Para uma sinfonia racial na Igreja de Cristo - Editorial África
“Ao dirigirmos a Nossa saudaçãoà África, não
podemos deixar de recordar as suas antigas glórias cristãs.Pensamos nas Igrejascristãs daÁfrica,cujas origensremontam aos tempos apostólicos,e
estão ligadas, segundo a tradição, ao nome e ao ensinamento do
Evangelista Marcos. Pensamos na multidão inumerável desantos, mártires, confessores, virgens, que a elaspertencem.De facto, do séc. II ao séc. IV a vida
cristã nas regiões setentrionais da Áfricafoi intensíssimae na vanguarda tanto no estudoteológico quanto naexpressão
literária.Vêm à memóriaos nomes dosgrandes
doutores e escritores, como Orígenes, S. Atanásio, S. Cirilo,
autênticos astros da Escola de Alexandrina e,na outra extremidadeda África do Norte, Tertuliano, São Cipriano, e sobretudo
S.Agostinho,uma das luzesmais
brilhantesdo cristianismo. Havemos de recordar osgrandes santos dodeserto, Paulo, António, Pacómio,
primeiros fundadoresdo monaquismo, que se difundiu mais tarde,
através do seu exemplo, pelo Oriente e pelo Ocidente.E, recordamos entre outros,SanFrumencio,chamado AbbaSalama, que, consagradobispopor SãoAtanásio, foio Apóstoloda
Etiópia.Estes exemplos luminosos, assim como as figuras
dos Santos PapasAfricanosVictorI,Melcíadese Gelásio, pertencem ao
património comumda Igreja,e os escritos dosautores
cristãosda África são ainda hoje fundamentais paraaprofundar, àluz da Palavrade Deus,a
história dasalvação”.
Assim se exprimia já em 1967 o Papa
Paulo VI, que concluiu os trabalhos do Concílio Vaticano II e que teve, ao mesmo tempo,
a coragem, de romper através da Encíclica Populorum Progressio, com a visão hegeliana
da história (que envolvia o próprio ambiente conciliar) e abrir caminho para a verdadeira
unidiversalidade e, portanto, para a verdadeira catolicidade da Igreja, enquadrando-a
assim na lógica da Verdade Sinfónica, para cujo coro, segundo as palavras de Hans
Urs von Balthasar, também são convidados todos aqueles que pertencem ao hemisfério
Sul e que eram até então considerados como pertencentes ao reino da não-historicidade
humana, os "condenados da terra", segundo uma expressão de Frantz Fanon. O Papa
Paulo VI iniciou assim, um percurso eclesial centrado na opção preferencial pelos
pobres para permitir à Igreja valorizar aquilo que Gustavo Gutiérrez chama a força
históricados pobres, os quais se tornam assim em verdadeiros sujeitos
da história da Igreja em geral, e não objectos de debate da Igreja universal. Hoje,
eles representam mais de 52% da população católica mundial. Entre estes novos protagonistas
da Igreja do Sul estão também os africanos. No entanto, no terceiro milénio da era
cristã, sempre que há a eleição dum papa, vem de novo à tona a habitual piada, segundo
a qual a África e os africanos ainda não estão prontos para assumir a responsabilidade
da Cátedra de Pedro, ou que a Igreja em África é uma Igreja jovem, e até mesmo adolescente,
como pudemos ler, nestes dias de Sé Vacante em vários artigos. Ora, só uma ignorância
crassa da história pode levar a tais afirmações hiperbólicas, o que constitui um punho
no estômago de qualquer Africano, mesmo do mais pacífico, é o conteúdo de consciência
comunicante subjacente a tais afirmações, por vezes em voz baixa, mas não raro difundido
pelos meios de comunicação: isto é, que o "mundoainda
não está prontopara aceitar umPapa
Negro". Estas afirmações, resultado de uma eclesiologia que corresponde
mais ao clima cultural e político da globalização económica e da exploração da África
do que aos discursos dos Papas recentes e dos Sínodos sobre a África, ferem gravemente
o "ser" de qualquer Africano que ama seriamente a Igreja de Cristo e que olha para
a Igreja como uma verdadeira "família de Deus"; mas ofende sobretudo e de forma grave
a nossa dignidade de criaturas, de seres humanos criados à mesma
imagem e semelhança de Deus, que todas as outras criaturas humanas habitantes da Terra.
