
a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho
de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se,
principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária.
201. Ninguém
deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as suas opções de vida implicam
prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos ambientes
académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais. Embora se possa
dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias dos fiéis leigos é a transformação
das diversas realidades terrenas para que toda a actividade humana seja transformada
pelo Evangelho, ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela
justiça social: «A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo,
o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos
a todos». Temo que também estas palavras sejam objecto apenas de alguns comentários,
sem verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho confiança na abertura e nas
boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis, comunitariamente, novos caminhos
para acolher esta renovada proposta.
Economia e distribuição das entradas
202. A
necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas
por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também
para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas
crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam
considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados
os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação
financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão
os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos
males sociais.
203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões
que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices
adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas
de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para
este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial,
molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos
de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um
Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas
palavras se tornam objecto duma manipulação oportunista que as desonra. A cómoda indiferença
diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado.
A vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um
sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com
o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos.
204. Não
podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento
equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer
decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor
distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção
integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo
irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno,
como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e
criando assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos
capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efectivamente sanar as raízes profundas
e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime
vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos
de nos convencer que a caridade «é o princípio não só das micro-relações estabelecidas
entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos
sociais, económicos, políticos». Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos,
que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável
que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas,
procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os
cidadãos. E porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou
convencido de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma
nova mentalidade política e económica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta
entre a economia e o bem comum social.
206. A economia – como indica o próprio
termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que
é o mundo inteiro. Todo o acto económico duma certa envergadura, que se realiza em
qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo
pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais
difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo
que a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar
uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais
eficiente de interacção que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar
económico a todos os países e não apenas a alguns.
207. E qualquer comunidade
da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente
nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão
de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais
ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado
em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.
208. Se alguém
se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com estima e com a
melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A
minha palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A mim interessa-me apenas procurar
que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista, indiferente e
egoísta, possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e
de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem
por esta terra.
Cuidar da fragilidade
209. Jesus, o evangelizador
por excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se especialmente com os mais pequeninos
(cf. Mt 25, 40). Isto recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados
a cuidar dos mais frágeis da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e «individualista» em
vigor, parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados
possam também singrar na vida.
210. Embora aparentemente não nos traga benefícios
tangíveis e imediatos, é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas
formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor:
os sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos
cada vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial
para mim, por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por
isso, exorto os países a uma abertura generosa, que, em vez de temer a destruição
da identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas
as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo
desta integração um novo factor de progresso! Como são encantadoras as cidades que,
já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem
o reconhecimento do outro!
211. Sempre me angustiou a situação das pessoas
que são objecto das diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito
de Deus, perguntando a todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde
está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena
fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade,
naquele que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos
de distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas nossas cidades,
está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue
devido a uma cómoda e muda cumplicidade.
212. Duplamente pobres são as mulheres
que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente
têm menores possibilidades de defender os seus direitos. E todavia, também entre elas,
encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na defesa
e cuidado da fragilidade das suas famílias.
213. Entre estes seres frágeis,
de que a Igreja quer cuidar com predilecção, estão também os nascituros, os mais inermes
e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer
deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações para que ninguém
o possa impedir. Muitas vezes, para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja
faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista
e conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está intimamente ligada
à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre
sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu desenvolvimento.
É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras dificuldades. Se cai esta
convicção, não restam fundamentos sólidos e permanentes para a defesa dos direitos
humanos, que ficariam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos
de turno. Por si só a razão é suficiente para se reconhecer o valor inviolável de
qualquer vida humana, mas, se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da
dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa
ao Criador do homem».
214. E precisamente porque é uma questão que mexe com
a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve
esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser
completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações».
Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana.
Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres
que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução
rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce
nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem
pode deixar de compreender estas situações de tamanho sofrimento?
215. Há outros
seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos interesses económicos
ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da criação. Nós, os seres humanos,
não somos meramente beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa
realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a
desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção
de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem
sinais de destruição e de morte que afectem a nossa vida e a das gerações futuras.
Neste sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há vários anos, formularam
os Bispos das Filipinas: «Uma incrível variedade de insectos vivia no bosque; e estavam
ocupados com todo o tipo de tarefas. (...) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas
brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia ao verde dos bosques.
(...) Deus quis que esta terra fosse para nós, suas criaturas especiais, mas não para
a podermos destruir ou transformar num baldio. (...) Depois de uma única noite de
chuva, observa os rios de castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão
a arrastar o sangue vivo da terra para o mar. (...) Como poderão os peixes nadar em
esgotos como o rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso
mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»
216. Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós,
cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos.
3.
O bem comum e a paz social
217. Falámos muito sobre a alegria e o amor,
mas a Palavra de Deus menciona também o fruto da paz (cf. Gal 5, 22).
218. A
paz social não pode ser entendida como irenismo ou como mera ausência de violência
obtida pela imposição de uma parte sobre as outras. Também seria uma paz falsa aquela
que servisse como desculpa para justificar uma organização social que silencie ou
tranquilize os mais pobres, de modo que aqueles que gozam dos maiores benefícios possam
manter o seu estilo de vida sem sobressaltos, enquanto os outros sobrevivem como podem.
As reivindicações sociais, que têm a ver com a distribuição das entradas, a inclusão
social dos pobres e os direitos humanos não podem ser sufocados com o pretexto de
construir um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz. A dignidade
da pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de alguns que não querem
renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são afectados, é necessária uma
voz profética.
219. E a paz também «não se reduz a uma ausência de guerra,
fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma
ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens».
Enfim, uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não
terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência.
220. Em cada nação, os habitantes desenvolvem a dimensão social da sua vida, configurando-se
como cidadãos responsáveis dentro de um povo e não como massa arrastada pelas forças
dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é uma virtude, e a participação na
vida política é uma obrigação moral». Mas, tornar-se um povo é algo mais, exigindo
um processo constante no qual cada nova geração está envolvida. É um trabalho lento
e árduo que exige querer integrar-se e aprender a fazê-lo até se desenvolver uma cultura
do encontro numa harmonia pluriforme.
221. Para avançar nesta construção de
um povo em paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões
bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina
Social da Igreja, que constituem o «primeiro e fundamental parâmetro de referência
para a interpretação e o exame dos fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor
estes quatro princípios que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência
social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projecto
comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para
a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe
uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir
tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O «tempo», considerado em sentido
amplo, faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre diante
de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os
cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte
maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um
primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao
espaço.
223. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão
pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e
hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a
assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados
que, às vezes, se nota na actividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder
em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como
loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os
espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los.
Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir
espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia
em constante crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de privilegiar as acções que
geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão
até frutificar em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções
claras e tenazes.
224. Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que,
no mundo actual, se preocupam realmente mais com gerar processos que construam um
povo do que com obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos
e efémeros, mas que não constroem a plenitude humana. A história julgá-los-á talvez
com aquele critério enunciado por Romano Guardini: «O único padrão para avaliar justamente
uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica
razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o carácter peculiar
e as possibilidades da dita época».
