Rio de Janeiro (RV) - O Papa Bento XVI decidiu proclamar um Ano da Fé. Todos
nós, os católicos, devemos participar desse ano com “todo seu coração, com toda sua
alma e com todo seu entendimento” (Mt 22,37). Mas qual é o sentido do Ano da Fé? A
fé ainda tem espaço em nossa cultura secularizada? Em um mundo cheio de misérias,
fome, guerras, onde Deus parece não ter lugar e nem vez, não seria uma alienação proclamar
um Ano da Fé? Para que serve a fé? Esses e outros interrogantes são propostos aos
cristãos. Respondê-los se faz necessário para todos os que desejam viver sua fé com
consciência, e não apenas como uma herança de seus pais e avós, esquecida e guardada
em um canto perdido da própria vida, e que não possui nenhuma incidência concreta
no modo de viver, pensar, ser e relacionar-se.
O cristão diante dessa problemática
não se cala e nem deve se calar. Devemos descobrir na oração os desígnios de Deus
e dar respostas adequadas. Gostaria de convidá-los a percorrer comigo um itinerário
que nos leve a descobrir o significado, importância e necessidade do Ano da Fé.
O
Ano da Fé significa agradecer
O ser humano, em seu estado natural, possui inteligência
e vontade com potencialidades infinitas. A beleza que surge das mãos dos homens é
um reflexo da beleza que surge das mãos do Criador. No entanto, não quis Deus que
o homem permanecesse apenas em seu estado natural e nos deu o dom da fé.
O
dom da fé e da graça eleva o homem ao estado sobrenatural, somos filhos de Deus (1Jo
3,1). Neste estado podemos dizer como São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo
que vive em mim” (Gal 2,20). O estado sobrenatural não está em conflito com o estado
natural. A graça não destrói a natureza, a supõe, eleva e aperfeiçoa.
A fé
nos eleva a uma condição superior, mas não de superioridade. É na vivência profunda
da fé que o homem se encontra completamente consigo mesmo e com o outro, e realiza
plenamente a vocação a que foi chamado.
Cristo é nosso Senhor e nos convida
a contemplar o mundo e seus irmãos com novos olhos. A fé, bem acolhida e cultivada,
nos oferece uma lente que permite perceber a realidade com o coração de Deus. Por
isto, o cristão não é indiferente aos assuntos do mundo. O sofrimento e a dor que
assolam a humanidade devem ser sentidos, sofridos e compadecidos com maior intensidade
por aqueles que se declaram apóstolos de Cristo. É com o amor de Deus que amamos o
mundo.
A fé não é alienação, ao contrário, é trazer ao mundo um pouco do divino,
é lapidar a beleza da criação muitas vezes escondida pela nuvem do pecado. A verdadeira
alienação é não acolher, cultivar e promover o dom da fé. A busca de infinito que
permeia o coração humano encontra nela seu porto seguro, pois somente através desse
magnífico dom descobrimos quem realmente somos. Como dizia Santo Agostinho: “Fizeste-me
para Ti, Senhor, e o meu coração inquieto está enquanto não descansa em Ti” (Confissões,
l.1, n.1). Elevemos todos uma oração de agradecimento a Deus pelo dom da fé que nos
enriquece, fazendo-nos mais humanos e filhos de Deus.
No Ano da Fé é necessário
dar razões
São Pedro, em sua epístola, nos convida a dar razões de nossa esperança.
“Estai sempre prontos a responder para vossa defesa a todo aquele que vos pedir a
razão de vossa esperança, mas fazei-o com suavidade e respeito.” (1Pe. 3,15)
Não
basta celebrar. A verdadeira ação de graças ao Senhor exige que desenvolvamos o dom
recebido. A fé é a resposta que o coração humano naturalmente anseia encontrar. No
entanto, o dom da fé não exclui a necessidade de utilizar o dom da razão para compreender
melhor os mistérios revelados por Deus, de fazê-los compreensíveis e acessíveis ao
homem em cada momento histórico. Existe a inteligência da fé que deve ser, unida à
luz da graça, desenvolvida, a fim de que cada cristão possa aderir com maior liberdade
às verdades reveladas.