Afinal, em pleno século XXI, isto continua ainda hoje a ser um problema. Mais ainda:
continua a sê-lo mesmo depois do Concílio Vaticano II, e sobretudo, depois da liturgia
da purificação da memória celebrada no início do Terceiro Milénio pelo Papa João Paulo
II (denominado “Papa Africano”), o qual pediu perdão pelos pecados cometidos, no passado,
pela Igreja, também contra os povos africanos. Gesto que ele reafirmou de forma ainda
mais forte e explícita durante a sua peregrinação à ilha de Goré, no Senegal, a linha
de cor, para usarmos uma expressão de Du Bois. Continuamente, ainda neste
terceiro milénio cristão, a ser perseguidos pela maldição de Caim, que não nos permite
ser dignos de realizar diakonias eclesiais, reservadas, ao que parece, apenas aos
outros filhos de Noé que escaparam à maldição do pai. Isto levanta graves interrogativos
não apenas sobre a natureza do ser Negro como tal, mas também sobre o lugar geográfico
da sua proveniência (há, por vezes, a tendência a esquecer que há negros também noutros
continentes, e a sublinhar a cor da pele apenas quando as pessoas são provenientes
da África), e por conseguinte o seu ser Negro como obstáculo para a Cátedra de Pedro. É,
portanto, urgente tomar seriamente em consideração, as palavras do Papa Francisco
que, no seu primeiro encontro com os jornalistas, recordou-os que as realidades da
Igreja são complexas e que requerem, por isso, uma leitura atenta e consciente dessa
complexidade, que inclui, de forma especial, a dimensão da fé. Isto facilita a compreensão
da Igreja como Povo de Deus, o Santo Povo de Deus que caminha para o encontro com
Jesus Cristo. Não se deve, portanto, debruçar apenas sobre a fraqueza cultural da
Igreja, porque isto põe hoje sérias questões sobre a natureza da catolicidade da própria
Igreja: enquanto Jesus dormia no sono da morte sobre a cruz, nascia a Igreja como
catolicidade, isto é, não mais judeus, romanos, etc. mas todos filhos no Unigénito
Filho de Deus e, portanto, católicos, universais – fazia notar S. Agostinho, um africano
que, nas palavras do Papa Paulo VI, é "uma das luzes mais brilhantes do cristianismo".
Em
vésperas de conclaves e durante o desenrolar dos mesmos, para além da curiosidade,
permeia também a opinião pública a possibilidade ou não de ser eleito um Papa africano,
como que uma espécie de ladainha tendente a exorcizar a sua real efectivação. Se isso
se tornasse realidade, temos a certeza de que seria uma ocasião de grande alegria
para os fiéis, mas um pesadelo, para não dizermos ultraje à verdadeira "raça normal
da Igreja", ou seja para muitos Pastores da nossa Igreja universal. E isto, para além
de ser grave é triste.
O facto de esta questão se tornar de domínio público
todas as vezes que há um conclave, leva a pensar que a Igreja terá, mais cedo ou mais
tarde de enfrentar abertamente a questão do racismo e da discriminação racial dentro
das estruturas com o mesmo vigor e entusiasmo profético com que o enfrenta em relação
às sociedades em todos os cantos da Terra.
Consola-nos o facto de que em várias
partes da África, os prognósticos sobre o novo Papa, destacaram a esperança real por
parte de todos, sem distinção da credo, que o Papa fosse antes de tudo uma pessoa
capaz de guiar o imenso povo de Deus para horizontes de paz, de justiça, do perdão
e da reconciliação. A cor da sua pele, a sua origem, foram consideradas marginais,
embora todas essas previsões fizessem ver que mesmo que não fosse um africano, os
africanos ficariam felizes na mesma, pois que entendiam que o mais importante não
era que fosse um africano, mas que fosse um Papa capaz de enfrentar a missão petrina,
num mundo cada vez mais global e complexo.
A partir do início do conclave os
jornais interpretaram as fumaças negras como a derrota do conclave. Ninguém reflectiu
sobre o facto de que os cardeais seguem as primeiras votações para procurar entender
"que dinâmicatrará ocandidatoXou o candidato Y". E’ claro, todos eles são portadores de
bem para a Igreja universal, mas X trará uma dinâmica do seu próprio povo, do próprio
continente; e Y de um outro. O que será melhor para a Igreja universal de hoje? Eis
a grande questão que está sempre por detrás da escolha dos cardeais durante o Conclave. Das
considerações de Paulo VI se conclui que qualquer afirmação sobre o estado de adolescência
ou juventude da Igreja em África não só é priva de qualquer fundamento histórico,
mas constitui também um autêntico disparate prejudicial para uma concepção de catolicidade
eclesial, isto é duma Igreja Família de Deus, pois que envolta implicitamente num
conteúdo de consciência comunicante racista.
Enfim, as Igrejas africanas não
são "Igrejas menores"; elas pedem simplesmente que lhes seja dada confiança e que
se lhes deixe fazer. A este propósito, o teólogo e filósofo Meinrad Hebga escreve
que:
"autonomia e comunhãosão condições depossibilidade deumapara outra;duas
exigências que mantêmas Igrejase a Igreja numa
tensão salutar".
Como escrevia o mesmo Paulo VI em 1975: "qualquer
Igreja particular quese separasse voluntariamenteda
Igrejauniversalperderiaa sua referência
como desígnio de Deus,e se empobreceria na
sua dimensãoeclesial.Mas, por outro lado,
a Igreja difundida em todo o mundo se tornariauma abstracçãose nãotomassecorpo e vidaprecisamenteatravés dasIgrejas particulares.Apenas
uma atenção permanentepara com os dois pólosda Igrejanos permitirápercebera
riqueza destarelação entre Igrejauniversale
Igrejas particulares".
