Pe. Raniero Cantalamessa - II Pregação de Advento – 14 dezembro 2012
O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. Uma chave de leitura
1.
O Concílio: a hermenêutica da ruptura e a da continuidade Nesta meditação,
gostaria de refletir sobre o segundo maior motivo de celebração deste ano: o 50º aniversário
do começo do Concílio Vaticano II. Nas últimas décadas aumentaram as tentativas
de fazer uma avaliação dos resultados do Concílio Vaticano II. Não é o caso agora
de continuar nesta linha, e nem sequer o tempo disponível nos permitiria. Em paralelo
com estas leituras analíticas, houve, desde o começo do Concílio, a tentativa de uma
avaliação sintética, a busca, em outras palavras, de uma chave de leitura do evento
conciliar. Gostaria de inserir-me neste esforço e tentar, até mesmo, uma leitura das
diversas chaves de leitura. Principalmente foram três as chaves de leitura: atualização
(aggiornamento), ruptura, novidade na continuidade. Ao anunciar o Concílio ao mundo
João XXIII usou repetidamente a palavra “aggiornamento” (atualização), que, graças
a ele, entrou para o vocabulário universal. Em seu discurso de abertura do Concílio,
deu uma primeira explicação do que ele quis dizer com esse termo: "O 21º Concílio
Ecuménico quer transmitir integralmente, não em partes, sem distorções, a doutrina
católica [...]. Mas nós não devemos somente preservar este tesouro precioso, como
se nos preocupássemos apenas da antiguidade, mas vigorosos, sem medo, devemos continuar
no trabalho que a nossa época exige, seguindo o caminho que a Igreja percorreu por
quase 20 séculos [... ]. É necessário que esta doutrina certa e imutável, à qual devemos
dar uma adesão de fé, seja aprofundada e exposta como exigido pelos nossos tempos".
Na medida em que os trabalhos e as sessões do Concílio progrediam surgiram
duas linhas opostas dependendo, de acordo com as exigências expressadas pelo Papa,
acentuava-se a primeira ou a segunda: ou seja, a continuidade com o passado ou a novidade
com relação a ele. No meio desses últimos a palavra aggiornamento (atualização) acabou
sendo trocada pela palavra ruptura. Mas com um espírito e com tentativas bem diferentes,
de acordo com a própria orientação. Para a ala, assim chamada progressista, tratava-se
de uma conquista a ser comemorada com entusiasmo; para o lado oposto, tratava-se de
uma tragédia para toda a Igreja. Entre essas duas frentes – que concordavam com
a afirmação do fato, mas estavam opostos no juízo sobre ele – coloca-se a posição
do Magistério papal que fala de “novidade na continuidade”. Paulo VI, na Ecclesiam
suam retoma a palavra “aggiornamento” (atualização) de João XXIII e fala que queria
tê-la presente como “endereço programático”. No começo do seu pontificado João Paulo
II confirmou o juízo do seu antecessor e se expressou muitas vezes nessa mesma linha.
Mas, foi principalmente o atual Sumo Pontífice Bento XVI que explicou o que o Magistério
da Igreja entende por “novidade na continuidade”. Foi o que ele fez poucos meses depois
da sua eleição, no conhecido discurso programático à Cúria Romana do dia 22 de Dezembro
de 2005. Escutemos algumas passagens: “Surge a pergunta: por que a recepção do
Concílio, em grandes partes da Igreja, até agora teve lugar de modo tão difícil? Pois
bem, tudo depende da justa interpretação do Concílio ou como diríamos hoje da sua
correcta hermenêutica, da justa chave de leitura e de aplicação. Os problemas da recepção
derivaram do facto de que duas hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram
entre si. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente mas de modo cada vez mais
visível, produziu e produz frutos. Por um lado, existe uma interpretação que gostaria
de definir "hermenêutica da descontinuidade e da ruptura"; não raro, ela pôde valer-se
da simpatia dos mass media e também de uma parte da teologia moderna. [...] A hermenêutica
da descontinuidade opõe-se à hermenêutica da reforma ".
