O Mali precisa de fazer uma análise profunda do seu mal-estar social - Jean de Dieu
Dembélé
A crise politico-militar
que se criou no Mali, abrindo as portas aos jihadistas e aos independentistas, deve
constituir uma ocasião para os malianos fazerem uma análise profunda do caos em que
o país se encontra a fim de evitar que isto volte a acontecer. São palavras de Jean
de Dieu Dembélé, antropólogo maliano, presidente duma Associação para a Educação
e formação ao Desenvolvimento, vice-Presidente do Movimento Internacional do Apostolado
dos Meios Sociais Independentes em África e membro do Conselho Regional dos Leigos
para a África Ocidental. E foi precisamente para tomar parte numa reunião do Conselho
dos Leigos, no Vaticano, que veio a Roma em meados de Fevereiro. A Rádio Vaticano
aproveitou para ouvir a sua opinião acerca da crise no Mali. Oiça-o (ou leia em baixo)
no “Temas de Actualidade”…
Entrevista
realizada por Olivier Bonnel da Secção Francesa da nossa Emissora:
Sr.
Jean de Dieu Dembélé, a seu ver qual é o estado de espírito com que os malianos estão
a viver a crise politico-militar que se veio a criar no país?
“Acho
que com a intervenção da França, a população sente-se hoje um pouco mais segura. Mas
está ao mesmo tempo inquieta porque o Exercito está no Norte e são nossos irmãos e
irmãs esses que estão no Exercito e não sabemos como é que tudo isto se vai desenrolar
para eles. Há, portanto, esta inquietação da parte das famílias e das pessoas”.
Isto
relativamente à situação no terreno. Politicamente há perspectivas de um desbloqueio
da situação? Sabemos que há um governo de transição, sabemos que é difícil pôr de
pé uma equipa governamental durável, há também a questão da formação do Exército maliano….
Muitas questões… Quais são as prioridades, a seu ver?
“Acho que a prioridade
para o Mali a nível político é realmente um dialogo a nível nacional, porque o que
estamos a viver actualmente não é algo que aconteceu repentinamente em 2012. São consequências,
pelo menos em parte, duma certa governação. E os partidos políticos têm hoje pouca
credibilidade perante a população. Seria portanto, bom, aliás é urgente,
que os malianos se sentem e dialoguem para que não caíamos nunca mais em situações
como as que nos conduziram, em parte, à crise que estamos a viver actualmente. Há
pessoas que insistem que é preciso realizar eleições, mas não sei como é que vamos
realizar eleições nestas condições; eleições baseadas em quê?!.
O tecido social já não é o que era e os actores políticos já não são ouvidos pela
população: as pessoas fazem de conta que é uma brincadeira quando os políticos falam.
Isto é grave. Então não se pode construir uma democracia se
os cidadãos consideram que os que são chamados a ajudá-los a organizar a vida socialmente
pronunciam discursos vazios. Acho que o dialogo é urgente”.
Se
bem percebo, está a dizer que há o tempo da guerra e o tempo do diálogo. É um tempo
muito longo. Acha que os malianos vão ter a paciência de esperar?
“O
diálogo de que falo, não é necessário que seja depois da guerra. Os actores políticos
devem sentar-se com a população – em todo o caso lá onde isso é possível – para fazer
um diagnóstico da situação em que nos encontramos. E há o outro diálogo que é, naturalmente,
ligado ao estado de guerra; mas é preciso fazer ao mesmo tempo esse outro diálogo,
como sendo, aliás, um elemento que pode levar ao fim dessa guerra, porque uma guerra
não se sabe até onde pode ir, quanto tempo pode durar; o mais importante é fazer com
que dure o menos possível. E para que dure o menos possível é necessário que as pessoas
aceitem dialogar. A meu ver, ao mesmo tempo que se fala em dialogo com os rebeldes,
é importante que a própria sociedade dialogue, vá em direcção à reconciliação, porque
não se pode considerar que a situação que se vive no Mali seja ligada simplesmente
a uma situação rebelde. É preciso reconhecer que há um mal-estarna sociedade, a nível da população. Ocultar esse mal-estar porque estamos
perante grupos rebeldes, porque há grupos jihadistas, seria não construir algo durável
para o nosso país. Acho que depois do sacrifício que as populações fizeram no Norte
do país durante todo esse tempo de ocupação; e mesmo tendo em conta a possibilidade
de a montanha vir a parir um rato porque se concentrou a atenção só na questão dos
jihadistas, dos independentistas, recusando olhar para a maneira como o país foi governado,
seria realmente uma pena! Então para evitar isso, é preciso fazer as duas
coisas ao mesmo tempo, que cada um possa ver qual foi a sua responsabilidade histórica,
lá onde estava no país, e dizer: eis como contribuí para esta situação de caos, porque
estamos realmente num caos!; as instituições
actuais são fruto dum consenso político internacional: temos uma assembleia parlamentar
que já não tem mandato, mas bom, diz-se que é preciso mantê-la; construiu-se uma governo
dito de união nacional… Ok!... tudo isso não é mau, mas é preciso saber que isto não
poderá continuar assim… caso contrário seria como se tomássemos o caos como forma
de governação. Compreender porque é que estamos neste caos e como sair dele, é indispensável.”