225. Este critério é muito apropriado
também para a evangelização, que exige ter presente o horizonte, adoptar os processos
possíveis e a estrada longa. O próprio Senhor, na sua vida mortal, deu a entender
várias vezes aos seus discípulos que havia coisas que ainda não podiam compreender
e era necessário esperar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do
trigo e do joio (cf. Mt 13, 24-30) descreve um aspecto importante de evangelização
que consiste em mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do Reino e causar dano
com o joio, mas é vencido pela bondade do trigo que se manifesta com o tempo.
A
unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado
ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas, se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva,
os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada. Quando paramos na
conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade.
227. Perante
o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se nada fosse, lavam-se
as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito
que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projectam nas instituições as suas próprias
confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira
forma, a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo
e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores»
(Mt 5, 9)!
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão
nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem
de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais
profunda. Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir
a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no
seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da
história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar
uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção
de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas
potencialidades das polaridades em contraste.
229. Este critério evangélico
recorda-nos que Cristo tudo unificou em Si: céu e terra, Deus e homem, tempo e eternidade,
carne e espírito, pessoa e sociedade. O sinal distintivo desta unidade e reconciliação
de tudo n’Ele é a paz. Cristo «é a nossa paz» (Ef 2, 14). O anúncio do Evangelho
começa sempre com a saudação de paz; e a paz coroa e cimenta em cada momento as relações
entre os discípulos. A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente
conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Col 1, 20). Entretanto,
se examinarmos a fundo estes textos bíblicos, descobriremos que o primeiro âmbito
onde somos chamados a conquistar esta pacificação nas diferenças é a própria interioridade,
a própria vida sempre ameaçada pela dispersão dialéctica. Com corações despedaçados
em milhares de fragmentos, será difícil construir uma verdadeira paz social.
230. O
anúncio de paz não é a proclamação duma paz negociada, mas a convicção de que a unidade
do Espírito harmoniza todas as diversidades. Supera qualquer conflito numa nova e
promissora síntese. A diversidade é bela, quando aceita entrar constantemente num
processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto cultural que faça surgir
uma «diversidade reconciliada», como justamente ensinaram os Bispos da República Democrática
do Congo: «A diversidade das nossas etnias é uma riqueza. (…) Só com a unidade, a
conversão dos corações e a reconciliação é que poderemos fazer avançar o nosso país».
A
realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão
bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se.
Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe
por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do
sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à
ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos,
os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais
formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade,
os intelectualismos sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais
– está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada
da realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam
ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio.
É preciso passar do nominalismo formal à objectividade harmoniosa. Caso contrário,
manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela cosmética.
Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo
não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente
é porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à
retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma racionalidade
alheia à gente.
233. A realidade é superior à ideia. Este critério está ligado
à encarnação da Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o espírito é de Deus
por isto: todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de
Deus». (1 Jo 4, 2). O critério da realidade, duma Palavra já encarnada e sempre
procurando encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a valorizar
a história da Igreja como história de salvação, a recordar os nossos Santos que inculturaram
o Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição bimilenária da Igreja,
sem pretender elaborar um pensamento desligado deste tesouro como se quiséssemos inventar
o Evangelho. Por outro lado, este critério impele-nos a pôr em prática a Palavra,
a realizar obras de justiça e caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não
pôr em prática, não levar à realidade a Palavra é construir sobre a areia, permanecer
na pura ideia e degenerar em intimismos e gnosticismos que não dão fruto, que esterilizam
o seu dinamismo.
O todo é superior à parte
234. Entre a globalização
e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global
para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista
o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem
de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo
abstracto e globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos
de artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados;
o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas localistas,
condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo
que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras.
235. O
todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto,
não se deve viver demasiado obcecados por questões limitadas e particulares. É preciso
alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós.
Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes
na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se
no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. Da mesma forma,
uma pessoa que conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade,
quando se integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre
novos estímulos para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que aniquila,
nem a parte isolada que esteriliza.
236. Aqui o modelo não é a esfera, pois
não é superior às partes e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo
diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflecte a confluência
de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a acção pastoral como
a acção política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os
pobres com a sua cultura, os seus projectos e as suas próprias potencialidades. Até
mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que
não se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua
própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem
comum que verdadeiramente incorpore a todos.
237. A nós, cristãos, este princípio
fala-nos também da totalidade ou integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite
e envia a pregar. A sua riqueza plena incorpora académicos e operários, empresários
e artistas, incorpora todos. A «mística popular» acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro
e encarna-o em expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de festa.
A Boa Nova é a alegria dum Pai que não quer que se perca nenhum dos seus pequeninos.
Assim nasce a alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e a reintegra no
seu rebanho. O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que brilha no
cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um critério de totalidade
que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto não for anunciado a todos,
enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do homem, enquanto não unir todos
os homens à volta da mesa do Reino. O todo é superior à parte.
4. O
diálogo social como contribuição para a paz
238. A evangelização implica
também um caminho de diálogo. Neste momento, existem sobretudo três campos de diálogo
onde a Igreja deve estar presente, cumprindo um serviço a favor do pleno desenvolvimento
do ser humano e procurando o bem comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade
– que inclui o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que
não fazem parte da Igreja Católica. Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da
luz que a fé lhe dá», oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre
na memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana,
mas também tem um significado que pode enriquecer a quantos não crêem e convida a
razão a alargar as suas perspectivas.
239. A Igreja proclama o «evangelho da
paz» (Ef 6, 15) e está aberta à colaboração com todas as autoridades nacionais
e internacionais para cuidar deste bem universal tão grande. Ao anunciar Jesus Cristo,
que é a paz em pessoa (cf. Ef 2, 14), a nova evangelização incentiva todo o
baptizado a ser instrumento de pacificação e testemunha credível duma vida reconciliada.
É hora de saber como projectar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de
encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma
sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões. O autor principal, o sujeito histórico
deste processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe, uma fracção, um grupo,
uma elite. Não precisamos de um projecto de poucos para poucos, ou de uma minoria
esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento colectivo. Trata-se de
um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural.
240. O cuidado
e a promoção do bem comum da sociedade compete ao Estado. Este, com base nos princípios
de subsidiariedade e solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e criação
de consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na busca
do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas circunstâncias actuais,
uma profunda humildade social.
241. No diálogo com o Estado e com a sociedade,
a Igreja não tem soluções para todas as questões específicas. Mas, juntamente com
as várias forças sociais, acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade
da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores
fundamentais da existência humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se
em acções políticas.
