2013-04-04 15:50:10

Para uma sinfonia racial na Igreja de Cristo - Editorial África


Ao dirigirmos a Nossa saudação à África, não podemos deixar de recordar as suas antigas glórias cristãs. Pensamos nas Igrejas cristãs da África, cujas origens remontam aos tempos apostólicos, e estão ligadas, segundo a tradição, ao nome e ao ensinamento do Evangelista Marcos. Pensamos na multidão inumerável de santos, mártires, confessores, virgens, que a elas pertencem. De facto, do séc. II ao séc. IV a vida cristã nas regiões setentrionais da África foi intensíssima e na vanguarda tanto no estudo teológico quanto na expressão literária. Vêm à memória os nomes dos grandes doutores e escritores, como Orígenes, S. Atanásio, S. Cirilo, autênticos astros da Escola de Alexandrina e, na outra extremidade da África do Norte, Tertuliano, São Cipriano, e sobretudo S. Agostinho, uma das luzes mais brilhantes do cristianismo. Havemos de recordar os grandes santos do deserto, Paulo, António, Pacómio, primeiros fundadores do monaquismo, que se difundiu mais tarde, através do seu exemplo, pelo Oriente e pelo Ocidente. E, recordamos entre outros, San Frumencio, chamado Abba Salama, que, consagrado bispo por São Atanásio, foi o Apóstolo da Etiópia. Estes exemplos luminosos, assim como as figuras dos Santos Papas Africanos Victor I, Melcíades e Gelásio, pertencem ao património comum da Igreja, e os escritos dos autores cristãos da África são ainda hoje fundamentais para aprofundar, à luz da Palavra de Deus, a história da salvação”.

Assim se exprimia já em 1967 o Papa Paulo VI, que concluiu os trabalhos do Concílio Vaticano II e que teve, ao mesmo tempo, a coragem, de romper através da Encíclica Populorum Progressio, com a visão hegeliana da história (que envolvia o próprio ambiente conciliar) e abrir caminho para a verdadeira unidiversalidade e, portanto, para a verdadeira catolicidade da Igreja, enquadrando-a assim na lógica da Verdade Sinfónica, para cujo coro, segundo as palavras de Hans Urs von Balthasar, também são convidados todos aqueles que pertencem ao hemisfério Sul e que eram até então considerados como pertencentes ao reino da não-historicidade humana, os "condenados da terra", segundo uma expressão de Frantz Fanon.
O Papa Paulo VI iniciou assim, um percurso eclesial centrado na opção preferencial pelos pobres para permitir à Igreja valorizar aquilo que Gustavo Gutiérrez chama a força histórica dos pobres, os quais se tornam assim em verdadeiros sujeitos da história da Igreja em geral, e não objectos de debate da Igreja universal. Hoje, eles representam mais de 52% da população católica mundial. Entre estes novos protagonistas da Igreja do Sul estão também os africanos. No entanto, no terceiro milénio da era cristã, sempre que há a eleição dum papa, vem de novo à tona a habitual piada, segundo a qual a África e os africanos ainda não estão prontos para assumir a responsabilidade da Cátedra de Pedro, ou que a Igreja em África é uma Igreja jovem, e até mesmo adolescente, como pudemos ler, nestes dias de Sé Vacante em vários artigos. Ora, só uma ignorância crassa da história pode levar a tais afirmações hiperbólicas, o que constitui um punho no estômago de qualquer Africano, mesmo do mais pacífico, é o conteúdo de consciência comunicante subjacente a tais afirmações, por vezes em voz baixa, mas não raro difundido pelos meios de comunicação: isto é, que o "mundo ainda não está pronto para aceitar um Papa Negro".
Estas afirmações, resultado de uma eclesiologia que corresponde mais ao clima cultural e político da globalização económica e da exploração da África do que aos discursos dos Papas recentes e dos Sínodos sobre a África, ferem gravemente o "ser" de qualquer Africano que ama seriamente a Igreja de Cristo e que olha para a Igreja como uma verdadeira "família de Deus"; mas ofende sobretudo e de forma grave a nossa dignidade de criaturas, de seres humanos criados à mesma imagem e semelhança de Deus, que todas as outras criaturas humanas habitantes da Terra. Afinal, em pleno século XXI, isto continua ainda hoje a ser um problema. Mais ainda: continua a sê-lo mesmo depois do Concílio Vaticano II, e sobretudo, depois da liturgia da purificação da memória celebrada no início do Terceiro Milénio pelo Papa João Paulo II (denominado “Papa Africano”), o qual pediu perdão pelos pecados cometidos, no passado, pela Igreja, também contra os povos africanos. Gesto que ele reafirmou de forma ainda mais forte e explícita durante a sua peregrinação à ilha de Goré, no Senegal, a linha de cor, para usarmos uma expressão de Du Bois. Continuamente, ainda neste terceiro milénio cristão, a ser perseguidos pela maldição de Caim, que não nos permite ser dignos de realizar diakonias eclesiais, reservadas, ao que parece, apenas aos outros filhos de Noé que escaparam à maldição do pai.
Isto levanta graves interrogativos não apenas sobre a natureza do ser Negro como tal, mas também sobre o lugar geográfico da sua proveniência (há, por vezes, a tendência a esquecer que há negros também noutros continentes, e a sublinhar a cor da pele apenas quando as pessoas são provenientes da África), e por conseguinte o seu ser Negro como obstáculo para a Cátedra de Pedro.
É, portanto, urgente tomar seriamente em consideração, as palavras do Papa Francisco que, no seu primeiro encontro com os jornalistas, recordou-os que as realidades da Igreja são complexas e que requerem, por isso, uma leitura atenta e consciente dessa complexidade, que inclui, de forma especial, a dimensão da fé. Isto facilita a compreensão da Igreja como Povo de Deus, o Santo Povo de Deus que caminha para o encontro com Jesus Cristo. Não se deve, portanto, debruçar apenas sobre a fraqueza cultural da Igreja, porque isto põe hoje sérias questões sobre a natureza da catolicidade da própria Igreja: enquanto Jesus dormia no sono da morte sobre a cruz, nascia a Igreja como catolicidade, isto é, não mais judeus, romanos, etc. mas todos filhos no Unigénito Filho de Deus e, portanto, católicos, universais – fazia notar S. Agostinho, um africano que, nas palavras do Papa Paulo VI, é "uma das luzes mais brilhantes do cristianismo".

