Jales (RV) - As manifestações de rua, ocorridas nestes dias em muitas cidades
do país, se constituem em fato complexo, de difícil interpretação. Também porque é
um fato ainda inacabado. Seu significado verdadeiro vai depender dos desdobramentos
que suscitar.
Em todo o caso, sua ambigüidade é evidente. Ao lado de pacíficas
manifestações, em cima de reivindicações legítimas, abundaram atos de vandalismo,
que comprometiam a legitimidade da manifestação.
Para compreender adequadamente
o fenômeno, é preciso ter em conta esta ambigüidade, que o contagiou de maneira fatal,
e lhe tirou uma referência que poderia ser muito mais positiva.
A falta de
clareza dos objetivos que motivavam a manifestação parecia tirar dela a legitimidade
que deveria ser inquestionável. Se o povo se coloca na rua, é porque está em jogo
uma causa importante.
Mas parecia haver um constrangimento dos próprios manifestantes,
que se revelava na indefinição do rumo concreto a seguir e das atitudes a tomar.
A rua não dava plena legitimidade à manifestação. Parecia mais uma ladeira do que
uma rua. E uma ladeira em que os manifestantes se empurravam, com risco de alguns
retrocederem e descambarem ladeira abaixo.
O preço do transporte urbano foi
o motivo alegado para as manifestações, que logo tomaram um vulto desproporcional
à reivindicação apresentada.
Aí também fica evidente que existem causas que
vão muito além daquelas que são explicitados por uma manifestação maciça de rua. Se
as manifestações se limitassem a diminuir em alguns centavos o preço da passagem,
seu tamanho resultaria bisonho. Talvez a lição maior, a ser tirada deste fato,
que inequivocamente tomou um significado político indiscutível, esteja aí. O povo
não se satisfaz com pequenas vantagens que a economia possa lhe dar. E um governo
não pode se limitar a garantir o crescimento econômico.
Temos necessidade
de horizontes mais amplos. Queremos participar da elaboração de um projeto de país
que corresponda aos sonhos de maior igualdade social, de participação nas decisões
políticas, e de superação das injustiças históricas que marcaram nossa sociedade brasileira.
“Não só de pão vive o homem!” Estas palavras da Escritura parecem calhar bem
a propósito de nosso país, depois desses últimos anos de Brasil com um pouco mais
de pão na mesa de todos. Não basta o pão! Se ficarmos só nele, amesquinhamos nossa
vocação humana, e deslegitimamos nossas reivindicações políticas.
Não basta
o crescimento econômico. Ele certamente faz parte do projeto de país que queremos.
Mas existem muitos outros valores a serem contemplados, definidos, e propostos para
a consecução prática. Por décadas a CNBB incentivou, através de “semanas sociais”
por ela empreendidas, a construirmos juntos um projeto de país “politicamente democrático,
socialmente solidário, economicamente justo, ecologicamente sustentável, culturalmente
plural, regionalmente diversificado e religiosamente ecumênico”.
As manifestações
destes dias sinalizam para a necessidade urgente de diálogo. É preciso chamar o povo
da ladeira para a praça! É preciso dialogar abertamente, valorizando as instituições,
e colocando-as a serviço do povo.
O fato não está ainda concluído. Como tal,
está sujeito à usurpação. Resta ver quem vai se apoderar dele politicamente. Sua
legitimidade ficará garantida depois de depurado de suas ambigüidades, para ser colocado
como sinal positivo de vitalidade democrática, sobretudo dos jovens que tiveram o
mérito indiscutível do seu protagonismo.