Só a partir de uma livre, consciente e renovada adesão
à própria fé haverá plena responsabilidade na vivência e testemunho desse dom. É aqui
onde dom e resposta, graça divina e liberdade humana devem se dar as mãos para que
a fé possa cair em terra fértil, semear e dar frutos em abundância.
Esforcemo-nos
por conhecer profundamente a fé que professamos. Criemos grupos de estudos e reflexão,
estudemos nossa história.
Possuímos um instrumento maravilhosamente privilegiado
para esta finalidade: o Catecismo da Igreja Católica, que se apresenta também no formato
de compêndio e no formato para jovens, o YouCat, lançado na Jornada Mundial da Juventude
em Madri. Todos são fontes riquíssimas para alimentar nossa alma e nossa inteligência.
Temos também o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, os documentos do Concílio Vaticano
II, as encíclicas papais e, acima de tudo, a Sagrada Escritura.
Utilizemos
as ferramentas que a sociedade moderna nos oferece para nos atualizarmos, conhecermo-nos
e encontrarmo-nos. É louvável a iniciativa de diversos grupos de jovens que, na impossibilidade
de encontrar-se fisicamente com frequência, utilizam os bate-papos, os grupos que
as diversas mídias sociais oferecem. Desejo, vivamente, que estes grupos se multipliquem.
É importante que estejam guiados por uma pessoa ou que tenham um moderador ou consultor
com conhecimentos filosóficos e teológicos, que iluminem e ajudem a entender melhor
a própria fé. Pelo batismo, somos, desde já, cidadãos do Céu, mas devemos ser
conscientes dessa tão alta dignidade. Não devemos nos acanhar diante dos desafios
que o mundo apresenta. A Igreja não possui apenas dois mil anos de história, mas ela
e, consequentemente cada um de nós que estamos em comunhão com a Igreja, possuímos
a assistência do Logos Divino, da sabedoria eterna, que nos é dada através dos dons
do Espírito Santo. Não devemos ter medo de dialogar com o mundo contemporâneo. É nossa
missão evangelizar a cultura. Como afirma Bento XVI, “a Igreja nunca teve medo de
mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica, porque
ambas, embora por caminhos diferentes, tendem para a verdade.”(Porta Fidei, nº 12).
Sejamos os promotores da Verdade na caridade, e da caridade na Verdade.
No
Ano da Fé é importante proclamar
Bento XVI, com muita sabedoria, alerta que
muitos cristãos sentem “maior preocupação com as consequências sociais, culturais
e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio
da sua vida diária” (Porta Fidei, nº 2). Diante dos desafios que nos apresentam a
sociedade secularizada, nossa primeira reação é lançar-nos a fazer algo.
Desejamos,
justificadamente, e nos esforçamos, com boas intenções, por unir pessoas, grupos e
entidades para combater aquilo que consideramos como nocivo ao cristianismo e à humanidade.
Considero importantes todas as iniciativas que visam promover nossa fé e incidir
positivamente na sociedade, e que contenham o avanço do mal que se alastra em nossa
cultura. Mas, o que seriam dessas iniciativas de luta e de força, de combate e embate
sem a fé? Não vejo os primeiros cristãos se conjurando para dominar as instituições
através da força e do poder. A ação mais importante e fecunda de nossos primeiros
irmãos foi, a partir da experiência que nasce do encontro pessoal com Cristo, testemunhar
com a própria vida que Deus existe. Os pagãos se sentiam atraídos pela beleza da fé
católica e pela caridade com que viviam os primeiros cristãos, e chegavam a exclamar:
“Vede como se amam” (Tertuliano, Apol., nº 39).