Em vésperas de conclaves e durante o desenrolar dos mesmos, para além da curiosidade, permeia também a opinião pública a possibilidade ou não de ser eleito um Papa africano, como que uma espécie de ladainha tendente a exorcizar a sua real efectivação. Se isso se tornasse realidade, temos a certeza de que seria uma ocasião de grande alegria para os fiéis, mas um pesadelo, para não dizermos ultraje à verdadeira "raça normal da Igreja", ou seja para muitos Pastores da nossa Igreja universal. E isto, para além de ser grave é triste.

O facto de esta questão se tornar de domínio público todas as vezes que há um conclave, leva a pensar que a Igreja terá, mais cedo ou mais tarde de enfrentar abertamente a questão do racismo e da discriminação racial dentro das estruturas com o mesmo vigor e entusiasmo profético com que o enfrenta em relação às sociedades em todos os cantos da Terra.

Consola-nos o facto de que em várias partes da África, os prognósticos sobre o novo Papa, destacaram a esperança real por parte de todos, sem distinção da credo, que o Papa fosse antes de tudo uma pessoa capaz de guiar o imenso povo de Deus para horizontes de paz, de justiça, do perdão e da reconciliação. A cor da sua pele, a sua origem, foram consideradas marginais, embora todas essas previsões fizessem ver que mesmo que não fosse um africano, os africanos ficariam felizes na mesma, pois que entendiam que o mais importante não era que fosse um africano, mas que fosse um Papa capaz de enfrentar a missão petrina, num mundo cada vez mais global e complexo.

A partir do início do conclave os jornais interpretaram as fumaças negras como a derrota do conclave. Ninguém reflectiu sobre o facto de que os cardeais seguem as primeiras votações para procurar entender "que dinâmica trará o candidato X ou o candidato Y". E’ claro, todos eles são portadores de bem para a Igreja universal, mas X trará uma dinâmica do seu próprio povo, do próprio continente; e Y de um outro. O que será melhor para a Igreja universal de hoje? Eis a grande questão que está sempre por detrás da escolha dos cardeais durante o Conclave.
Das considerações de Paulo VI se conclui que qualquer afirmação sobre o estado de adolescência ou juventude da Igreja em África não só é priva de qualquer fundamento histórico, mas constitui também um autêntico disparate prejudicial para uma concepção de catolicidade eclesial, isto é duma Igreja Família de Deus, pois que envolta implicitamente num conteúdo de consciência comunicante racista.

Enfim, as Igrejas africanas não são "Igrejas menores"; elas pedem simplesmente que lhes seja dada confiança e que se lhes deixe fazer. A este propósito, o teólogo e filósofo Meinrad Hebga escreve que:

"autonomia e comunhão são condições de possibilidade de uma para outra; duas exigências que mantêm as Igrejas e a Igreja numa tensão salutar".

Como escrevia o mesmo Paulo VI em 1975:
"qualquer Igreja particular que se separasse voluntariamente da Igreja universal perderia a sua referência com o desígnio de Deus, e se empobreceria na sua dimensão eclesial. Mas, por outro lado, a Igreja difundida em todo o mundo se tornaria uma abstracção se não tomasse corpo e vida precisamente através das Igrejas particulares. Apenas uma atenção permanente para com os dois pólos da Igreja nos permitirá perceber a riqueza desta relação entre Igreja universal e Igrejas particulares".

