Paulo VI e a descolonização. "Pai de todos". O testemunho do Cardeal Silvestrini
A
descolonização dos países africanos (e asiáticos) constituiu um dos acontecimentos
de maior relevo do século XX, na história do mundo, mas com uma incidência muito especial
para a Igreja. Esta a firme convicção do cardeal Aquiles Silvestrini, em declarações
feitas em 1999, num Encontro promovido na Rádio Vaticano, em homenagem a Amílcar Cabral,
o herói da independência da Guiné-Bissau. Já na semana passada, neste rubrica
“Sal da Terra”, dedicada a “factos e personagens da história da Igreja” aqui evocámos
o seu depoimento. Falava-se de um histórico encontro do Papa Paulo VI, em julho de
1970, com os três principais líderes dos Movimentos de libertação das colónias portuguesas:
para além de Amílcar Cabral (da Guiné-Bissau e Cabo Verde), Agostinho Neto (de Angola)
e Marcelino dos Santos (de Moçambique). Quase três décadas depois (no referido encontro
de 1999), o cardeal Silvestrini enquadrava esta audiência do Papa Montini no clima
que se seguiu ao Concílio Vaticano II e sobretudo à Encíclica “Populorum Progressio”,
que constituiu uma autêntica “mensagem do interesse e do apoio da Igreja à promoção
de todos os povos”, nomeadamente os que viviam situações de dependência colonial ou
de subdesenvolvimento. Enquanto os países colonizadores, alguns de modo especial,
tardavam em reconhecer e promover o direito dos povos africanos a tomarem nas mãos
o próprio destino, a Igreja Católica, através desta Encíclica de Paulo VI, exprimia
uma visão global de respeito e apoio em relação a todos os povos – considerou o cardeal
Silvestrini:
“A PPé o grande documento que mostra este grande olhar, visão,
e empenho da Igreja em relação aos povos. De facto Paulo VI, foi ele que disse que
o desenvolvimneto é o novo, grande, nome da paz”.
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Trabalhando
já então na Cúria Romana, muito em relação com o futuro Secretário de Estado, Cardeal
Casaroli, D. Aquiles Silvestrini está bem colocado para evocar os factos ligados à
histórica audiência de Paulo VI aos três líderes das então colónias africanas. “Foi
um grande acontecimento”. Corresponde totalmente à verdade o que Amílcar Cabral afirmou
dias depois do encontro com o Papa, na abertura do Congresso promovido em Roma: “Recebendo-nos,
o Papa Paulo VI reafirmou, em harmonia com a Encíclica PP, dirigida a todos os povos
africanos, que a Igreja está próxima daqueles que sofrem, querem o seu bem. (A Igreja)
sempre se exprime favoravelmente a favor da liberdade, da paz e da independência dos
povos”. Justamente, Amílcar Cabral (como os outros líderes dos Movimentos de libertação),
apelava aos católicos portugueses a que seguissem a linha de orientação apontada pelo
Papa Montini:
“Nós acreditamos (disse então Cabral) que os católicos, sobretudo
os de Portugal, têm agora uma base muito concreta, para além do documento papal, para
nos apoiarem; e aqueles que até agora têm apoiado a guerra colonial, para deixarem
de o fazer, por que isso vai contra os princípios e a opinião expressa daquela que
é a autoridade principal da Igreja Católica Romana. Trata-se de um facto político
de grande alcance, mas também de um grande facto moral”.
O cardeal Silvestrini
considera “exatíssimo” este juízo então expresso por Amílcar Cabral. “Correspondia
àquilo que o Papa tinha querido fazer, e correspondia também àquilo que foi depois
o efeito…
“Isto é, o Papa de algum modo tornava-se porta-voz e apoiante de
uma libertação pacífica que fizesse cair a contraposição – digamos - áspera, e isto
só seria possível se nos portugueses, na opinião pública portuguesa, viesse a entrar
esta reflexão que o Papa fazia. A Igreja empenhava-se nesta aspiração (dava-lhe cobertura)
e portanto os católicos portugueses não podiam continuar – nem sequer passivamente
– a solidarizar-se com a linha da repressão”.
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Um outro
efeito das posições claras de Paulo VI em relação à África e às suas populações, veio
a ser, pouco a pouco, as tomadas de consciência da Igreja africana e dos seus pastores
em relação à integridade da missão que toca à Igreja… O que, mais tarde, se exprimiu
por ocasião já do primeiro Sínodo dos Bispos para a África, com uma consciência crescente
de todo o amplo horizonte da sua missão:
“A Igreja tem esta missão (para
além da missão de evangelizar) a de fazer sentir aos africanos que existe uma unidade
entre eles, que o continente africano não é uma mera expressão geográfica”.
Aliás,
nas suas viagens, o Papa (Montini, como depois também João Paulo II) foi sempre acolhido,
mesmo pelos não - cristãos, como um grande líder religioso, como aquele que, imparcialmente,
e com uma visão superior, é amigo de todos”: “A Igreja conseguiu nestes 35-40 anos
(observava já em 1999 o cardeal Silvestrini) um enorme resultado neste seu ir ao encontro
e acompanhar os povos africanos”.