O papa admite que
uma certa descontinuidade e ruptura ocorreu, mas ela não abarca os princípios e as
verdades fundamentais da fé cristã, mas algumas decisões históricas. Entre as quais
se encontra a situação de conflito que se criou entre a Igreja e o mundo moderno,
que culminou na condenação total da modernidade sob Pio IX, mas também situações mais
recentes, como aquela criada pelos progressos da ciência, da nova relação entre as
religiões com as implicações que isso tem para o problema da liberdade de consciência;
e não por último, a tragédia do holocausto que exigia um repensamento de atitudes
para com o povo judeu. Escreve: “É claro que em todos estes setores, que no seu
conjunto formam um único problema, podia emergir alguma forma de descontinuidade que,
de certo modo, se tinha manifestado, de fato uma descontinuidade, na qual todavia,
feitas as diversas distinções entre as situações históricas concretas e as suas exigências,
resultava não abandonada a continuidade nos princípios fato que facilmente escapa
a uma primeira percepção. É exactamente neste conjunto de continuidade e descontinuidade
a diversos níveis que consiste a natureza da verdadeira reforma”.
Se do plano
axiológico, ou seja dos princípios e dos valores, passamos ao plano cronológico, poderemos
dizer que o Concílio representa uma ruptura e uma descontinuidade com relação ao passado
próximo da Igreja e representa ao contrário uma continuidade com relação ao seu passado
remoto. Em muitos pontos, sobretudo no ponto central que é a ideia da Igreja, o concílio
quis fazer um retorno às origens, às fontes bíblicas e patrísticas da fé. A leitura
do Concílio assumida pelo Magistério, ou seja, a da novidade na continuidade, tinha
tido um ilustre precursor no “Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã” do
cardeal Newman, definido muitas vezes, também por este, “o Pai ausente do Vaticano
II”. Newman demonstra que, quando se trata de uma grande ideia filosófica ou uma crença
religiosa, como é o cristianismo, "não é possível julgar pelo seu começo qual
seja a sua virtualidade e as metas às quais tende. [...]. De acordo com as novas relações
que ela chega a ter, surgem perigos e esperanças e princípios antigos reaparecem sob
nova forma. Ela muda junto com eles para ficar sempre idêntica a si mesma. Num mundo
sobrenatural as coisas acontecem de forma diferente, mas aqui sobre a terra viver
é transformar-se e a perfeição é o resultado de muitas transformações”.
São
Gregório Magno antecipava, de certa forma, esta convicção quando afirmava que a Escritura
“cum legentibus crescit”, cresce com aqueles que a lêem”; ou seja, cresce a força
de ser lida e vivida, na medida que surgem novas perguntas e novos desafios da história.
Portanto, a doutrina da fé muda, mas para ficar fiel a si mesma; muda nas contingências
históricas, para não mudar na substância, como dizia Bento XVI. Um exemplo trivial,
mas indicativo é aquele do idioma. Jesus falava a língua do seu tempo; não o hebraico
que era a língua nobre e das Escrituras (o latim do tempo!), mas o aramaico falado
pelo povo. A fidelidade a este dado inicial não podia consistir, e não consistiu,
no continuar a falar em aramaico a todos os futuros ouvintes do evangelho, mas no
falar grego ao Gregos, latim aos Latinos, arménio com os Arménios, copto com os coptos,
e assim até os dias de hoje. Como dizia Newman, é justamente mudando que muitas vezes
se é fiel ao dado original.
2. A letra mata, o Espírito vivifica Com
todo o respeito e admiração devidos à imensa e pioneira contribuição do Cardeal Newman,
a distância de um século e meio do seu ensaio, e com o que o cristianismo viveu nesse
meio tempo, não é possível, ainda, não relevar também uma lacuna no desenvolvimento
do seu argumento: a quase total ausência do Espírito Santo. Na dinâmica do progresso
da doutrina cristã, ele não tem em conta com suficiente clareza o papel de destaque
que Jesus tinha reservado para o Paráclito ao revelar aos discípulos aquelas verdades
que eles ainda não podiam “carregar o peso” e no conduzí-los “à toda a verdade” (Jo
16, 12-13). De fato, o que é que permite resolver este paradoxo e falar de novidade
na continuidade, de permanência na mudança, a não ser o Espírito Santo na Igreja?
