2013-01-08 15:01:07

Subsidiariedade e solidariedade: artigo de D. Manuel Clemente


O papel da Europa na crise… (publicado no "Diário de Notícias", 29 dezembro 2012)
O tema pede tratamento imediato, na crise financeira, económica e social que assola gravemente alguns países europeus e acaba por afetar o continente inteiro. Aparece também como um momento decisivo para a construção comunitária começada no pós-segunda guerra mundial e a que Portugal aderiu nos anos 80. Sem subterfúgio nem alheamento possível, ou as instituições comunitárias ultrapassam positivamente esta crise, ou ela torna-se num fracasso geral para o desígnio dos “pais fundadores” (Schuman, Adenauer, De Gasperi, Monnet…). “Crise” também significa “juízo”, e ninguém quererá que seja negativo, pondo em causa uma das realizações mais conseguidas e promissoras da longa e dramática história europeia.
Porque é disto mesmo que se trata. Este pequeno continente, quase península ocidental da grande Ásia, tanto foi decisivo para a aproximação mundial dos povos, como foi causa dos maiores confrontos gerais das nações. Foi daqui – com especial protagonismo dos portugueses, os mais ocidentais do Ocidente – que partiram no século XV as navegações que ligaram continentes e ilhas num destino só: para bem, para mal, para bem há de ser. Mas foi aqui também que começaram as duas guerras que se tornaram “mundiais” pelos piores motivos e com as mais trágicas consequências.
Também não foi por acaso que aqueles “pais fundadores”, que sonharam e deram os primeiros passos duma Europa unida, provieram dos dois lados da fronteira renana – precisamente aquela que tantos conflitos gerou. Para que, donde nascera o mal, nascesse agora a cura. Lição para hoje, transformando a crise numa ocasião de relançamento europeu, exigente decerto, mas muito mais solidário, internacionalmente solidário.
Disse “internacionalmente”, não “supranacionalmente”. Um dos desvios graves de alguma globalização contemporânea consistiu em menosprezar a realidade inquestionável de povos que há muito o são e de corpos intermédios que qualquer sociabilidade não dispensa, porque nestes principalmente convive, subsiste e avança, com o necessário envolvimento humano. Ignorar esta realidade, seria fazer aqui o que na má consciência de antigos colonialismos tanto dói, em relação ao desrespeito de realidades ultramarinas - como na conferência de Berlim, desenhando uma África totalmente fora dela e em proveito de quem a desenhava.
A Europa constrói-se no que realmente é e não apesar de si mesma. Vale a pena lembrar que, como “continente” e no atual recorte geográfico, é sobretudo uma construção “cultural”, posterior ao Império Romano do Ocidente, simbolicamente terminado em 473, com a deposição do seu último imperador por um chefe “bárbaro”. Cultura significava na altura o cristianismo que sobrara do Império, herdando-lhe os saberes greco-latinos e unificando-os em torno do que os Evangelhos diziam sobre Deus e sobre o homem. O Império não era aquilo a que chamamos Europa, nem tinha a nossa geografia: bordejara o Mediterrâneo inteiro, desde o que é hoje Portugal até ao que é hoje Marrocos, incluindo territórios que agora são Europa, Ásia Menor e Norte de África, e deixando de fora bem mais de metade do continente atual.
O Império Romano fora um mundo de cidades, prevalentemente Roma, que alargara o seu domínio século após século, reduzindo antigos reinos à sua dependência e serviço. E o génio romano revelara-se principalmente no modo como soubera organizar em função de si, sob um governo unificado e uma lei geral, a vida de tantos povos de diferentes graus de cultura, de gregos a bárbaros. Assim foi enquanto pôde, enquanto a organização serviu um intuito culto e convincente, redobrando a força própria com o interesse também dos outros. Não assim depois do século III, ainda menos nos séculos IV e V, quando o Império já mal se garantia a Ocidente com a incorporação de bárbaros romanizados. Ficou apenas o interesse alheio pelo que sobrasse, sem acrescentamento possível. Na própria Roma, que poderia juntar um milhão de pessoas no século I, persistiram apenas uns cinco ou seis escassos milhares no final do século VI. O resto procurava em pequenos núcleos rurais ou ruralizados a subsistência imediata e a segurança de algum guerreiro que a prestasse, a troco de serviços.
Sobraram também alguns letrados, capazes de ler e contar. Contar números e contar histórias onde a memória do passado podia explicar o presente e abrir algum futuro. Foram sobretudo monges cristãos a fazê-lo, habituados que estavam à autossubsistência e à fixação nas últimas terras, que agora podiam abrir novas fronteiras. É das suas incursões que vai nascer a Europa propriamente dita. Do século V (Francos) ao século X (Russos), povos sucessivos aderem a estes missionários – sobretudo provenientes de Roma (em grande parte beneditinos), da Irlanda (da tradição de São Patrício), ou de Constantinopla (onde persistia o Império Romano do Oriente). Desta ação apenas “conjugada” pelo credo que veiculavam, nasceu o nosso continente como o conhecemos hoje, do Atlântico aos Urais e do Mediterrâneo ao Mar do Norte. A pouco e pouco, criou-se uma “cultura” europeia, qual conjunto de pressupostos e ideais essencialmente idênticos, que ainda hoje - mesmo com a secularização que essa cultura afinal já prometia, na esteira da distinção que Cristo fizera entre Deus e César - nos faz sentir “em casa” de Atenas a Moscovo, ou de Londres a Lisboa. Ou no mesmo bairro, nas casas de cada um e sem muros demasiado altos.
Valores comuns partilhados por povos distintos, esta é a base fundamental duma Europa que não nos esqueça e onde o todo conviva com as partes. A presente crise deflagrou pelas finanças, mas não se resolve sem a economia e esta liga-se necessariamente à política, ou seja, à vontade democrática dos povos que constituem a Europa.
Creio que, muito em concreto, podemos contar com dois fatores positivos e relativamente novos: primeiro, a grande interdependência dos mercados, que não permite a ninguém sustentar-se só por si, mesmo tratando-se de economias mais fortes; segundo, a existência de uma autêntica geração “europeia”, não só pelas migrações continentais, mas também pelos percursos escolares e plurilinguísticos. É sobre bases assim que a Europa avançará, bem como por uma comunicação social e mediática que dê a conhecer em cada país da União e da Europa o que de positivo vai acontecendo nos outros, para nos olharmos com mais realismo e esperança.
Sem tais suportes, dificilmente poderiam os políticos “europeus” ir muito longe na legislação ou no governo; como realmente precisamos de ir, respeitando-nos como nações, que não subsistem umas sem as outras. A isto se chama conjugar subsidiariedade com solidariedade, práticas e valores que só reciprocamente se realizam.
Manuel Clemente








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