Havana (RV) – “A verdade é um anseio do ser humano, e procurá-la supõe sempre
um exercício de liberdade autêntica.” Palavras claras, simples e sinceras de Bento
XVI pronunciadas na homilia desta quarta-feira, 28, em Havana, último encontro multitudinário
desta importante visita à América Latina.
Na emblemática Praça da Revolução,
como o próprio Pontífice a definiu, o cenário leva à reflexão: do palco montado no
estilo das antigas casas cubanas, em frente da estátua imponente do pai da pátria,
José Martí, Bento XVI via, do seu lado esquerdo, a escrita “A caridade nos une”, à
sua frente, as duas imagens características impressas nos prédios que formam a Praça,
Che Guevara e Camilo Cienfuegos, heróis da revolução, e do lado direito, a imagem
de Nossa Senhora da Caridade do Cobre, com a escrita a “Jesus por Maria”. Normalmente,
a Praça emana a energia dos anos revolucionários, hoje emanava a esperança, a palavra
de vida, de verdade e liberdade que nos trouxe Jesus Cristo.
Cerca de 300 mil
pessoas participaram com espírito recolhimento, e ouviram atentas as palavras do Papa,
que, sob a proteção da Virgem da Caridade, promoveu um raro momento de reconciliação,
de união do povo cubano. Estava presente também o Presidente Raúl Castro, que não
perdeu a ocasião de saudar novamente o Pontífice.
Se a verdade é mal interpretada,
advertiu Bento XVI, leva à irracionalidade e ao fanatismo. “Não hesitem em seguir
Jesus Cristo”, exortou, recordando que esta mensagem é a razão de ser da Igreja. Todavia,
para difundir a Boa Nova, os fiéis precisam ser livres – termo usado 14 vezes na homilia.
O Papa reconhece os passos feitos na relação entre Igreja e Estado, mas pede mais,
pede que avancem ulteriormente. Uma menção também foi reservada ao sacerdote Félix
Varela, filho ilustre desta cidade e que entrou na história de Cuba como o primeiro
que ensinou seu povo a pensar – missão esta que a Igreja também reivindica nos ambientes
de formação e nos centros universitários.
De Havana para a RV, Bianca Fraccalvieri
Abaixo
reproduzimos a íntegra da homilia do Papa em língua portuguesa.
Amados irmãos
e irmãs!
«Bendito sejais, Senhor, Deus dos nossos pais (...). Bendito o vosso
nome glorioso e santo» (Dn 3, 52). Este hino de bênção do livro de Daniel ressoa hoje
na nossa liturgia, convidando-nos repetidamente a bendizer e louvar a Deus. Somos
parte da multidão daquele coro que celebra o Senhor sem cessar. Unimo-nos a este concerto
de ação de graças, oferecendo a nossa voz jubilosa e confiante, que procura fundar
no amor e na verdade o caminho da fé.
«Bendito seja Deus» que nos reúne nesta
praça emblemática, para mergulharmos mais profundamente na sua vida. Sinto uma grande
alegria por estar hoje no vosso meio e presidir a Santa Missa no coração deste Ano
Jubilar dedicado à Virgem da Caridade do Cobre.
Saúdo cordialmente o Cardeal
Jaime Ortega y Alamino, Arcebispo de Havana, e agradeço-lhe as amáveis palavras que
me dirigiu em nome de todos. Estendo a minha saudação aos Senhores Cardeais, aos meus
irmãos Bispos de Cuba e doutros países que quiseram participar nesta solene celebração.
Saúdo também os sacerdotes, os seminaristas, os religiosos e todos os fiéis aqui reunidos,
bem como as autoridades que nos acompanham.
Na primeira leitura que foi proclamada,
os três jovens, perseguidos pelo soberano babilonense, antes preferem morrer queimados
pelo fogo que trair a sua consciência e a sua fé. Eles encontraram a força de «louvar,
glorificar e bendizer a Deus» na convicção de que o Senhor do universo e da história
não os abandonaria à morte e ao nada. De fato, Deus nunca abandona os seus filhos,
nunca os esquece. Está acima de nós e é capaz de nos salvar com o seu poder; ao mesmo
tempo, está perto do seu povo e, por meio do seu Filho Jesus Cristo, quis habitar
entre nós.
«Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus
discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará» (Jo 8, 31). No texto
do Evangelho que foi proclamado, Jesus revela-Se como o Filho de Deus Pai, o Salvador,
o único que pode mostrar a verdade e dar a verdadeira liberdade. Mas o seu ensinamento
gera resistência e inquietação entre os seus interlocutores, e Ele acusa-os de procurarem
a sua morte, aludindo ao supremo sacrifício da Cruz, já próximo. Ainda assim, exorta-os
a acreditar, a permanecer na sua Palavra para conhecerem a verdade que redime e dignifica.
Com
efeito, a verdade é um anseio do ser humano, e procurá-la supõe sempre um exercício
de liberdade autêntica. Muitos, todavia, preferem os atalhos e procuram evitar essa
tarefa. Alguns, como Pôncio Pilatos, ironizam sobre a possibilidade de conhecer a
verdade (cf. Jo 18, 38), proclamando a incapacidade do homem de alcançá-la ou negando
que exista uma verdade para todos. Esta atitude, como no caso do ceticismo e do relativismo,
produz uma transformação no coração, tornando as pessoas frias, vacilantes, distantes
dos demais e fechadas em si mesmas. São pessoas que lavam as mãos, como o governador
romano, e deixam correr o rio da história sem se comprometer.