O diálogo entre a fé, a razão e as ciências
242. O
diálogo entre ciência e fé também faz parte da acção evangelizadora que favorece a
paz. O cientificismo e o positivismo recusam-se a «admitir, como válidas, formas de
conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas». A Igreja
propõe outro caminho, que exige uma síntese entre um uso responsável das metodologias
próprias das ciências empíricas e os outros saberes como a filosofia, a teologia,
e a própria fé que eleva o ser humano até ao mistério que transcende a natureza e
a inteligência humana. A fé não tem medo da razão; pelo contrário, procura-a e tem
confiança nela, porque «a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus», e não
se podem contradizer entre si. A evangelização está atenta aos progressos científicos
para os iluminar com a luz da fé e da lei natural, tendo em vista procurar que sempre
respeitem a centralidade e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua
existência. Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste diálogo que abre novos
horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades da razão. Também este é um caminho
de harmonia e pacificação.
243. A Igreja não pretende deter o progresso admirável
das ciências. Pelo contrário, alegra-se e inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme
potencial que Deus deu à mente humana. Quando o progresso das ciências, mantendo-se
com rigor académico no campo do seu objecto específico, torna evidente uma determinada
conclusão que a razão não pode negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes podem pretender
que uma opinião científica que lhes agrada – e que nem sequer foi suficientemente
comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em certas ocasiões, porém, alguns cientistas
vão mais além do objecto formal da sua disciplina e exageram com afirmações ou conclusões
que extravasam o campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe,
mas uma determinada ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico, pacífico
e frutuoso.
O diálogo ecuménico
244. O compromisso ecuménico
corresponde à oração do Senhor Jesus pedindo «que todos sejam um só» (Jo 17,
21). A credibilidade do anúncio cristão seria muito maior, se os cristãos superassem
as suas divisões e a Igreja realizasse «a plenitude da catolicidade que lhe é própria
naqueles filhos que, embora incorporados pelo Baptismo, estão separados da sua plena
comunhão». Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos juntos.
Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças,
e olhar primariamente para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. O abrir-se
ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal. Jesus disse-nos: «Felizes os pacificadores»
(Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós, cumpre-se a antiga profecia: «Transformarão
as suas espadas em relhas de arado» (Is 2, 4).
245. Sob esta luz, o
ecumenismo é uma contribuição para a unidade da família humana. A presença no Sínodo
do Patriarca de Constantinopla, Sua Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo de Cantuária,
Sua Graça Rowan Douglas Williams, foi um verdadeiro dom de Deus e um precioso testemunho
cristão.
246. Dada a gravidade do contra-testemunho da divisão entre cristãos,
sobretudo na Ásia e na África, torna-se urgente a busca de caminhos de unidade. Os
missionários, nesses continentes, referem repetidamente as críticas, queixas e sarcasmos
que recebem por causa do escândalo dos cristãos divididos. Se nos concentrarmos nas
convicções que nos unem e recordarmos o princípio da hierarquia das verdades, poderemos
caminhar decididamente para formas comuns de anúncio, de serviço e de testemunho.
A imensa multidão que não recebeu o anúncio de Jesus Cristo não pode deixar-nos indiferentes.
Por isso, o esforço por uma unidade que facilite a recepção de Jesus Cristo deixa
de ser mera diplomacia ou um dever forçado para se transformar num caminho imprescindível
da evangelização. Os sinais de divisão entre cristãos, em países que já estão dilacerados
pela violência, juntam outros motivos de conflito vindos da parte de quem deveria
ser um activo fermento de paz. São tantas e tão valiosas as coisas que nos unem! E,
se realmente acreditamos na acção livre e generosa do Espírito, quantas coisas podemos
aprender uns dos outros! Não se trata apenas de receber informações sobre os outros
para os conhecermos melhor, mas de recolher o que o Espírito semeou neles como um
dom também para nós. Só para dar um exemplo, no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós,
os católicos, temos a possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade
episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade. Através dum intercâmbio de dons,
o Espírito pode conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem.
As relações
com o Judaísmo
247. Um olhar muito especial é dirigido ao povo judeu, cuja
Aliança com Deus nunca foi revogada, porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis»
(Rm 11, 29). A Igreja, que partilha com o Judaísmo uma parte importante das
Escrituras Sagradas, considera o povo da Aliança e a sua fé como uma raiz sagrada
da própria identidade cristã (cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos, não podemos
considerar o Judaísmo como uma religião alheia, nem incluímos os judeus entre quantos
são chamados a deixar os ídolos para se converter ao verdadeiro Deus (cf. 1 Ts
1, 9). Juntamente com eles, acreditamos no único Deus que actua na história, e acolhemos,
com eles, a Palavra revelada comum.
248. O diálogo e a amizade com os filhos
de Israel fazem parte da vida dos discípulos de Jesus. O afecto que se desenvolveu
leva-nos a lamentar, sincera e amargamente, as terríveis perseguições de que foram
e são objecto, particularmente aquelas que envolvem ou envolveram cristãos.
249. Deus
continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer tesouros de sabedoria que
brotam do seu encontro com a Palavra divina. Por isso, a Igreja também se enriquece
quando recolhe os valores do Judaísmo. Embora algumas convicções cristãs sejam inaceitáveis
para o Judaísmo e a Igreja não possa deixar de anunciar Jesus como Senhor e Messias,
há uma rica complementaridade que nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica
e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra, bem como compartilhar
muitas convicções éticas e a preocupação comum pela justiça e o desenvolvimento dos
povos.
O diálogo inter-religioso
250. Uma atitude de abertura
na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes das religiões não-cristãs,
apesar dos vários obstáculos e dificuldades, de modo particular os fundamentalismos
de ambos os lados. Este diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz
no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos e também para outras comunidades
religiosas. Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana ou
simplesmente – como propõem os Bispos da Índia – «estar aberto a eles, compartilhando
as suas alegrias e penas». Assim aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente
de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos assumir juntos o dever
de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio.
Um diálogo, no qual se procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além
do aspecto meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas condições sociais.
Os esforços à volta dum tema específico podem transformar-se num processo em que,
através da escuta do outro, ambas as partes encontram purificação e enriquecimento.
Portanto, estes esforços também podem ter o significado de amor à verdade.
251. Neste
diálogo, sempre amável e cordial, nunca se deve descuidar o vínculo essencial entre
diálogo e anúncio, que leva a Igreja a manter e intensificar as relações com os não-cristãos.
Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de quantos pretendem
conciliar prescindindo de valores que os transcendem e dos quais não são donos. A
verdadeira abertura implica conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas,
com uma identidade clara e feliz, mas «disponível para compreender as do outro» e
«sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos». Não nos serve uma abertura diplomática
que diga sim a tudo para evitar problemas, porque seria um modo de enganar o outro
e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com generosidade. Longe
de se contraporem, a evangelização e o diálogo inter-religioso apoiam-se e alimentam-se
reciprocamente.
252. Neste tempo, adquire grande importância a relação com
os crentes do Islão, hoje particularmente presentes em muitos países de tradição cristã,
onde podem celebrar livremente o seu culto e viver integrados na sociedade. Não se
deve jamais esquecer que eles «professam seguir a fé de Abraão, e connosco adoram
o Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia». Os escritos
sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos; Jesus Cristo e Maria
são objecto de profunda veneração e é admirável ver como jovens e idosos, mulheres
e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente tempo à oração e participar fielmente
nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos deles têm uma profunda convicção
de que a própria vida, na sua totalidade, é de Deus e para Deus. Reconhecem também
a necessidade de Lhe responder com um compromisso ético e com a misericórdia para
com os mais pobres.