Santo Ireneu o tinha percebido perfeitamente quando afirma que a revelação é como
um “depósito precioso contido num vaso de valor que, graças ao Espírito de Deus, rejuvenesce
sempre e faz rejuvenescer também o vaso que a contém”. O Espírito Santo não fala palavras
novas, não cria novos sacramentos, novas instituições, mas renova e vivifica perenemente
as palavras, os sacramentos e as instituições criadas por Jesus. Não faz coisas novas,
mas faz novas todas as coisas! A insuficiente atenção ao papel do Espírito Santo
explica muitas das dificuldades surgidas na recepção do Concílio Vaticano II. A Tradição,
em nome da qual alguns rejeitaram o Concílio, era uma Tradição onde o Espírito Santo
não desempenhava nenhum papel. Era um conjunto de crenças e de práticas fixadas uma
vez por todas, e não a onda da pregação apostólica que avança e se propaga nos séculos
e, como toda onda, só pode ser percebida em movimento. Congelar a Tradição e fazê-la
partir, ou terminar, a um certo ponto, significa fazer uma morta tradição e não como
a define Ireneu uma “viva Tradição”. Charles Péguy expressa, como poeta, esta grande
verdade teológica: "Jesus não nos deu palavras mortas /Que devamos colocar em pequenas
caixas (ou em grandes) E que devemos conservar em óleo rançoso... / Como as múmias
do Egito. Jesus Cristo não nos deu enlatados de palavras para conservar. Mas
deu-nos palavras de vida para alimentar … Depende de nós, doentes e de carne, /
Fazer viver e alimentar e manter vivas no tempo Aquelas palavras pronunciadas vivas
no tempo”.
Porém rapidamente é necessário dizer que também na frente de batalha
do extremismo oposto as coisas não são diferentes. Aqui se falava voluntariamente
do “espírito do Concílio”, mas não se tratava, infelizmente, do Espírito Santo. Por
“espírito do Concílio entendia-se o de mais entusiasmo, de coragem inovadora, que
não teria sido possível entrar nos textos do Concílio por causa das resistências de
alguns e do necessário compromisso entre as partes. Gostaria agora de ilustrar
aquela que, para mim, parece ser a verdadeira chave de leitura pneumática do Concílio,
ou seja, qual é o papel do Espírito Santo na atuação do Concílio. Retomando um pensamento
ousado de Santo Agostinho sobre o jargão paulino da letra e o Espírito (2 Cor 3, 6),
São Tomás de Aquino escreve: "Por letra entende-se toda lei escrita que permanece
fora do homem, também os preceitos morais contidos no Evangelho; pelo qual a letra
do Evangelho mataria, se não se acrescentasse, dentro, a graça da fé que cura”.
No
mesmo contexto, o santo doutor afirma: "A nova lei é principalmente a mesma graça
do Espírito Santo que é dada aos crentes”. Os preceitos do Evangelho são também a
nova lei, mas em um sentido material, quanto ao conteúdo; a graça do Espírito Santo
é a nova lei em sentido formal, enquanto que dá a força de colocar em prática os mesmos
preceitos evangélicos. É aquela que Paolo define “a lei do Espírito que dá a vida
em Cristo Jesus” (Rm 8, 2). Este é um princípio universal que se aplica a toda
lei. Se até mesmo os preceitos evangélicos, sem a graça do Espírito Santo, seriam
“letra que mata”, o que dizer dos preceitos da Igreja, e o que dizer, no nosso caso,
dos decretos do Concílio Vaticano II? A "implementação", ou a atualização do Concílio
não acontece portanto diretamente, não necessita procurá-la na aplicação literal e
quase mecânica do Concílio, mas “no Espírito”, entendendo com isso o Espírito Santo
e não um vago “espírito do concílio” aberto a todo subjetivismo. O Magistério papal
foi o primeiro a reconhecer esta exigência. João Paulo II, em 1981, escrevia: "Todo
o trabalho de renovação da Igreja, que o Concílio Vaticano II providencialmente propôs
e começou – renovação que deve ser ao mesmo tempo “atualização” (aggiornamento) e
consolidação no que é eterno e constitutivo para a missão da Igreja – não pode realizar-se
a não ser no Espírito Santo, ou seja com a ajuda da sua luz e do seu poder”. 3.