É na caridade, na alegria,
no entusiasmo e na felicidade da vivência de nossa fé que iremos permear o mundo da
esperança e do amor cristão. É no respeito, no diálogo aberto, sincero e inteligente
que construiremos pontes entre a fé e o mundo contemporâneo. Já existem muitos muros!
Aprendamos
a difícil arte de escutar, entender, compreender e defender sem medo nossa fé, com
serenidade e respeito.
A evangelização e nossas ações sociais só produzirão
efeito a partir do momento em que cada cristão tiver um encontro pessoal com Cristo.
Nossa
fé não é fruto de uma decisão, mas de um encontro, e só a partir desse encontro nossa
evangelização será uma luz que atrai por sua beleza divina.
Onde se realiza
esse encontro? Não se é cristão sozinho. O ser humano é um ser social por natureza.
É na comunidade de fé e na Igreja, como custódia dos sacramentos de Cristo, que encontraremos,
renovaremos e promoveremos nossa fé. Só podemos nos dizer plenamente cristãos se encontrarmos
nossos irmãos na oração, na eucaristia e na reconciliação. Sem comunidade não há
família cristã. É através do mistério do Corpo Místico de Cristo onde toda a Igreja
se encontra. É na liturgia e nos sacramentos que toda ação tem sentido. “Sem a liturgia
e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que
sustenta o testemunho dos cristãos” (Porta Fidei, nº 11).
É na vivência comunitária
de nossa fé que encontramos o amor de Cristo. “Caritas Christi urget nos – o amor
de Cristo nos impele” (2 Cor 5, 14). O Papa afirma que “é o amor de Cristo que enche
os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas
estradas do mundo para proclamar o seu Evangelho a todos os povos da Terra (cf. Mt
28, 19)” (Porta Fidei, nº 7).
O amor de Deus cria! A palavra criação possui
a mesma raiz grega da palavra poesia (poietés). Assim, Deus é o verdadeiro poeta e
nós somos um poema de Deus. Por isso, é impossível não ficar admirando, contemplando
o sol que nasce no horizonte, ou a lua cheia que cresce por trás dos montes. A natureza
são versos divinos que nos remetem a Deus. Aqui, em nossa Cidade Maravilhosa, temos
o momento e local para aplaudir o pôr do sol. No entanto, afirmo que não há maior
milagre e poesia mais bela do que o olhar e o sorriso de um cristão que vive no mundo
com coerência, simplicidade e entusiasmo a sua fé.
O católico tocado pela fé
é uma das provas e evidências mais fortes da existência de Deus. Quando conheço um
cristão coerente, vejo um milagre da criação. Vejo Deus na Terra e percebo que não
há trevas que possam invadir um mundo dominado pela luz da fé, pelo sal do testemunho
e pelo bálsamo da caridade. Em cada um de nós, de certo modo, se realizam de maneira
plena as palavras de Cristo: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos
(Mt 28,20).
Peçamos a Jesus a graça de viver nossa fé com toda nossa alma,
com todo nosso coração e com todo nosso entendimento. Só assim seremos o que temos
de ser e transformaremos o mundo. Só em Cristo, por Cristo e com Cristo conseguiremos
transmitir os tesouros de nossa fé e incidir positiva e efetivamente na sociedade.
Não tenhamos medo de falar daquilo que preenche nosso coração; não tenhamos medo de
falar d’Aquele que dá um sentido último às nossas vidas. Subamos nos telhados e nos
preparemos para anunciar com amor que o amor existe, se fez carne e habita em nós
e está entre nós.
Preparemo-nos, através da oração, da adoração, da eucaristia,
da reconciliação e da missão pessoal e comunitária para o Ano da Fé, que coincidirá,
para o nosso júbilo, com a preparação e a realização da JMJ Rio 2013!
Dom Orani
João Tempesta, O. Cist. Arcebispo do Rio de Janeiro