Nesse mesmo ano, durante a IV Assembleia do SCEAM,
realizada em Frascati, perto de Roma, Dom James Sangu, então bispo de Mbeya na Tanzânia,
nas pegadas de Paulo VI, disse entre outras coisas:
"Eu acho que
em África não há motivo para temerque
queiramostornar-nos independentesda Santa Sé.
Aunidade com Romae com o Santo Padre lá
é muito apreciada e a sua autoridade sobrea Igreja
é até hoje incontestada.Maso facto quea Igreja africanaestá a tornar-se adultaexige
queas relações entre asigrejas africanase
a Santa Sésejamrepensadas(...).
É necessário queasConferências Episcopaispossamassumir os assuntos locaisque
não prejudicama Igrejauniversal. Também as
relações entreasconferências episcopaise
os delegadosdo Papadeverãoser redefinidoscom clareza". Ora, num momento em que o centro de gravidade do cristianismo
se move do Ocidente para os países do Sul, o alcance das tarefas de uma evangelização
em profundidade exige dar maior iniciativa às igrejas locais que carregam o futuro
da fé nos desequilíbrios demográficos da humanidade contemporânea. Nesta perspectiva,
cresce a consciência da necessidade de repensar a maneira como as igrejas locais se
unem à Igreja universal, dando importância àquilo que as igrejas locais podem fazer
por si mesmas como centro de iniciativa e de decisão, e também como sua contribuição
à universalidade da Igreja. O que se quer hoje é o surgimento de uma cultura de co-responsabilidade
na Igreja. Um conceito que se tornou invisível ao longo de décadas no vocabulário
eclesial, mas que acabou por ser, justamente, o ponto forte do Pontificado do Papa
Bento XVI. Dentro desta perspectiva de co-responsabilidade eclesial de Igrejas que
se consideram maduras, respeitosas e acima de tudo fraternas, o que é importante é,
como diz o teólogo Jean-Marc Ela, interrogar-nos sobre o que poderá vir da Galileia
das nações africanas em relação ao Papado. O que se pode e se deve esperar das chamadas
"jovens Igrejas do Sul" sobre uma questão tão séria e que, na verdade, está no centro
do debate e dos desafios teológicos e doutrinais, tanto dentro da própria Igreja de
Roma como nas relações com as outras Igrejas e comunidades eclesiais? Em suma:
o que nos diz o testemunho fundamental do Novo Testamento em relação ao Papa no hoje
de Deus? Que relevância tem esta palavra? Como anunciar corajosamente o Evangelho
àqueles que "têm sede de liberdade, justiça e fraternidade", neste Ano da Fé, no contexto
da nova evangelização? Quase que se poderia perguntar se todos entendemos a ênfase
que o Papa Francisco deu no início do seu pontificado, ao insistir no facto de que
ele é Bispo de Roma, a Igreja que precede as outras Igrejas na caridade.Como se pode
ver, estas perguntas são graves e difíceis. São sobretudo impostas pelas novas tarefas
da missão num momento de transição em que, depois da evangelização de ontem, a Igreja
em África, de acordo com a sua vocação, deve colocar-se "decididamente do
ladodos oprimidos, dos sem voze dos marginalizados"
para dartestemunho daquele Deus que,em Jesus
Cristo,"salva o Africano da opressãoe da escravidão", como nos propôs o primeiro Sínodo sobre
a África realizado em 1994 e reiterado no segundo sínodo de 2009. Deste ponto de vista,
qualquer reflexão africana séria sobre o Papa na Igreja hoje é necessariamente inseparável
de uma reflexão que convida a considerar o lugar central dos pobres no plano de Deus.
Assumindo esta exigência essencial que é um verdadeiro desafio para a Igreja em África,
mostra-se importante tomar em consideração as mudanças históricas e culturais que
obrigam a repensar em profundidade as próprias instituições cristãs. Para continuar
a levar a ajuda no campo da saúde e da educação, mas também para fazer amadurecer
as sociedades, para fazer crescer as Igrejas particulares na necessidade de compreender
que a Igreja é de Cristo e que nós todos devemos segui-Lo como irmãos e irmãs de cada
nação, de cada "cor da pele": a Igreja é, de facto, sinfónica no seu aspecto multicolor.
Mais importante ainda, porém, é que devemos reler o Evangelho a partir dos lugares
em que Deus nos fala todos os dias, e lembrar ao "mundo rico e opulento", que Jesus
nasceu em Nazaré e que as primeiras comunidades cristãs partiram daqui, da África,
convidando-nos a redescobri-lo como Deus que liberta os pobres e os oprimidos. O gesto
da renúncia do Papa Bento XVI e os primeiros gestos públicos do novo Papa Francisco
são evocativos da indispensabilidade desta opção fundamental para o futuro da Igreja
e da humanidade. Filomeno Lopes – Programa Português