Onde buscar os frutos do Vaticano II Aconteceu mesmo este suspirado “novo Pentecostes”?
Um célebre estudioso de Newman, Ian Ker, ressaltou a contribuição que pode ser dada
por ele não só para o entendimento do desenrolar-se do concílio, mas também para o
entendimento do pós-concílio. Depois da definição da infalibilidade papal no Vaticano
I, em 1870, o cardeal Newman refletiu sobre os concílios em geral e sobre o sentido
das suas definições. Sua conclusão: os concílios podem ter efeitos não pretendidos
por quem participou deles. Os participantes podem enxergar muito mais, ou muito menos,
do que os resultados que vão ser produzidos por essas decisões. Desta forma,
Newman aplicava às definições conciliares o princípio do desenvolvimento, que tinha
proposto acerca da doutrina cristã em geral. Um dogma, como qualquer outra grande
ideia, não pode ser entendido por completo antes de serem avaliadas as suas consequências
e desenvolvimentos históricos; para usar a sua comparação, só depois que o rio parte
do terreno acidentado em que nasceu e desce até encontrar o seu leito mais amplo e
profundo. Aconteceu assim com a definição da infalibilidade papal, que, no calor do
momento, foi entendida por muitos como algo maior do que aquilo que a Igreja e o próprio
papa quiseram apresentar. Ela não tornaria inútil qualquer futuro concílio ecumênico,
como alguns temiam ou esperaram. E disto, o Vaticano II serve como confirmação. Achamos
uma singular confirmação no princípio hermenêutico de Gadamer sobre a "história dos
efeitos" (Wirkungsgeschichte), segundo o qual, para se compreender um texto, deve-se
levar em conta o conjunto de efeitos que ele produziu na história, inserindo-se nessa
história e dialogando com ela. Isto é o que acontece de forma exemplar na leitura
espiritual das Escrituras. Ela não explica o texto apenas à luz das coisas que o precederam,
como ocorre na leitura histórico-filológica ao pesquisar as fontes, mas também à luz
do que se seguiu, explicando a profecia à luz do seu cumprimento em Cristo, e o Antigo
Testamento à luz do Novo. Tudo isso lança uma luz única sobre o período pós-conciliar.
Aqui também as realizações reais se posicionam, talvez, de modo diferente do que considerávamos
inicialmente. Nós olhávamos para a mudança nas estruturas e nas instituições, para
uma distribuição diferente do poder, para a língua a ser usada na liturgia, e não
percebíamos o quanto essas mudanças eram pequenas em comparação com o que o Espírito
Santo estava fazendo. Nós achávamos que romperíamos os odres velhos com as nossas
próprias mãos, quando Deus, na verdade, nos propunha o seu método de romper os odres
velhos pondo neles vinho novo. Quando perguntados se houve um novo Pentecostes,
devemos responder sem hesitação: sim! Qual é o sinal mais convincente dele? A renovação
da qualidade da vida cristã, em todo lugar em que esse Pentecostes foi acolhido. O
fato doutrinariamente mais qualificativo do Vaticano II são os dois primeiros capítulos
da Lumen gentium, que definem a Igreja como sacramento e como povo de Deus a caminho,
sob a orientação do Espírito Santo, inspirada pelos seus carismas, sob a orientação
da hierarquia. A Igreja, enfim, como mistério e instituição; como koinonia mais do
que hierarquia. João Paulo II relançou esta visão fazendo da sua implementação a prioridade
no começo no novo milênio. Perguntamos: onde é que esta imagem de Igreja passa
dos documentos para a vida? Onde é que ela ganha “carne e sangue”? Onde é que a vida
cristã é vivida de acordo com "a lei do Espírito", com alegria e convicção, por atração