253. Para sustentar o diálogo com o Islão é indispensável
a adequada formação dos interlocutores, não só para que estejam sólida e jubilosamente
radicados na sua identidade, mas também para que sejam capazes de reconhecer os valores
dos outros, compreender as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer
aparecer as convicções comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afecto e respeito
os imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como esperamos e pedimos
para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição islâmica. Rogo, imploro humildemente
a esses países que assegurem liberdade aos cristãos para poderem celebrar o seu culto
e viver a sua fé, tendo em conta a liberdade que os crentes do Islão gozam nos países
ocidentais. Frente a episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afecto
pelos verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações,
porque o verdadeiro Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a toda
a violência.
254. Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita
iniciativa divina, viver «justificados por meio da graça de Deus» e, assim, «associados
ao mistério pascal de Jesus Cristo». Devido, porém, à dimensão sacramental da graça
santificante, a acção divina neles tende a produzir sinais, ritos, expressões sagradas
que, por sua vez, envolvem outros numa experiência comunitária do caminho para Deus.
Não têm o significado e a eficácia dos Sacramentos instituídos por Cristo, mas podem
ser canais que o próprio Espírito suscita para libertar os não-cristãos do imanentismo
ateu ou de experiências religiosas meramente individuais. O mesmo Espírito suscita
por toda a parte diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as carências
da vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós, cristãos, podemos tirar proveito também
desta riqueza consolidada ao longo dos séculos, que nos pode ajudar a viver melhor
as nossas próprias convicções.
O diálogo social num contexto de liberdade
religiosa
255. Os Padres sinodais lembraram a importância do respeito pela
liberdade religiosa, considerada um direito humano fundamental. Inclui «a liberdade
de escolher a religião que se crê ser verdadeira e de manifestar publicamente a própria
crença». Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente
e os valorizem como tais, não implica uma privatização das religiões, com a pretensão
de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização
no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo,
de uma nova forma de discriminação e autoritarismo. O respeito devido às minorias
de agnósticos ou de não-crentes não se deve impor de maneira arbitrária que silencie
as convicções de maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas. No
fundo, isso fomentaria mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.
256. Ao
questionar-se sobre a incidência pública da religião, é preciso distinguir diferentes
modos de a viver. Tanto os intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente,
em generalizações grosseiras e pouco académicas, quando falam dos defeitos das religiões
e, muitas vezes, não são capazes de distinguir que nem todos os crentes – nem todos
os líderes religiosos – são iguais. Alguns políticos aproveitam esta confusão para
justificar acções discriminatórias. Outras vezes, desprezam-se os escritos que surgiram
no âmbito duma convicção crente, esquecendo que os textos religiosos clássicos podem
oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre
sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade.
São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será razoável e inteligente relegá-los
para a obscuridade, só porque nasceram no contexto duma crença religiosa? Contêm princípios
profundamente humanistas que possuem um valor racional, apesar de estarem permeados
de símbolos e doutrinas religiosos.
257. Como crentes, sentimo-nos próximo
também de todos aqueles que, não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa,
buscam sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima
expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso
pela defesa da dignidade humana, na construção duma convivência pacífica entre os
povos e na guarda da criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos,
como o «Átrio dos Gentios», onde «crentes e não-crentes podem dialogar sobre os temas
fundamentais da ética, da arte e da ciência, e sobre a busca da transcendência». Também
este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido.
258. A partir de alguns
temas sociais, importantes para o futuro da humanidade, procurei explicitar uma vez
mais a incontornável dimensão social do anúncio do Evangelho, para encorajar todos
os cristãos a manifestá-la sempre nas suas palavras, atitudes e acções.
Capítulo
V EVANGELIZADORES COM ESPÍRITO
259. Evangelizadores com espírito quer
dizer evangelizadores que se abrem sem medo à acção do Espírito Santo. No Pentecostes,
o Espírito faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das
maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o
Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia (parresia),
em voz alta e em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem
apoiados na oração, sem a qual toda a acção corre o risco de ficar vã e o anúncio,
no fim de contas, carece de alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova,
não só com palavras mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus.
260. Neste
último capítulo, não vou oferecer uma síntese da espiritualidade cristã, nem desenvolverei
grandes temas como a oração, a adoração eucarística ou a celebração da fé, sobre os
quais já possuímos preciosos textos do Magistério e escritos célebres de grandes autores.
Não pretendo substituir nem superar tanta riqueza. Limitar-me-ei simplesmente a propor
algumas reflexões acerca do espírito da nova evangelização.
261. Quando se
diz de uma realidade que tem «espírito», indica-se habitualmente uma moção interior
que impele, motiva, encoraja e dá sentido à acção pessoal e comunitária. Uma evangelização
com espírito é muito diferente de um conjunto de tarefas vividas como uma obrigação
pesada, que quase não se tolera ou se suporta como algo que contradiz as nossas próprias
inclinações e desejos. Como gostaria de encontrar palavras para encorajar uma estação
evangelizadora mais ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de amor até ao fim e
feita de vida contagiante! Mas sei que nenhuma motivação será suficiente, se não arde
nos corações o fogo do Espírito. Em suma, uma evangelização com espírito é uma evangelização
com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja evangelizadora. Antes de propor
algumas motivações e sugestões espirituais, invoco uma vez mais o Espírito Santo;
peço-Lhe que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora
de si mesma a fim de evangelizar todos os povos.
1. Motivações para
um renovado impulso missionário
262. Evangelizadores com espírito quer
dizer evangelizadores que rezam e trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não
servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário,
nem os discursos e acções sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme
o coração. Estas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e
não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar
sempre um espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à actividade. Sem
momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero
com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de significado, quebrantamo-nos com
o cansaço e as dificuldades, e o ardor apaga-se. A Igreja não pode dispensar o pulmão
da oração, e alegra-me imenso que se multipliquem, em todas as instituições eclesiais,
os grupos de oração, de intercessão, de leitura orante da Palavra, as adorações perpétuas
da Eucaristia. Ao mesmo tempo, «há que rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista
e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a
lógica da encarnação». Há o risco de que alguns momentos de oração se tornem uma desculpa
para evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do estilo de vida pode
levar os cristãos a refugiarem-se nalguma falsa espiritualidade.
263. É salutar
recordar-se dos primeiros cristãos e de tantos irmãos ao longo da história que se
mantiveram transbordantes de alegria, cheios de coragem, incansáveis no anúncio e
capazes de uma grande resistência activa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais
difícil; temos, porém, de reconhecer que o contexto do Império Romano não era favorável
ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade humana.
Em cada momento da história, estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de
si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos.
Isto está sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana
que das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente.
Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as dificuldades
próprias do seu tempo. Com esta finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a recuperar
algumas motivações que nos ajudem a imitá-los nos nossos dias.
O encontro
pessoal com o amor de Jesus que nos salva
264. A primeira motivação para
evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por
Ele que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Com efeito, um amor que não sentisse a
necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que
amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de comunicar Jesus, precisamos de nos
deter em oração para Lhe pedir que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada
dia, pedir a sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia
e superficial. Colocados diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe,
reconhecemos aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus Se fez
presente e lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1,
48). Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo
Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus olhos! Como nos faz
bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida
nova! Sucede então que, em última análise, «o que nós vimos e ouvimos, isso anunciamos»
(1 Jo 1, 3). A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo
com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta
maneira, a sua beleza deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso,
é urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir,
cada dia, que somos depositários dum bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida
nova. Não há nada de melhor para transmitir aos outros.
265. Toda a vida de
Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade
simples e quotidiana e, finalmente, a sua total dedicação, tudo é precioso e fala
à nossa vida pessoal. Todas as vezes que alguém volta a descobri-lo, convence-se de
que é isso mesmo o que os outros precisam, embora não o saibam: «Aquele que venerais
sem O conhecer, é Esse que eu vos anuncio» (Act 17, 23). Às vezes perdemos
o entusiasmo pela missão, porque esquecemos que o Evangelho dá resposta às necessidades
mais profundas das pessoas, porque todos fomos criados para aquilo que o Evangelho
nos propõe: a amizade com Jesus e o amor fraterno. Quando se consegue exprimir, de
forma adequada e bela, o conteúdo essencial do Evangelho, de certeza que essa mensagem
fala aos anseios mais profundos do coração: «O missionário está convencido de que
existe já, nas pessoas e nos povos, pela acção do Espírito, uma ânsia – mesmo se inconsciente
– de conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à liberação
do pecado e da morte. O entusiasmo posto no anúncio de Cristo deriva da convicção
de responder a tal ânsia». O entusiasmo na evangelização funda-se nesta convicção.
Temos à disposição um tesouro de vida e de amor que não pode enganar, a mensagem que
não pode manipular nem desiludir. É uma resposta que desce ao mais fundo do ser humano
e pode sustentá-lo e elevá-lo. É a verdade que não passa de moda, porque é capaz de
penetrar onde nada mais pode chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com um amor
infinito.
266. Esta convicção, porém, é sustentada com a experiência pessoal,
constantemente renovada, de saborear a sua amizade e a sua mensagem. Não se pode perseverar
numa evangelização cheia de ardor, se não se está convencido, por experiência própria,
que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a mesma coisa
caminhar com Ele ou caminhar tacteando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar
a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou
não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho
em vez de o fazer unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus
se torna muito mais plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa.
É por isso que evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser
discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha
com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não
O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo
e deixa de estar seguro do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa
que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém.
267. Unidos
a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele ama. Em última instância,
o que procuramos é a glória do Pai, vivemos e agimos «para que seja prestado louvor
à glória da sua graça» (Ef 1, 6). Se queremos entregar-nos a sério e com perseverança,
esta motivação deve superar toda e qualquer outra. O movente definitivo, o mais profundo,
o maior, a razão e o sentido último de tudo o resto é este: a glória do Pai que Jesus
procurou durante toda a sua existência. Ele é o Filho eternamente feliz, com todo
o seu ser «no seio do Pai» (Jo 1, 18). Se somos missionários, antes de tudo
é porque Jesus nos disse: «A glória do meu Pai [consiste] em que deis muito fruto»
(Jo 15, 8). Independentemente de que nos convenha, interesse, aproveite ou
não, para além dos estreitos limites dos nossos desejos, da nossa compreensão e das
nossas motivações, evangelizamos para a maior glória do Pai que nos ama.
O
prazer espiritual de ser povo
268. A Palavra de Deus convida-nos também
a reconhecer que somos povo: «Vós que outrora não éreis um povo, agora sois povo de
Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser evangelizadores com espírito é preciso também
desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas, até chegar a
descobrir que isto se torna fonte duma alegria superior. A missão é uma paixão por
Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo. Quando paramos diante de Jesus
crucificado, reconhecemos todo o seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá também,
se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige,
cheio de afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente que Ele quer
servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos do meio
do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade não se compreende
sem esta pertença.
269. O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora
que nos introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se falava
com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor: «Jesus,
fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível
ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52)
e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O
chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19). Vemo-Lo disponível, quando deixa
uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de noite,
Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar
deste estilo que marcou toda a sua vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos
a fundo na sociedade, partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações,
colaboramos material e espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os
que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na construção de
um mundo novo, lado a lado com os outros. Mas não por obrigação, nem como um peso
que nos desgasta, mas como uma opção pessoal que nos enche de alegria e nos dá uma
identidade.
270. Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma
prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana,
que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles
abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama
humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta
dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se
sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência
de pertencer a um povo.
271. É verdade que, na nossa relação com o mundo, somos
convidados a dar razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo
e condenam. A advertência é muito clara: fazei-o «com mansidão e respeito» (1 Pd
3, 16) e «tanto quanto for possível e de vós dependa, vivei em paz com todos os homens»
(Rm 12, 18). E somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm
12, 21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer
como superiores, antes «considerai os outros superiores a vós próprios» (Fl
2, 3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo» (Act
2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que
olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião de
um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra
de Deus tão claras, directas e contundentes, que não precisam de interpretações que
as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa, sem comentários.
Assim, experimentaremos a alegria missionária de partilhar a vida com o povo fiel
de Deus, procurando acender o fogo no coração do mundo.
272. O amor às pessoas
é uma força espiritual que favorece o encontro em plenitude com Deus, a ponto de se
dizer, de quem não ama o irmão, que «está nas trevas e nas trevas caminha» (1 Jo
2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus»
(1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fechar os olhos diante do próximo torna cegos
também diante de Deus», e que o amor é fundamentalmente a única luz que «ilumina
incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir». Portanto,
quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a intenção de procurar o
seu bem, ampliamos o nosso interior para receber os mais belos dons do Senhor. Cada
vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo
de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro,
ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus. Em consequência disto, se queremos
crescer na vida espiritual, não podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da
evangelização enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos
mais sensíveis para reconhecer a acção do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas
espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um missionário plenamente devotado ao seu trabalho
experimenta o prazer de ser um manancial que transborda e refresca os outros. Só pode
ser missionário quem se sente bem procurando o bem do próximo, desejando a felicidade
dos outros. Esta abertura do coração é fonte de felicidade, porque «a felicidade está
mais em dar do que em receber» (Act 20, 35). Não se vive melhor fugindo dos
outros, escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade.
Isto não é senão um lento suicídio.
273. A missão no coração do povo não é
uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice
ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do
meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso
estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão
de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Nisto se revela a enfermeira
autêntica , o professor autêntico, o político autêntico, aqueles que decidiram, no
mais íntimo do seu ser, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa
coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá
continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências.
