Belo Horizonte (RV) - A tragédia numa boate de Santa Maria, que matou e feriu
tantos jovens, instiga o coração de todos. De modo especial, desenha um horizonte
que a sociedade contemporânea precisa considerar. A vida não pode ser vivida e tratada
simplesmente como lógica de ganho de coisas. A vida é mais. Não basta simplesmente
conferir, por força legal e dever profissional, a validade de alvarás de funcionamento.
A tragédia aponta para irresponsabilidades nos procedimentos de profissionais e de
proprietários com aquilo que está posto a serviço de todos.
Na verdade, o funcionamento
social reclama de governantes, de profissionais e de cidadãos comuns um tratamento
mais adequado de tudo e de cada coisa, especialmente daquilo que é público. Essa é
uma questão que deve encontrar raízes na cultura, ancorada por legislações, normas
e procedimentos. Também, e acima de tudo, relaciona-se à formação da consciência de
que é fundamental o respeito irrestrito à vida de cada pessoa. Sem esse sentido norteador,
os atrasos em obras públicas continuarão. E o manejo do dinheiro público não vai se
livrar dos interesses espúrios, da ganância dos que precisam levar sempre mais vantagem
sobre o que é bem de todos. A consequência será a vida posta em risco.
As mortes
nas estradas, por exemplo, que não são duplicadas ou sofrem com a falta de manutenção,
atingem números de guerra. De fato, um verdadeiro descaso quando a inteligência acomoda-se
na mediocridade e não se consegue sair das burocracias que obstruem os processos.
Quem tem o poder de decisão, de corresponder à demanda em favor da vida de todos,
não enfrenta os desafios diários de transitar em estradas que não atendem mais, de
se deslocar em transportes que usurpam horas do descanso e do convívio familiar de
tantos.
Descasos de cá e de lá, interesses financeiros gananciosos e a venenosa
visão egoísta da vida, segundo o princípio de que conta é tão somente o bem e o conforto
próprios, vão alastrando uma cultura que valida prestação de serviços de segunda classe,
morosidades, usufrutos indevidos ou indiferença diante dos outros, especialmente dos
que precisam mais. O resultado é desastroso para uma sociedade que tem a oportunidade
de alçar um patamar de maior qualidade de vida para todos, mas que ainda padece com
atrasos. E o prejuízo maior e mais sofrido será sempre dos mais pobres, dos indefesos
e inocentes.
A tragédia de Santa Maria é um clarão espantoso, que deve brilhar
como um relâmpago para inquietar mentes, corações e consciências, transmitindo o sentido
e alcance da responsabilidade cidadã de cada um. Não basta o alívio de quem não teve
um jovem próximo e amado envolvido nesta tragédia. Não basta pensar que o ocorrido
foi longe da própria cidade e da própria casa. Os riscos em potencial, por irresponsabilidades,
morosidades e interesses gananciosos, alcançam todos, nos mais diversos lugares.
Onipotência
para controlar tudo, tudo prever e evitar, ninguém tem. O que todos precisam ter é
a responsabilidade profissional, governamental e cidadã de construir uma cultura pela
vida. Trata-se de uma postura pessoal contracenando, obviamente, com os funcionamentos
das cidades, bairros, vilas, condomínios, ambientes públicos e da própria casa. Uma
postura pessoal que fará diferença, sempre. A cultura, os governos, os cidadãos, os
profissionais, todos são desafiados a compreender que o progresso e o desenvolvimento
integral não são alcançados quando se desconsidera o valor da vida.
Dom de
Deus, a vida há de ser respeitada em todas as suas etapas, da fecundação à morte com
o declínio natural. Qualquer relativização abre as portas para permissividades, irresponsabilidades
e descasos. Tarefa fundamental para que cada um reconheça a vida, de todos, como dom,
é cultivar a espiritualidade - pela oração, silêncio, meditação, diálogo com Deus,
vivência comunitária e comprometimento social. Esse caminho é fonte de saúde, de sensibilidade
ética e moral, do gosto pela promoção e defesa da vida de todos. Sem espiritualidade,
atrasaremos processos e não avançaremos no compromisso pela vida.
Dom Walmor
Oliveira de AzevedoArcebispo metropolitano de Belo Horizonte