2012-06-18 17:14:09

A criança africana, dom de Deus, emissário dos antepassados


Durante o mês de Junho, o Continente africano celebra dois grendes eventos que têm por protagonistas as crianças. No dia 3 de Junho a Igreja, em África, como noutros lugares, comemora os mártires do Uganda, dentre os quais recordamos as duas figuras emblemáticas de Carlos Lwanga e Kisito, proclamados padroeiros da juventude africana.

No dia 3 de Junho de 1886 estes dois jovens escolheram o martírio por amor de Cristo, rejeitando as condições impostas pelo Rei Mwanga, condições incompatíveis com a sua identidade cristã.
No dia 16 de Junho de cada ano, desde 1990, o continente recorda um grupo de estudantes de Soweto, massacrados no dia 16 de Junho de 1976 sob o regime sul africano do apartheid, então em vigor: protestavam contra a obrigatoriedade do ensino exclusivo em língua afrikaans, em defesa da própria identidade multi-cultural.

Estes dois acontecimentos demonstram como é que as crianças africanas são o reflexo daquilo que pretendem muitos dos adultos dessas mesmas comunidades: a liberdade religiosa e a conservação do património cultural. Com efeito, em muitas sociedades tradicionais africanas, é difusa uma concepção cíclica da vida, segundo a qual os neo-natos que vêm ao mundo são emissários dos Antepassados. Depois do crescimento e da sua permanência no mundo dos vivos, no momento da morte juntam-se aos Antepassados, assegurando, deste modo, a ligação entre os vivos e os mortos. As crianças são consideradas, portanto, como elemento de comunhão entre os dois mundos. Como emissários dos antepassados, são, portanto, portadoras de bom augúrio. As crianças são, geralmente, protegidas e cuidadas; infelizmente, porém, isto justifica também um comportamento exactamente oposto, embora se trate de casos marginais: em certas comunidades as crianças nascidas com má formação são consideradas como símbolo de desgraça e são muitas vezes abandonadas a si mesmas e forçadas a sofrer ritos de expiação.

A visão do cristianismo é, contudo, diferente e põe em realce a dignidade fundamental de cada pessoa, homem/mulher, criado por Deus à sua imagem e semelhança. Cada pessoa humana é amada por Deus, é única, diversa dos outros. Cada pessoa humana encontra-se em relação com Deus e Deus deseja que cada uma se desenvolva até à salvação eterna. Portanto, o cristianismo constitui um forte ponto de referencia para as sociedades e para cada pessoa humana, inclusive as crianças, os jovens, mesmo nos períodos de grandes mudanças culturais e sociais. A Igreja, em África, atribui aos jovens muitos méritos. A Exortação pós-sinodal Africae Munus considera-os como dom de Deus à Humanidade, fonte de esperança, de renovação e de vida, na sociedade. O senhor Jesus já tinha manifestado o Seu amor pelos mais pequenos e por aqueles que são, igualmente, “ puros de coração”, como as crianças.

Hoje, a família africana tradicional sofre as mudanças impostas pela transformação da sociedade, como por exemplo, a passagem da vida das comunidades rurais à modernidade proporcionada pelos grandes centros urbanos. A desadaptação de certas tradições ao contexto urbano torna mais frágil a instituição da família que entra em crise de identidade e se enfraquece, nesse sistema social que a coloca perante numerosos desafios, como a educação e a adopção das crianças. O mal-estar é expresso, nestes últimos anos, pelo aumento de casos de crianças acusadas de feitiçaria. Este fenómeno encontra-se em expansão, sobretudo nos contextos urbanos de muitos países do Continente e, segundo os peritos, trata-se de uma reacção a uma situação de crise profunda e generalizada, que atravessa a sociedade na África a Sul do Sara. Esta nova forma de crença, dita “feitiçaria infantil” com difusão impressionante, tem como resultado a ruptura com o modelo da “feitiçaria tradicional”, atribuída sobretudo aos velhos que, avizinhando-se à ida ao mundo dos Antepassados, são considerados como detentores de uma espécie de “força vital”, que pode ser usada seja para fazer bem seja para prejudicar… Contrariamente ao fenómeno das crianças soldado, fenómeno geralmente limitado às zonas de conflito, e à exploração do trabalho infantil nos contextos mais pobres, a realidade das ditas “crianças feiticeiras” toca um nervo sensível do africano, pois que os africanos têm uma visão fundamentalmente religiosa do mundo. Isto pode levar, por vezes, à superstição.
Deste modo, a criança dita “ feiticeira” transforma-se em “actor social” e ocupa um espaço cada vez mais central na esfera pública. Considerada responsável de eventos que geram tensões familiares, tais como mortes, doenças graves, perda de trabalho, desagregação da família, etc., seria precisamente a criança a provocar todo o tipo de desgraças na família; torna-se, portanto, num elemento perigoso do qual é preciso desfazer-se. Estas crianças são abandonadas, devem deixar a família, o bairro, a sua cidade e inclusive, às vezes, a região, e a vida da rua não é, certamente, um paraíso para elas, pois que vêm-se forçadas, em certos casos, a confrontar-se com todo o tipo de violência, precisamente por parte de quem deveria, pelo contrario, assumir a responsabilidade de as proteger. Alguns agentes da polícia não hesitam a chicoteá-las: um ritual, na sua opinião para exorcizar as supostas “más inclinações” dessas crianças. E não faltam pais que recorrem, inclusive, aos “ritos de libertação” fornecidos pela multidão de igrejas ditas “do despertar” que proliferam no sul do Continente. Este fenómeno, acaba por ser, em muitos casos um pretexto: perante a pobreza extrema e a dissolução da solidariedade familiar nos contextos urbanos, os pais evocam a feitiçaria para “limpar a consciência”, e justificar o abandono dos próprios filhos.

A pastoral da Igreja vê-se assim forçada a confrontar-se com este problema cultural grave e deve procurar formar as consciências, os hábitos das famílias, mas também criar estruturas de vida civil conformes à dignidade de cada pessoa humana e favorável ao desenvolvimento de cada jovem na sociedade.

Por: Marie-José Muando Buabualo – Programa Francês/África, Rádio Vaticano








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