Em toda esta situação, como é que trabalha a Igreja, o que fazem
os cristãos malianos, de que modo contribuem para essa reflexão, para esse diálogo
que evocou?
“A comunidade cristã pôs-se, desde
o início da crise, a orar. Tem rezado e continua a rezar pela paz. Qualquer encontro
das comunidades cristãs termina com uma oração pela paz. Além disso, há que ter em
conta que a comunidade cristã não está isolada do resto da sociedade. Há um aspecto
muito importante que é a família. No Mali a família está acima da religião. Não há
uma família que seja unicamente cristã. Na mesma família há cristãos, há muçulmanos,
há pessoas da Religião Tradicional Africana. Por isso, na situação actual há acções
comunitárias para que essa vida em conjunto não sofra devido a estes conflitos todos;
conflitos, cujas verdadeiras razões são, por vezes, externas, embora se tenda a dar-lhes
uma conotação religiosa; mesmo havendo pessoas que vêm dizer “nós queremos um islão
desta ou daquela forma…” isso é tão estranho à nossa sociedade que as comunidades
ficam, por vezes, perdidas. No entanto, a nível institucional, é desde
o início que a Igreja tem vindo a rezar pela paz. Os bispos do Mali acabam de ter
a sua assembleia ordinária, no fim da qual emitiram uma mensagem à comunidade, mensagem
em que apelaram à oração, à solidariedade e também à prudência e à vigilância; apelaram
ao temor de Deus porque, independentemente, da religião de cada um, somos um país
de crentes. É por isso que terminaram a sua mensagem por esse temor de Deus; remeter
cada um para a própria tradição religiosa para que possamos ver quais são as luzes
de esperança para construir uma verdadeira paz. Acho que para além do discurso
político, é um facto que somos realmente um país de crentes; agora, o desafio é como
fazer com que essa dimensão religiosa não seja instrumentalizada, manipulada e posta
em condições de perturbar a vida comunitária e a união nacional. Esta também a razão
por que a questão da laicidade do Estado é uma questão importante, mas atrás de tudo
isso está a liberdade religiosa… Acho que actualmente há um esforço de reflexão entre
as diversas confissões religiosas a fim de esclarecer esta questão porque a verdade
é que na história a questão de laicidade do Estado e da liberdade religiosa tem apresentado
algumas ambiguidades. Esta a razão por que falo sempre da necessidade dum dialogo
nacional. É tempo de esclarecermos um certo número de coisas: todos os actos susceptíveis
de criar desunião, confusão seja no plano político, seja no plano religioso, devem
ser analisados a fim de estabelecer balizas… em conjunto, dizer quais as propostas
para se caminhar em frente fazendo com que as pessoas possam viver livremente a própria
religião, até porque se fala muito em islão e cristianismo, mas há todos os que são
adeptos da Religião Tradicional Africana e são numerosos! No entanto são, na maior
parte das vezes, diluídos nas duas religiões reveladas, são ignorados. Ora, a realidade
no terreno é outra. Por isso, há todo um trabalho a fazer… Embora não seja
bonito afirmá-lo assim, a verdade é que a vantagem dessa situação de crise é que
constitui uma ocasião para abrimos os olhos e darmo-nos conta de que estávamos a viver
com base em determinados ideais mas que o nosso comportamento social quotidiano não
estava em conformidade com esses ideais. Falamos de laicidade, de liberdade religiosa,
mas o nosso comportamento na sociedade, nos serviços públicos reforçam a liberdade
religiosa, reforçam a laicidade do Estado? É nesta ordem de ideias que penso que esta
situação de crise veio abrir-nos os olhos, mas não chega ter os olhos abertos. É preciso
fazer propostas e é neste âmbito que acho que a Igreja pode e deve ajudar para que
se vá em direcção a uma reconciliação fundada na verdade, ou em todo o caso, no perdão,
porque não podemos pôr-nos a destruir tudo o que nos parece não corresponder à nossa
versão das coisas. E creio que é esta também a mensagem da Igreja, dizer: atenção!
E é por isso que os bispos falam em prudência, porque há o risco de amalgamar tudo:
dizer, tal pessoa é muçulmana e, portanto, é má; tal pessoa é de tal etnia e portanto
pertence a tal ou tal grupo… é por isso que falam de vigilância porque há pessoas
que utilizam o manto da religião para chegar aos próprios fins, mesmo políticos.
É este o problema! Ao mesmo tempo somos crentes… então como fazer para que a nossa
crença não seja um meio de manipulação?!"