e não por obrigação? Onde é que a palavra de Deus é tida na mais alta honra, e manifestam-se
os dons, e sente-se mais forte a ânsia da nova evangelização e da unidade dos cristãos? Tratando-se
de fatos interiores, do coração das pessoas, a resposta definitiva para estas questões
somente Deus possui. Devemos repetir, sobre o novo Pentecostes, o que Jesus disse
do reino de Deus: "Ninguém dirá ‘Ei-lo aqui’, ou ‘Lá está ele’. O reino de Deus está
no meio de vós" (Lc 17, 21). Podemos, no entanto, captar os seus sinais, auxiliados
pela sociologia religiosa que lida com essas coisas. A partir deste ponto de vista,
a resposta para muitas daquelas perguntas é: nos movimentos eclesiais! Há algo
que devemos precisar. Dos movimentos eclesiais, se não na forma, certamente em substância,
também fazem parte as paróquias, associações de fiéis e novas comunidades em que se
vive a mesma koinonia e a mesma qualidade de vida cristã. Deste ponto de vista, movimentos
e paróquias não devem ser vistos em contraposição ou em competição uns com os outros,
mas unidos na realização, de um modo diferente, do mesmo modelo de vida cristã. Entre
eles, há também algumas das comunidades ditas “de base”, aquelas em que o fator político
não assumiu a precedência sobre o religioso. Devemos insistir no correto nome:
movimentos "eclesiais", não movimentos "leigos". A maioria deles é formada não por
apenas uma, e sim por todas as partes da Igreja: leigos, é claro, mas também bispos,
padres, freiras. Eles representam todos os carismas, o "povo de Deus" da Lumen Gentium.
É apenas por razões práticas que o Conselho Pontifício para os Leigos se ocupa deles,
dado que já existem as congregações para o clero e para os religiosos. João Paulo
II viu nesses movimentos e comunidades paroquiais "os sinais de uma nova primavera
da Igreja". O mesmo foi manifestado, várias vezes, pelo papa Bento XVI . Na homilia
da missa crismal da quinta-feira santa de 2012, ele disse: “Quem olha para a história
do pós-concílio pode reconhecer a dinâmica da verdadeira renovação, que tantas vezes
tomou formas inesperadas em movimentos cheios de vida e que torna quase tangíveis
a inexaurível vivacidade da santa Igreja, a presença e a ação eficaz do Espírito Santo”. Falando
dos sinais de um novo Pentecostes, não podemos deixar de mencionar em particular,
ainda que fosse apenas pela extensão do fenómeno, a Renovação Carismática, que, mesmo
não sendo um movimento eclesial no sentido estrito e sociológico do termo (não tem
um fundador, uma estrutura e uma espiritualidade própria), é, ainda assim, uma corrente
de graça destinada a se dispersar na Igreja como uma descarga elétrica na massa. Em
1973, quando um dos arquitetos do concílio Vaticano II, o cardeal Suenens, ouviu falar
do fenómeno pela primeira vez, ele estava escrevendo o livro "O Espírito Santo, fonte
da nossa esperança", e nos conta o seguinte em suas memórias: "Eu parei de escrever
o livro. Considerei uma questão de coerência básica prestar atenção ao Espírito Santo,
que pode se manifestar de maneiras surpreendentes. Eu estava particularmente interessado
no despertar dos carismas, uma vez que o concílio tinha impulsionado esse despertar".
E,
depois de verificar em pessoa e viver de dentro aquela experiência, compartilhada
por milhões de outras pessoas, ele também escreveu: "Paulo e os Atos dos Apóstolos
parecem de repente ganhar vida e se tornar parte do presente. O que era realmente
verdadeiro no passado parece estar acontecendo de novo diante dos nossos olhos. É
uma descoberta da verdadeira ação do Espírito Santo, sempre atuante, como Jesus prometeu.