Nesse mesmo ano, durante a IV Assembleia do SCEAM, realizada em Frascati, perto de Roma, Dom James Sangu, então bispo de Mbeya na Tanzânia, nas pegadas de Paulo VI, disse entre outras coisas:

"Eu acho que em África não há motivo para temer que queiramos tornar-nos independentes da Santa Sé. A unidade com Roma e com o Santo Padreé muito apreciada e a sua autoridade sobre a Igreja é até hoje incontestada. Mas o facto que a Igreja africana está a tornar-se adulta exige que as relações entre as igrejas africanas e a Santa Sé sejam repensadas (...). É necessário que as Conferências Episcopais possam assumir os assuntos locais que não prejudicam a Igreja universal. Também as relações entre as conferências episcopais e os delegados do Papa deverão ser redefinidos com clareza".
Ora, num momento em que o centro de gravidade do cristianismo se move do Ocidente para os países do Sul, o alcance das tarefas de uma evangelização em profundidade exige dar maior iniciativa às igrejas locais que carregam o futuro da fé nos desequilíbrios demográficos da humanidade contemporânea.
Nesta perspectiva, cresce a consciência da necessidade de repensar a maneira como as igrejas locais se unem à Igreja universal, dando importância àquilo que as igrejas locais podem fazer por si mesmas como centro de iniciativa e de decisão, e também como sua contribuição à universalidade da Igreja. O que se quer hoje é o surgimento de uma cultura de co-responsabilidade na Igreja. Um conceito que se tornou invisível ao longo de décadas no vocabulário eclesial, mas que acabou por ser, justamente, o ponto forte do Pontificado do Papa Bento XVI. Dentro desta perspectiva de co-responsabilidade eclesial de Igrejas que se consideram maduras, respeitosas e acima de tudo fraternas, o que é importante é, como diz o teólogo Jean-Marc Ela, interrogar-nos sobre o que poderá vir da Galileia das nações africanas em relação ao Papado. O que se pode e se deve esperar das chamadas "jovens Igrejas do Sul" sobre uma questão tão séria e que, na verdade, está no centro do debate e dos desafios teológicos e doutrinais, tanto dentro da própria Igreja de Roma como nas relações com as outras Igrejas e comunidades eclesiais?
Em suma: o que nos diz o testemunho fundamental do Novo Testamento em relação ao Papa no hoje de Deus? Que relevância tem esta palavra? Como anunciar corajosamente o Evangelho àqueles que "têm sede de liberdade, justiça e fraternidade", neste Ano da Fé, no contexto da nova evangelização? Quase que se poderia perguntar se todos entendemos a ênfase que o Papa Francisco deu no início do seu pontificado, ao insistir no facto de que ele é Bispo de Roma, a Igreja que precede as outras Igrejas na caridade.Como se pode ver, estas perguntas são graves e difíceis. São sobretudo impostas pelas novas tarefas da missão num momento de transição em que, depois da evangelização de ontem, a Igreja em África, de acordo com a sua vocação, deve colocar-se "decididamente do lado dos oprimidos, dos sem voz e dos marginalizados" para dar testemunho daquele Deus que, em Jesus Cristo, "salva o Africano da opressão e da escravidão", como nos propôs o primeiro Sínodo sobre a África realizado em 1994 e reiterado no segundo sínodo de 2009. Deste ponto de vista, qualquer reflexão africana séria sobre o Papa na Igreja hoje é necessariamente inseparável de uma reflexão que convida a considerar o lugar central dos pobres no plano de Deus. Assumindo esta exigência essencial que é um verdadeiro desafio para a Igreja em África, mostra-se importante tomar em consideração as mudanças históricas e culturais que obrigam a repensar em profundidade as próprias instituições cristãs. Para continuar a levar a ajuda no campo da saúde e da educação, mas também para fazer amadurecer as sociedades, para fazer crescer as Igrejas particulares na necessidade de compreender que a Igreja é de Cristo e que nós todos devemos segui-Lo como irmãos e irmãs de cada nação, de cada "cor da pele": a Igreja é, de facto, sinfónica no seu aspecto multicolor. Mais importante ainda, porém, é que devemos reler o Evangelho a partir dos lugares em que Deus nos fala todos os dias, e lembrar ao "mundo rico e opulento", que Jesus nasceu em Nazaré e que as primeiras comunidades cristãs partiram daqui, da África, convidando-nos a redescobri-lo como Deus que liberta os pobres e os oprimidos. O gesto da renúncia do Papa Bento XVI e os primeiros gestos públicos do novo Papa Francisco são evocativos da indispensabilidade desta opção fundamental para o futuro da Igreja e da humanidade.
Filomeno Lopes – Programa Português








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