Igreja no Mali deve ter Comissão "Justiça e Paz" para poder evangelizar lá onde é
necessário - Palavras do leigo, Jean de Dieu Dembélé, a propósito da "Africae Munus"
O nosso intento
de saber como está a ser difundido e implementado, em África, a Exortação apostólica
pós-sinodal “Africae Munus”, leva-nos hoje ao Mali, país que, como sabeis, está desde
o passado mês de Março naquilo que muitos consideram a mais grave crise da sua história
milenária. *
Tudo começou com um golpe de Estado militar que depôs o presidente
Amadou Toumani Touré, poucos meses antes do fim do seu mandato e de eleições presidenciais
que já estavam programadas. Isto constituiu uma oportunidade a mais para os tuaregues
que já se tinham revoltado no Norte do país, em Janeiro; declaram, então, unilateralmente,
a independência de dois terços do país, denominado Azawad, e aliaram-se com movimentos
islamistas como ansardine, que continuam a ter a região sob as suas rédeas, embora
os tuaregues tenham, entretanto, rompido a aliança com eles e renunciado à pretensão
de independência. Mas a situação continua muito crítica e não se exclui uma intervenção
militar da parte da CEDEAO para recuperar a unidade e a estabilidade do país… *
Num
contexto como este, que utilidade prática pode ter a Exortação Apostólica Pós-Sinodal
“África Munus” sobre o papel da Igreja na promoção da reconciliação, justiça e paz?
É a pergunta que dirigimos a Jean de Dieu Dembelé. Ele é Secretário do Conselho
Regional do Laicado das Conferências Episcopais da África Ocidental e tem o encargo
de promover a Cultura da Paz. Como tal não podia deixar de ler a Africae Munus, que
aprecia muito e considera útil para o seu trabalho. Mas ouçamos as suas palavras…
“Aqui no Mali todos anseiam pela paz, pela justiça e a reconciliação
e penso que neste contexto a Exortação Pós-sinodal, “Africae Munus” é um elemento-chave
para nos ajudar a avançar na procura da paz. Em primeiro lugar,
temos necessidade de nos reconciliarmos. Como sublinha muito bem “Africae Munus” no
ponto 19, a reconciliação é um conceito pré-politico, uma realidade pré-politica que,
por isso mesmo, se revela da máxima importância para a própria tarefa politica. E
precisamente por isso, é de grande importância para a própria classe politica. “Se
não se criar nos corações a força da reconciliação, falta o pressuposto interior para
o compromisso politica pela paz”. Creio que isto é fundamental hoje em dia e muito
adapto para o caso do Mali, porque os actores políticos têm dificuldades em se reconciliar
e isto tem incidência no caminho em direcção à paz.
Em segundo
lugar, nós malianos temos de nos tornar mais justos e construir uma ordem justa das
coisas. Como se afirma no n. 22 da Africae Munus, não há dúvida de que a construção
duma ordem social justa está ligada à competência dos políticos. No entanto, uma das
tarefas da Igreja em África consiste em formar consciências rectas e receptivas em
relação às exigências da justiça a fim de que haja homens e mulheres preocupados com
essa ordem social justa e capazes de a construir através duma conduta responsável.
Sabemos que muitas das situações que vivemos dependem de situações de injustiça.
Em
terceiro lugar, nós malianos devemos criar uma ordem justa na lógica das beatitudes.
Isto é fundamental porque hoje temos a impressão de que os mais pobres, os famintos,
são abandonados à sua sorte e, se olharmos para toda essa situação de insegurança
no Norte, há deslocados, refugiados em países vizinhos… De que modo a realidade política
toma consciência de tudo isto? Tendo em conta esta dimensão das beatitudes que nos
dá força para reagir, acho que a Igreja no Mali, propondo pistas assentes nas beatitudes,
poderia ajudar a sociedade maliana a afastar-se deste precipício.”
E
de que modo utiliza todas essas indicações no seu trabalho de promoção da cultura
da paz e da reconciliação no Mali, especialmente neste período de conflito?
“Actualmente
estou a acompanhar um grupo de reflexão, um grupo de mulheres de todas as tendências
políticas e religiosas. E elas estão a fazer uma acção de advocacia junto das instituições
políticas, governamentais a fim de instaurar a paz. Elas já se encontraram com algumas
autoridades politicas e disseram-lhes que querem a paz; que a liberdade religiosa
não seja posta em questão; que os malianos aceitem dialogar, perdoar-se uns aos outros
e reconciliar-se. Considero este trabalho de aconselhamento e acompanhamento a minha
contribuição, antes de mais como fiel leigo cristão do Mali, mas também como encarregado
da promoção da cultura da reconciliação e da paz, porque para mim, não se trata apenas
de ter um título ou de o usar para fazer debates mediáticos, mas sim de trabalhar
realmente junto das pessoas e de pessoas que se mostram sensíveis, pessoas que puseram
de lado todas as suas opções partidárias para dizerem que o que querem é a paz, e
penso que é graças a isto – e com a colaboração de outros claramente! – que conseguimos
federar essas energias. E acho que neste momento está a ser feito um trabalho junto
do governo para instaurar um diálogo entre todas as forças do país. Acho que daqui
a alguns dias, algo de oficial vai emergir em relação a isto. É um dos frutos da acção
das mulheres, porque sabemos que nos nossos países quando as mulheres dizem não à
violência política são obrigados a ouvi-las.”