Ele mantém a sua palavra. É mais uma vez uma explosão do Espírito de Pentecostes,
uma alegria que tinha se tornado desconhecida para a Igreja".
Os movimentos
eclesiais e as novas comunidades não esgotam todo o potencial e as expectativas de
renovação do concílio, mas respondem à mais importante delas, pelo menos aos olhos
de Deus. Eles não estão livres de fraquezas e desvios parciais, mas que outra grande
novidade na história da Igreja não sofreu as falhas humanas? Não foi a mesma coisa
quando, no século XIII, apareceram as ordens mendicantes? Foram os papas romanos,
especialmente Inocêncio III, que reconheceram e acolheram aquela graça pela primeira
vez, incentivando o resto do episcopado a fazer o mesmo.
4.Umapromessa cumprida Qual é, então, o significado do concílio como conjunto
dos documentos produzidos, Dei Verbum, Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Nostra Aetate,
etc.? Vamos deixá-los todos de lado e esperar tudo do Espírito? A resposta está contida
na frase com que Agostinho resume a relação entre a lei e a graça: "A lei foi dada
para buscarmos a graça, e a graça foi dada para observarmos a lei". O Espírito não
dispensa o valor da letra, ou seja, os decretos, o Vaticano II. Ao contrário, é ele
quem nos leva a estudá-los e a colocá-los em prática. E, de fato, fora do ambiente
académico, onde são objeto de discussão e de estudo, é nas realidades da Igreja mencionadas
acima que eles são tidos de fato em maior consideração. Eu mesmo experimentei
isto. Eu me livrei de preconceitos contra judeus e protestantes, acumulados durante
os anos de formação, não pela leitura da Nostra Aetate, mas por ter feito também,
à minha humilde maneira e graças a alguns irmãos, a experiência do novo Pentecostes.
Depois eu senti a necessidade de reler a Nostra Aetate, como reli ainda a Dei Verbum
após o Espírito incutir em mim um novo amor pela palavra de Deus e pela evangelização.
O movimento, entretanto, pode acontecer nas duas direções: alguns, para usar a linguagem
de Agostinho, são incentivados a partir da letra para buscar o Espírito, e outros
são movidos pelo Espírito a observar a letra. O poeta Thomas S. Eliot compôs versos
que podem nos iluminar quanto ao significado das celebrações do 50º aniversário do
Concílio Vaticano II: "Não devemos nos deter em nossa exploração, / E o fim do
nosso explorar Será chegar ao ponto donde partimos / E conhecer o lugar pela primeira
vez".
Depois de muitas explorações e controvérsias, somos levados de volta
para o lugar onde começamos: no caso, o concílio. Mas todos os trabalhos em torno
dele não foram em vão, porque, no sentido mais profundo, só agora somos capazes de
"conhecer o lugar pela primeira vez", de avaliar o seu verdadeiro significado, desconhecido
para os Padres do concílio. Isso nos permite dizer que a árvore crescida do concílio
é coerente com a semente da qual nasceu. De onde nasceu o evento do concílio Vaticano
II? As palavras com que João XXIII descreve a emoção que acompanhou "o súbito florescimento
em seu coração e em seus lábios da simples palavra concílio" sugerem os sinais de
uma inspiração profética. Ao encerrar a primeira sessão, ele falou do concílio como
“um novo e desejado Pentecostes, que há de enriquecer a Igreja com abundância de energias
espirituais”. Depois de 50 anos, não podemos deixar de constatar o cumprimento
da promessa feita por Deus à Igreja, pela boca de seu humilde servo, o beato João
XXIII. Se nos parecer exagerado falar de um novo Pentecostes, diante de todos os problemas
e conflitos que surgiram na Igreja depois e por causa do concílio, o que temos a fazer
é reler os Atos dos Apóstolos e observar que os problemas e disputas já ocorreram
após o primeiro Pentecostes. E não menos acalorados que os de hoje![Tradução Equipe
ZENIT]