Deixará de ser povo.
274. Para partilhar a vida com a gente e dar-nos generosamente,
precisamos de reconhecer também que cada pessoa é digna da nossa dedicação. E não
pelo seu aspecto físico, suas capacidades, sua linguagem, sua mentalidade ou pelas
satisfações que nos pode dar, mas porque é obra de Deus, criatura sua. Ele criou-a
à sua imagem, e reflecte algo da sua glória. Cada ser humano é objecto da ternura
infinita do Senhor, e Ele mesmo habita na sua vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu
sangue precioso por essa pessoa. Independentemente da aparência, cada um é imensamente
sagrado e merece o nosso afecto e a nossa dedicação. Por isso, se consigo ajudar
uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida. É maravilhoso
ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros e o coração
se enche de rostos e de nomes!
A acção misteriosa do Ressuscitado e do seu
Espírito
275. No terceiro capítulo, reflectimos sobre a carência de espiritualidade
profunda que se traduz no pessimismo, no fatalismo, na desconfiança. Algumas pessoas
não se dedicam à missão, porque crêem que nada pode mudar e assim, segundo elas, é
inútil esforçar-se. Pensam: «Para quê privar-me das minhas comodidades e prazeres,
se não vejo algum resultado importante?» Com esta mentalidade, torna-se impossível
ser missionário. Esta atitude é precisamente uma desculpa maligna para continuar fechado
na própria comodidade, na preguiça, na tristeza insatisfeita, no vazio egoísta. Trata-se
de uma atitude autodestrutiva, porque «o homem não pode viver sem esperança: a sua
vida, condenada à insignificância, tornar-se-ia insuportável». No caso de pensarmos
que as coisas não vão mudar, recordemos que Jesus Cristo triunfou sobre o pecado e
a morte e possui todo o poder. Jesus Cristo vive verdadeiramente. Caso contrário,
«se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação» (1 Cor 15, 14). Diz-nos
o Evangelho que, quando os primeiros discípulos saíram a pregar, «o Senhor cooperava
com eles, confirmando a Palavra» (Mc 16, 20). E o mesmo acontece hoje. Somos
convidados a descobri-lo, a vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é a fonte profunda
da nossa esperança, e não nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão que nos confia.
276. A
sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de vida que penetrou o mundo.
Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição.
É uma força sem igual. É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe: vemos
injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem. Mas também é certo
que, no meio da obscuridade, sempre começa a desabrochar algo de novo que, mais cedo
ou mais tarde, produz fruto. Num campo arrasado, volta a aparecer a vida, tenaz e
invencível. Haverá muitas coisas más, mas o bem sempre tende a reaparecer e espalhar-se.
Cada dia, no mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada através dos dramas
da história. Os valores tendem sempre a reaparecer sob novas formas, e na realidade
o ser humano renasceu muitas vezes de situações que pareciam irreversíveis. Esta é
a força da ressurreição, e cada evangelizador é um instrumento deste dinamismo.
277. E
continuamente aparecem também novas dificuldades, a experiência do fracasso, as mesquinhices
humanas que tanto ferem. Todos sabemos, por experiência, que às vezes uma tarefa não
nos dá as satisfações que desejaríamos, os frutos são escassos e as mudanças são lentas,
e vem-nos a tentação de se dar por cansado. Todavia, não é a mesma coisa quando alguém,
por cansaço, baixa momentaneamente os braços e quando os baixa definitivamente dominado
por um descontentamento crónico, por uma acédia que lhe mirra a alma. Pode acontecer
que o coração se canse de lutar, porque, em última análise, se busca a si mesmo num
carreirismo sedento de reconhecimentos, aplausos, prémios, promoções; então a pessoa
não baixa os braços, mas já não tem garra, carece de ressurreição. Assim, o Evangelho,
que é a mensagem mais bela que há neste mundo, fica sepultado sob muitas desculpas.
278. A
fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama verdadeiramente, que está
vivo, que é capaz de intervir misteriosamente, que não nos abandona, que tira bem
do mal com o seu poder e a sua criatividade infinita. Significa acreditar que Ele
caminha vitorioso na história «e, com Ele, estarão os chamados, os escolhidos, os
fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já
está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo-se aqui e além de várias maneiras:
como a pequena semente que pode chegar a transformar-se numa grande árvore (cf. Mt
13, 31-32), como o punhado de fermento que leveda uma grande massa (cf. Mt
13, 33), e como a boa semente que cresce no meio do joio (cf. Mt 13, 24-30)
e sempre nos pode surpreender positivamente: ei-la que aparece, vem outra vez, luta
para florescer de novo. A ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos
deste mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição
do Senhor já penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus não ressuscitou
em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!
279. Como nem
sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza interior, ou seja, da convicção
de que Deus pode actuar em qualquer circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos,
porque «trazemos este tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4, 7). Esta certeza
é o que se chama «sentido de mistério», que consiste em saber, com certeza,
que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor, seguramente será fecunda (cf.
Jo 15, 5). Muitas vezes esta fecundidade é invisível, incontrolável, não pode
ser contabilizada. A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos, mas sem pretender
conhecer como, onde ou quando; está segura de que não se perde nenhuma das suas obras
feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros,
não se perde nenhum acto de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas,
não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula pelo mundo como uma força
de vida. Às vezes invade-nos a sensação de não termos obtido resultado algum com os
nossos esforços, mas a missão não é um negócio nem um projecto empresarial, nem mesmo
uma organização humanitária, não é um espectáculo para que se possa contar quantas
pessoas assistiram devido à nossa propaganda. É algo de muito mais profundo, que escapa
a toda e qualquer medida. Talvez o Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar
bênçãos noutro lugar do mundo, aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como
quer, quando quer e onde quer; e nós gastamo-nos com grande dedicação, mas sem pretender
ver resultados espectaculares. Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é necessário.
No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos a descansar na ternura dos
braços do Pai. Continuemos para diante, empenhemo-nos totalmente, mas deixemos que
seja Ele a tornar fecundos, como melhor Lhe parecer, os nossos esforços.
280. Para
manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança no Espírito Santo,
porque Ele «vem em auxílio da nossa fraqueza» (Rm 8, 26). Mas esta confiança
generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos de O invocar constantemente.
Ele pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no compromisso missionário. É verdade
que esta confiança no invisível pode causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar
num mar onde não sabemos o que vamos encontrar. Eu mesmo o experimentei tantas vezes.
Mas não há maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito, renunciando
a calcular e controlar tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione
para onde Ele quiser. O Espírito Santo bem sabe o que faz falta em cada época e em
cada momento. A isto chama-se ser misteriosamente fecundos!
A força missionária
da intercessão
281. Há uma forma de oração que nos incentiva particularmente
a gastarmo-nos na evangelização e nos motiva a procurar o bem dos outros: é a intercessão.
