Subsidiariedade e solidariedade: artigo de D. Manuel Clemente
O papel da Europa na crise… (publicado no "Diário de Notícias", 29 dezembro
2012) O tema pede tratamento imediato, na crise financeira, económica e social
que assola gravemente alguns países europeus e acaba por afetar o continente inteiro.
Aparece também como um momento decisivo para a construção comunitária começada no
pós-segunda guerra mundial e a que Portugal aderiu nos anos 80. Sem subterfúgio nem
alheamento possível, ou as instituições comunitárias ultrapassam positivamente esta
crise, ou ela torna-se num fracasso geral para o desígnio dos “pais fundadores” (Schuman,
Adenauer, De Gasperi, Monnet…). “Crise” também significa “juízo”, e ninguém quererá
que seja negativo, pondo em causa uma das realizações mais conseguidas e promissoras
da longa e dramática história europeia. Porque é disto mesmo que se trata. Este
pequeno continente, quase península ocidental da grande Ásia, tanto foi decisivo para
a aproximação mundial dos povos, como foi causa dos maiores confrontos gerais das
nações. Foi daqui – com especial protagonismo dos portugueses, os mais ocidentais
do Ocidente – que partiram no século XV as navegações que ligaram continentes e ilhas
num destino só: para bem, para mal, para bem há de ser. Mas foi aqui também que começaram
as duas guerras que se tornaram “mundiais” pelos piores motivos e com as mais trágicas
consequências. Também não foi por acaso que aqueles “pais fundadores”, que sonharam
e deram os primeiros passos duma Europa unida, provieram dos dois lados da fronteira
renana – precisamente aquela que tantos conflitos gerou. Para que, donde nascera o
mal, nascesse agora a cura. Lição para hoje, transformando a crise numa ocasião de
relançamento europeu, exigente decerto, mas muito mais solidário, internacionalmente
solidário. Disse “internacionalmente”, não “supranacionalmente”. Um dos desvios
graves de alguma globalização contemporânea consistiu em menosprezar a realidade inquestionável
de povos que há muito o são e de corpos intermédios que qualquer sociabilidade não
dispensa, porque nestes principalmente convive, subsiste e avança, com o necessário
envolvimento humano. Ignorar esta realidade, seria fazer aqui o que na má consciência
de antigos colonialismos tanto dói, em relação ao desrespeito de realidades ultramarinas
- como na conferência de Berlim, desenhando uma África totalmente fora dela e em proveito
de quem a desenhava. A Europa constrói-se no que realmente é e não apesar de si
mesma. Vale a pena lembrar que, como “continente” e no atual recorte geográfico, é
sobretudo uma construção “cultural”, posterior ao Império Romano do Ocidente, simbolicamente
terminado em 473, com a deposição do seu último imperador por um chefe “bárbaro”.
Cultura significava na altura o cristianismo que sobrara do Império, herdando-lhe
os saberes greco-latinos e unificando-os em torno do que os Evangelhos diziam sobre
Deus e sobre o homem. O Império não era aquilo a que chamamos Europa, nem tinha a
nossa geografia: bordejara o Mediterrâneo inteiro, desde o que é hoje Portugal até
ao que é hoje Marrocos, incluindo territórios que agora são Europa, Ásia Menor e Norte
de África, e deixando de fora bem mais de metade do continente atual. O Império
Romano fora um mundo de cidades, prevalentemente Roma, que alargara o seu domínio
século após século, reduzindo antigos reinos à sua dependência e serviço. E o génio
romano revelara-se principalmente no modo como soubera organizar em função de si,
sob um governo unificado e uma lei geral, a vida de tantos povos de diferentes graus
de cultura, de gregos a bárbaros. Assim foi enquanto pôde, enquanto a organização
serviu um intuito culto e convincente, redobrando a força própria com o interesse
também dos outros. Não assim depois do século III, ainda menos nos séculos IV e V,
quando o Império já mal se garantia a Ocidente com a incorporação de bárbaros romanizados.
Ficou apenas o interesse alheio pelo que sobrasse, sem acrescentamento possível. Na
própria Roma, que poderia juntar um milhão de pessoas no século I, persistiram apenas
uns cinco ou seis escassos milhares no final do século VI. O resto procurava em pequenos
núcleos rurais ou ruralizados a subsistência imediata e a segurança de algum guerreiro
que a prestasse, a troco de serviços. Sobraram também alguns letrados, capazes
de ler e contar. Contar números e contar histórias onde a memória do passado podia
explicar o presente e abrir algum futuro. Foram sobretudo monges cristãos a fazê-lo,
habituados que estavam à autossubsistência e à fixação nas últimas terras, que agora
podiam abrir novas fronteiras. É das suas incursões que vai nascer a Europa propriamente
dita. Do século V (Francos) ao século X (Russos), povos sucessivos aderem a estes
missionários – sobretudo provenientes de Roma (em grande parte beneditinos), da Irlanda
(da tradição de São Patrício), ou de Constantinopla (onde persistia o Império Romano
do Oriente). Desta ação apenas “conjugada” pelo credo que veiculavam, nasceu o nosso
continente como o conhecemos hoje, do Atlântico aos Urais e do Mediterrâneo ao Mar
do Norte. A pouco e pouco, criou-se uma “cultura” europeia, qual conjunto de pressupostos
e ideais essencialmente idênticos, que ainda hoje - mesmo com a secularização que
essa cultura afinal já prometia, na esteira da distinção que Cristo fizera entre Deus
e César - nos faz sentir “em casa” de Atenas a Moscovo, ou de Londres a Lisboa. Ou
no mesmo bairro, nas casas de cada um e sem muros demasiado altos. Valores comuns
partilhados por povos distintos, esta é a base fundamental duma Europa que não nos
esqueça e onde o todo conviva com as partes. A presente crise deflagrou pelas finanças,
mas não se resolve sem a economia e esta liga-se necessariamente à política, ou seja,
à vontade democrática dos povos que constituem a Europa. Creio que, muito em concreto,
podemos contar com dois fatores positivos e relativamente novos: primeiro, a grande
interdependência dos mercados, que não permite a ninguém sustentar-se só por si, mesmo
tratando-se de economias mais fortes; segundo, a existência de uma autêntica geração
“europeia”, não só pelas migrações continentais, mas também pelos percursos escolares
e plurilinguísticos. É sobre bases assim que a Europa avançará, bem como por uma comunicação
social e mediática que dê a conhecer em cada país da União e da Europa o que de positivo
vai acontecendo nos outros, para nos olharmos com mais realismo e esperança. Sem
tais suportes, dificilmente poderiam os políticos “europeus” ir muito longe na legislação
ou no governo; como realmente precisamos de ir, respeitando-nos como nações, que não
subsistem umas sem as outras. A isto se chama conjugar subsidiariedade com solidariedade,
práticas e valores que só reciprocamente se realizam. Manuel Clemente