Entretanto há
outros que interpretam mal esta busca da verdade, levando-os à irracionalidade e ao
fanatismo, pelo que se fecham na «sua verdade» e tentam impô-la aos outros. São como
aqueles legalistas obcecados que, ao verem Jesus ferido e ensanguentado, exclamam
enfurecidos: «Crucifica-o!» (cf. Jo 19, 6). Na realidade, quem age irracionalmente
não pode chegar a ser discípulo de Jesus. Fé e razão são necessárias e complementares
na busca da verdade. Deus criou o homem com uma vocação inata para a verdade e, por
isso, dotou-o de razão. Certamente não é a irracionalidade que promove a fé cristã,
mas a ânsia da verdade. Todo o ser humano deve perscrutar a verdade e optar por ela
quando a encontra, mesmo correndo o risco de enfrentar sacrifícios.
Além disso,
a verdade sobre o homem é um pressuposto imprescindível para alcançar a liberdade,
porque nela descobrimos os fundamentos duma ética com que todos se podem confrontar,
e que contém formulações claras e precisas sobre a vida e a morte, os deveres e direitos,
o matrimônio, a família e a sociedade, enfim sobre a dignidade inviolável do ser humano.
É este patrimônio ético que pode aproximar todas as culturas, povos e religiões, as
autoridades e os cidadãos, os cidadãos entre si, os crentes em Cristo com aqueles
que não crêem n’Ele.
Ao ressaltar os valores que sustentam a ética, o cristianismo
não impõe, mas propõe o convite de Cristo para conhecer a verdade que nos torna livres.
O fiel é chamado a dirigir este convite aos seus contemporâneos, como fez o Senhor,
mesmo perante o sombrio presságio da rejeição e da Cruz. O encontro pessoal com Aquele
que é a verdade em pessoa impele-nos a partilhar este tesouro com os outros, especialmente
através do testemunho.
Queridos amigos, não hesiteis em seguir Jesus Cristo.
N’Ele encontramos a verdade sobre Deus e sobre o homem. Ajuda-nos a superar os nossos
egoísmos, a sair das nossas ambições e a vencer o que nos oprime. Aquele que pratica
o mal, aquele que comete pecado é escravo do pecado e nunca alcançará a liberdade
(cf. Jo 8, 34). Somente renunciando ao ódio e ao nosso coração endurecido e cego é
que seremos livres, e uma vida nova germinará em nós.
Com a firme convicção
de que a verdadeira medida do homem é Cristo e sabendo que n’Ele se encontra a força
necessária para enfrentar toda a provação, desejo anunciar-vos abertamente o Senhor
Jesus como Caminho, Verdade e Vida. N’Ele todos encontrarão a liberdade plena, a luz
para compreender profundamente a realidade e transformá-la com o poder renovador do
amor.
A Igreja vive para partilhar com os outros a única coisa que possui:
o próprio Cristo, esperança da glória (cf. Col 1, 27). Para realizar esta tarefa,
é essencial que ela possa contar com a liberdade religiosa, que consiste em poder
proclamar e celebrar mesmo publicamente a fé, comunicando a mensagem de amor, reconciliação
e paz que Jesus trouxe ao mundo. Há que reconhecer, com alegria, os passos que se
têm realizado em Cuba para que a Igreja cumpra a sua irrenunciável missão de anunciar,
publica e abertamente, a sua fé. Mas é preciso avançar ulteriormente. E desejo encorajar
as instâncias governamentais da Nação a reforçarem aquilo que já foi alcançado e a
prosseguirem por este caminho de genuíno serviço ao bem comum de toda a sociedade
cubana.
O direito à liberdade religiosa, tanto na sua dimensão individual como
comunitária, manifesta a unidade da pessoa humana, que é simultaneamente cidadão e
crente, e legitima também que os crentes prestem a sua contribuição para a construção
da sociedade. O seu reforço consolida a convivência, alimenta a esperança de um mundo
melhor, cria condições favoráveis para a paz e o desenvolvimento harmonioso, e ao
mesmo tempo estabelece bases firmes para garantir os direitos das gerações futuras.
Quando
a Igreja põe em relevo este direito, não está a reclamar qualquer privilégio. Pretende
apenas ser fiel ao mandato do seu Fundador divino, consciente de que, onde se torna
presente Cristo, o homem cresce em humanidade e encontra a sua consistência. Por isso,
a Igreja procura dar este testemunho na sua pregação e no seu ensino, tanto na catequese
como nos ambientes formativos e universitários. Esperemos que também aqui chegue brevemente
o momento em que a Igreja possa levar aos diversos campos do saber os benefícios da
missão que o seu Senhor lhe confiou e que ela não pode jamais negligenciar.
Ínclito
exemplo deste trabalho foi o insigne sacerdote Félix Varela, educador e professor,
filho ilustre desta cidade de Havana, que passou à história de Cuba como o primeiro
que ensinou o seu povo a pensar. O padre Varela indica-nos o caminho para uma verdadeira
transformação social: formar homens virtuosos para forjar uma nação digna e livre,
já que esta transformação dependerá da vida espiritual do homem; de fato, «não há
pátria sem virtude» (Cartas a Elpídio, carta sexta, Madrid 1836, 220). Cuba e o mundo
precisam de mudanças, mas estas só terão lugar se cada um estiver em condições de
se interrogar acerca da verdade e se decidir a enveredar pelo caminho do amor, semeando
reconciliação e fraternidade.
Invocando a proteção maternal de Maria Santíssima,
peçamos que, participando regularmente na Eucaristia, nos tornemos também testemunhas
da caridade que responde ao mal com o bem (cf. Rm 12, 21), oferecendo-nos como hóstia
viva a Quem amorosamente Se entregou por nós. Caminhemos na luz de Cristo, que pode
dissipar as trevas do erro. Supliquemos-Lhe que, com o valor e o vigor dos santos,
cheguemos a dar uma resposta livre, generosa e coerente a Deus, sem medos nem rancores.
Amém.