Fixemos, por momentos, o íntimo dum grande evangelizador como São Paulo, para perceber
como era a sua oração. Esta estava repleta de seres humanos: «Em todas as minhas orações,
sempre peço com alegria por todos vós (...), pois tenho-vos no coração» (Fl
1, 4.7). Descobrimos, assim, que interceder não nos afasta da verdadeira contemplação,
porque a contemplação que deixa de fora os outros é uma farsa.
282. Esta atitude
transforma-se também num agradecimento a Deus pelos outros. «Antes de mais, dou graças
ao meu Deus por todos vós, por meio de Jesus Cristo» (Rm 1, 8). Trata-se de
um agradecimento constante: «Dou incessantemente graças ao meu Deus por vós,
pela graça de Deus que vos foi concedida em Cristo Jesus» (1 Cor 1, 4); «todas
as vezes que me lembro de vós, dou graças ao meu Deus» (Fl 1, 3). Não é um
olhar incrédulo, negativo e sem esperança, mas uma visão espiritual, de fé profunda,
que reconhece aquilo que o próprio Deus faz neles. E, simultaneamente, é a gratidão
que brota de um coração verdadeiramente solícito pelos outros. Deste modo, quando
um evangelizador sai da oração, o seu coração tornou-se mais generoso, libertou-se
da consciência isolada e está ansioso por fazer o bem e partilhar a vida com os outros.
283. Os
grandes homens e mulheres de Deus foram grandes intercessores. A intercessão é como
«fermento» no seio da Santíssima Trindade. É penetrarmos no Pai e descobrirmos novas
dimensões que iluminam as situações concretas e as mudam. Poderíamos dizer que o coração
de Deus se deixa comover pela intercessão, mas na realidade Ele sempre nos antecipa,
pelo que, com a nossa intercessão, apenas possibilitamos que o seu poder, o seu amor
e a sua lealdade se manifestem mais claramente no povo.
2. Maria, a
Mãe da evangelização
284. Juntamente com o Espírito Santo, sempre está
Maria no meio do povo. Ela reunia os discípulos para O invocarem (Act 1, 14),
e assim tornou possível a explosão missionária que se deu no Pentecostes. Ela é a
Mãe da Igreja evangelizadora e, sem Ela, não podemos compreender cabalmente o espírito
da nova evangelização.
O dom de Jesus ao seu povo
285. Na cruz,
quando Cristo suportava em sua carne o dramático encontro entre o pecado do mundo
e a misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença consoladora da Mãe e do amigo.
Naquele momento crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai Lhe havia confiado,
Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a seguir, disse ao amigo bem-amado:
«Eis a tua mãe!» (Jo 19, 26-27). Estas palavras de Jesus, no limiar da morte,
não exprimem primariamente uma terna preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma
fórmula de revelação que manifesta o mistério duma missão salvífica especial. Jesus
deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe. E só depois de fazer isto é que Jesus pôde sentir
que «tudo se consumara» (Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na hora suprema da nova
criação, Cristo conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer que caminhemos
sem uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios do Evangelho. Não
é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o ícone feminino. Ela, que O gerou com
tanta fé, também acompanha «o resto da sua descendência, isto é, os que observam os
mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). Esta ligação
íntima entre Maria, a Igreja e cada fiel, enquanto de maneira diversa geram Cristo,
foi maravilhosamente expressa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas Escrituras divinamente
inspiradas, o que se atribui em geral à Igreja, Virgem e Mãe, aplica-se em especial
à Virgem Maria (...). Alem disso, cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa
do Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. (...) No tabernáculo
do ventre de Maria, Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo da fé da Igreja,
permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e amor da alma fiel habitará pelos
séculos dos séculos».
286. Maria é aquela que sabe transformar um curral de
animais na casa de Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Ela é
a serva humilde do Pai, que transborda de alegria no louvor. É a amiga sempre solícita
para que não falte o vinho na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela
espada, que compreende todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança para
os povos que sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é a missionária
que Se aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida, abrindo os corações
à fé com o seu afecto materno. Como uma verdadeira mãe, caminha connosco, luta connosco
e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus. Através dos diferentes títulos marianos,
geralmente ligados aos santuários, compartilha as vicissitudes de cada povo que recebeu
o Evangelho e entra a formar parte da sua identidade histórica. Muitos pais cristãos
pedem o Baptismo para seus filhos num santuário mariano, manifestando assim a fé na
acção materna de Maria que gera novos filhos para Deus. É lá, nos santuários, que
se pode observar como Maria reúne ao seu redor os filhos que, com grandes sacrifícios,
vêm peregrinos para A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram a força de Deus
para suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São João Diego, Maria oferece-lhes
a carícia da sua consolação materna e diz-lhes: «Não se perturbe o teu coração. (...)
Não estou aqui eu, que sou tua Mãe?»
A Estrela da nova evangelização
287. À
Mãe do Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim de que este convite para
uma nova etapa da evangelização seja acolhido por toda a comunidade eclesial. Ela
é a mulher de fé, que vive e caminha na fé, e «a sua excepcional peregrinação da fé
representa um ponto de referência constante para a Igreja». Ela deixou-Se conduzir
pelo Espírito, através dum itinerário de fé, rumo a uma destinação feita de serviço
e fecundidade. Hoje fixamos n’Ela o olhar, para que nos ajude a anunciar a todos a
mensagem de salvação e para que os novos discípulos se tornem operosos evangelizadores.
Nesta peregrinação evangelizadora, não faltam as fases de aridez, de ocultação e até
de um certo cansaço, como as que viveu Maria nos anos de Nazaré enquanto Jesus crescia:
«Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil,
porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie
de “noite da fé” – para usar as palavras de São João da Cruz – como que um “véu” através
do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério.
Foi deste modo efectivamente que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade
com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé».
288. Há um
estilo mariano na actividade evangelizadora da Igreja. Porque sempre que olhamos para
Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do afecto. N’Ela,
vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que
não precisam de maltratar os outros para se sentir importantes. Fixando-A, descobrimos
que aquela que louvava a Deus porque «derrubou os poderosos de seus tronos» e «aos
ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 52.53) é mesma que assegura o aconchego
dum lar à nossa busca de justiça. E é a mesma também que conserva cuidadosamente «todas
estas coisas ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). Maria sabe reconhecer
os vestígios do Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como naqueles que
parecem imperceptíveis. É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história
e na vida diária de cada um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré,
mas é também nossa Senhora da prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1, 39) da
sua povoação para ir ajudar os outros. Esta dinâmica de justiça e ternura, de contemplação
e de caminho para os outros faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização. Pedimos-Lhe
que nos ajude, com a sua oração materna, para que a Igreja se torne uma casa para
muitos, uma mãe para todos os povos, e torne possível o nascimento dum mundo novo.