Isto, portanto, no
que toca ao Mali. Mas o senhor é Secretário do Conselho Regional do Laicado da África
Ocidental encarregado da promoção da cultura da paz e da reconciliação a nível das
conferências Episcopais da África Ocidental (CEREAO/RECOWA). O que se tem feito a
nível de toda essa região para a difusão e implementação prática da Exortação “Africae
Munus” ?
“Acho que a difusão do Africae Munus depende
das Conferências Episcopais, mas a nível do Conselho regional do Laicado, estamos
a exortar todos os conselhos nacionais do laicado a darem a conhecer a Africae Munus.
E, no caso do Mali, estamos mesmo a reflectir sobre a possibilidade de a traduzirmos
nas línguas nacionais, porque sambemos que depois dos Sínodos há sempre uma Exortação,
mas que isso é como que propriedade de algumas pessoas instruídas e a comunidade cristã
em geral permanece alheia a ela. Então, no caso do Mali, vamos criar uma comissão
de trabalho a fim de que a Áfricae Munus seja traduzida em línguas nacionais, a fim
de que cada cristãos possa lê-la e apropriar-se do seu conteúdo, e não fique como
um belo documento guardado na gaveta.”
Pelo que tenho constatado,
geralmente são as comissões “justiça e paz” das conferências episcopais nacionais
e diocesanas que se ocupam desse trabalho de difusão e implementação da Áfricae Munus,
pois que o Sínodo dos bispos e o seu respectivo documento final são precisamente sobre
a questão da reconciliação, justiça e paz em África. No Mali é assim que se passam
as coisas ou é só a nível do laicado que fazeis este esforço?
“Este
é precisamente um dos problemas aqui. Quer dizer, não temos uma “Comissão Nacional
Justiça e Paz”. Normalmente deveria haver, mas há já quase uma década que não funciona.
Há, todavia, algumas dioceses que têm comissões “justiça e paz”. Aliás, há dois anos
que venho acompanhando uma delas que trabalha em colaboração com uma outra comissão
justiça e paz do Burkina-Faso. E trabalho de modo particular sobre a contribuição
da Igreja para a paz nas fronteiras. Estou neste momento para partir para o Burkina-Faso,
onde vou ter uma sessão de trabalho com uma pequena comissão a fim de fazer uma proposta
às duas conferências episcopais (Mali/Burkina-Faso) sobre a questão das fronteiras,
porque com todas essas populações deslocadas há riscos nas fronteiras. Então, a questão
é: de que modo a Igreja pode edificar uma pastoral em relação a isto? Se
houvesse uma Comissão Nacional Justiça e Paz no Mali, seria ela que deveria ocupar-se
de todas estas questões, que deveria ser uma força de proposição e ser a voz da Igreja
sobre as questões sociais. Mas espero que tudo isso seja ouvido por quem de direito
e que possamos avançar na criação desta comissão justiça e paz. “
No
entanto, alguns meses depois do II Sínodo dos Bispos para África, foi realizado, em
Maio de 2010, no Mumemo, perto de Maputo, um grande encontro promovido pelo SCEAM
e pela Caritas África para ver como começar a pôr em prática as recomendações do Sínodo,
ainda antes que saísse o documento do Santo Padre, “Africae Munus”, portanto, e ali
recomendou-se que lá onde não houvesse comissões “Justiça e Paz” fossem criadas para
facilitar esse trabalho da Igreja na promoção da paz entre os africanos. Significa
que isto não foi ouvido no Mali, ou não foi ainda posto em prática?
“Sabe,
fazem-se muitos encontros com muitas resoluções, mas a meu ver ficam, muitas vezes,
na gaveta. Contudo, penso que no caso do Mali há um trabalho que está a ser feito
e há-de desembocar na criação duma comissão nacional “justiça e paz”. Em todo o caso,
é uma exigência! Caso contrário, não conseguiremos fazer muito perante o grande número
de injustiças sociais; se a Igreja não tiver um instrumento de acção sobre as questões
sociais, não poderá estar lá onde é necessário evangelizar. Penso, portanto, que é
uma exigência, uma decisão a ser tomada por quem de direito.”