É o Ressuscitado que nos diz, com uma força que nos enche de imensa confiança e firmíssima
esperança: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria, avançamos confiantes
para esta promessa, e dizemos-Lhe:
Virgem e Mãe Maria, Vós que,
movida pelo Espírito, acolhestes o Verbo da vida na profundidade
da vossa fé humilde, totalmente entregue ao Eterno, ajudai-nos
a dizer o nosso «sim» perante a urgência, mais imperiosa do que nunca, de
fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós, cheia da presença de Cristo, levastes
a alegria a João o Baptista, fazendo-o exultar no seio de sua mãe. Vós,
estremecendo de alegria, cantastes as maravilhas do Senhor. Vós,
que permanecestes firme diante da Cruz com uma fé inabalável, e
recebestes a jubilosa consolação da ressurreição, reunistes os discípulos
à espera do Espírito para que nascesse a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos
agora um novo ardor de ressuscitados para levar a todos o Evangelho da vida que
vence a morte. Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos para
que chegue a todos o dom da beleza que não se apaga.
Vós,
Virgem da escuta e da contemplação, Mãe do amor, esposa das núpcias eternas intercedei
pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo, para que ela nunca se feche
nem se detenha na sua paixão por instaurar o Reino.
Estrela
da nova evangelização, ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão, do
serviço, da fé ardente e generosa, da justiça e do amor aos pobres, para
que a alegria do Evangelho chegue até aos confins da terra e nenhuma
periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente, manancial
de alegria para os pequeninos, rogai por nós. Amen. Aleluia!
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no encerramento do Ano da Fé, dia 24 de Novembro
– Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – do ano de 2013, primeiro
do meu Pontificado. [Franciscus PP]
ÍNDICE
1.
Alegria que se renova e comunica [2-8] ……………………….. 2 2. A doce e reconfortante
alegria de evangelizar [9-10] ………….. 6 Uma eterna novidade [11-13]
……………………...…………………….. 7 3. A nova evangelização para a transmissão da
fé [14-15] ………….. 9 A proposta desta Exortação e seus contornos
[16-18] …..…………….. 11 Capítulo I A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
1.
Uma Igreja «em saída» [20-23] …..………………………..……….. 13 «Primeirear»,
envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar [24] ..….. 14 2. Pastoral
em conversão [25-26] …..…………………………...…….. 16 Uma renovação eclesial
inadiável [27-33] …..……………….………….. 17 3. A partir do coração
do Evangelho [34-39] …..……………...…….. 21 4. A missão que se encarna
nas limitações humanas [40-45] ...….. 23 5. Uma mãe de coração aberto
[46-49] …..………………….....…….. 27 Capítulo II NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
1.
Alguns desafios do mundo actual [52] …..…………………....…….. 30 Não a uma
economia da exclusão [53-54] …..…………………....…….. 30 Não à nova idolatria
do dinheiro [55-56] …..…………………....…….. 31 Não a um dinheiro que governa
em vez de servir [57-58] …...…….. 32 Não à desigualdade social que
gera violência [59-60] …..…………….. 33 Alguns desafios culturais
[61-67] …..…………………...............…….. 35 Desafios da inculturação da fé
[68-70] …..…………………....…….. 38 Desafios das culturas urbanas [71-75]
…..…………………....…….. 40 2. Tentações dos agentes pastorais [76-77] …..……..……....……..
42 Sim ao desafio duma espiritualidade missionária [78-80] …....……..
43 Não à acédia egoísta [81-83] …..………………….........................……..
45 Não ao pessimismo estéril [84-86] …..…………………...............……..
46 Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo [87-92] …..………….…..
48 Não ao mundanismo espiritual [93-97] …..…………………....……... 51 Não
à guerra entre nós [98-101] …..…………………...............…….. 53 Outros
desafios eclesiais [102-109] …..…………………....…………..... 55 Capítulo III O
ANÚNCIO DO EVANGELHO
1. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho [111]
…..……….…….. 60 Um povo para todos [112-114] …..…………………...............……..
60 Um povo com muitos rostos [115-118] …..…………………....……... 62 Todos
somos discípulos missionários [119-121] …..……………...…….. 65 A
força evangelizadora da piedade popular [122-126] …..……….…….. 66 De
pessoa a pessoa [127-129] …..………………….........................…….. 69 Carismas
ao serviço da comunhão evangelizadora [130-131] …....….….. 70 Cultura,
pensamento e educação [132-134] …..………………....…..…..... 71 2. A homilia
[135-136] …..………………………………..……………... 72 O contexto litúrgico [137-138]
…..…………………....……………….….. 73 A conversa da mãe [139-141] …..………………….........................……..
74 Palavras que abrasam os corações [142-144] …..………….......…….. 75 3.
A preparação da pregação [145] …..…………………....………...….. 77 O culto da
verdade [146-148] …..………………….........................…….. 77 A personalização
da Palavra [148-151] …..…………………....….….. 79 A leitura espiritual
[152-153] …..……………………………….....…….. 81 À escuta do povo [154-155]
…..…………………..........................…….. 82 Recursos pedagógicos [156-159]
…..…………………....………..….. 84 4. Uma evangelização para o aprofundamento do
querigma [160-162] . 85 Uma catequese querigmática e mistagógica
[163-168] …..……….…….. 87 O acompanhamento pessoal dos processos de crescimento
[169-173] ….... 90 Ao redor da Palavra de Deus [174-175] …..………………….....……..
92 Capítulo IV A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
1. As repercussões
comunitárias e sociais do querigma [177] ….... 94 Confissão da fé e
compromisso social [178-179] …..………………….... 94 O Reino que nos chama
[180-181] …..…………………....………...….. 96 A doutrina da Igreja sobre as questões
sociais [182-185] …….…….. 97 2. A inclusão social dos pobres [186]
…..…………………....……... 99 Unidos a Deus, ouvimos um clamor [187-192] …..………………….....
99 Fidelidade ao Evangelho, para não correr em vão [193-196] …..……....
102 O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus [197-201] …..……....
105 Economia e distribuição das entradas [202-208] …..………………….... 108 Cuidar
da fragilidade [209-216] …..……………………………….... 110 3. O bem comum e a
paz social [217-221] …..………………………...... 114 O tempo é superior ao espaço
[222-225] …..………………………...... 115 A unidade prevalece sobre o conflito
[226-230] …..………………….... 117 A realidade é mais importante do que a ideia
[231-233] …..…………...... 118 O todo é superior à parte [234-237] …..………………………………....
120 4. O diálogo social como contribuição para a paz [238-241] …..……...
121 O diálogo entre a fé, a razão e as ciências [242-243] …..…………......
123 O diálogo ecuménico [244-246] …..……………………………........ 124 As
relações com o Judaísmo [247-249] …..………………………...... 125 O diálogo inter-religioso
[250-254] …..……………………………….... 126 O diálogo social num contexto de liberdade
religiosa [255-258] ….... 129 Capítulo V EVANGELIZADORES COM ESPÍRITO 1.
Motivações para um renovado impulso missionário [262-263] ….... 133 O
encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva [264-267] …....
134 O prazer espiritual de ser povo [268-274] ……………………………....
137 A acção misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito [275-280] …....
140 A força missionária da intercessão [281-283] ………………………..
144 2. Maria, a Mãe da evangelização [284] ……………………………... 145 O
dom de Jesus ao seu povo [285-286] …………………………….... 145 A Estrela
da nova evangelização [287-288] …………………………….... 146