2012-03-10 19:45:40

Vésperas reúnem anglicanos e católicos em Roma


Cidade do Vaticano (RV) - As Vésperas do III Domingo de Quaresma foram marcadas pelo encontro entre Anglicanos e Católicos na Igreja de Santo André e São Gregório, na Colina do Celio, em Roma.

As Vésperas também foram marcadas pela homenagem aos mil anos de criação da Casa dos Camaldolenses e a morte de São Gregório Magno.

Abaixo publicamos a íntegra das alocuções de Bento XVI e do Arcebispo de Cantuária, Dr. Rowan Williams.

Alocução Bento XVI

Para mim é uma imensa alegria estar aqui na Basílica de São Gregório, na Colina do Celio, para a solene celebração das Vésperas em memória do trânsito de São Gregório Magno. Com vocês, caros irmãos e irmãs da Família Camaldolense, dou graças a Deus pelos mil anos de Fundação do Sagrado Eremitério dos Camaldolenses por parte de São Romualdo. Fico muito contente com a presença, nesta celebração especial, do Doutor Rowan Williams, Arcebispo de Cantuária. Ao senhor, caro irmão em Cristo, e a cada um de vocês, caros Monges e Monjas, e a todos aqui presentes faço uma cordial saudação.

Escutamos dois trechos de São Paulo. O primeiro, tirado da Segunda Carta aos Coríntios, está em sintonia com o tempo litúrgico que vivemos: a Quaresma. Isso, de fato, contém a exortação do Apóstolo que aproveita o momento favorável para acolher a graça de Deus. Esse momento é naturalmente aquele em que Jesus Cristo veio nos revelar e doar o amor de Deus, com a sua Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição. O “dia da salvação” é aquela realidade que São Paulo chama também de “plenitude dos tempos”, o momento no qual Deus, ao encarnar-se, entra de modo singular no tempo e o preenche com a sua graça.

A nós cabe acolher esta dádiva que é o próprio Jesus: sua Pessoa, sua Palavra, seu Espírito Santo. Além disso, na Primeira Leitura que ouvimos, São Paulo fala também dele mesmo e de seu apostolado: de como ele se esforçou para ser fiel a Deus no seu ministério, para que isso fosse realmente eficaz e não se tornasse, ao invés, obstáculo para a fé. Estas palavras nos fazem pensar em São Gregório Magno, no luminoso testemunho que deu ao povo de Roma e à Igreja inteira ao realizar um serviço irrepreensível e cheio de zelo pelo Evangelho. Na realidade é possível aplicar a Gregório aquilo que Paulo escreveu sobre si: a graça de Deus nele não foi em vão. É este, na realidade, o segredo para a vida de cada um de nós: acolher a graça de Deus e consentir de todo coração à ação Dele. Este também é o segredo da alegria verdadeira e da paz profunda.

Por outro lado, a Segunda Leitura foi tirada da Carta aos Colossenses. São palavras – sempre tão tocantes para as inspirações espirituais e pastorais dos Colossenses – que o Apóstolo dirige aos membros daquela comunidade para formá-los segundo o Evangelho, para que qualquer coisa que fizessem seja “em palavra e obras, tudo venha em nome do Senhor Jesus”. “Vocês são perfeitos”, havia dito o Mestre aos seus discípulos; e então o Apóstolo exorta a viver de acordo com esta alta meta da vida cristã que é a santidade.

Pode fazer porque os irmãos a quem se dirige são “escolhidos por Deus, santos e amados”. Também nisso, na base de tudo, existe a graça de Deus, o dom do chamado, o mistério do encontro com Jesus vivo. Mas esta graça pede a resposta dos batizados: requer o compromisso de revestir-se dos sentimentos de Cristo: ternura, bondade, humildade, mansidão, paciência, perdão recíproco e, sobretudo, como síntese e coroamento, ágape, o amor que Deus nos doou por meio de Jesus e que o Espírito Santo derramou em nossos corações. E para se revestir de Cristo é preciso que sua Palavra viva entre nós e em nós com toda a sua riqueza, e em abundância. Em um clima de constante agradecimento, a comunidade cristã se nutre da Palavra e faz subir até Deus, como canto de louvor, a Palavra que Ele mesmo nos doou. E cada ação, cada gesto, cada serviço, é realizado dentro desta relação profunda com Deus, no movimento interior do amor na Trindade que desce em direção a nós e sobe em direção a Deus, movimento que na celebração do Sacrifício eucarístico encontra sua forma mais alta.

Esta Palavra ilumina também estas felizes circunstâncias nas quais estamos reunidos hoje, em nome de São Gregório Magno. Graças a fidelidade e a benevolência do Senhor, a Congregação dos Monges Camaldolenses da Ordem de São Bento pode percorrer esse milênio de história, nutrindo-se quotidianamente da Palavra de Deus e da Eucaristia, assim como havia ensinado o seu fundador São Romualdo, de acordo com o “triplex bonum” da solidão, da vida em comunidade e da evangelização. Figuras exemplares de homens e mulheres de Deus, como São Pedro Damião, Graziano – autor do Decretum – São Bruno de Querfurt e os Cinco Irmãos Mártires, Rodolfo I e II, a Beata Gherardesca, a Beata Joana de Bagno e o Beato Paulo Justiniano; homens de ciências e de arte como Frei Mauro o Cosmógrafo, Lourenço Monje, Ambrósio Traversari, Pedro Delfino e Guido Grandi; ilustres historiadores como os Analistas Camaldolenses João Benedito Mittarelli e Anselmo Costadoni; zelosos Pastores da Igreja, entre os quais destaca-se o Papa Gregório XVI, mostraram os horizontes e a grande fecundidade da tradição camaldolense.

Cada fase da longa história dos Camaldolenses conheceu testemunhos fiéis do Evangelho, não somente no silêncio do ocultamento e da solidão e na vida comunitária compartilhada com os Irmãos, mas também no serviço humilde e generoso a todos.

Particularmente fecundo foi o acolhimento oferecido nas hospedarias camaldolenses. Nos tempos do humanismo florentino os muros dos Camaldolenses acolheram as famosas disputationes, as quais participavam grandes humanistas como Marcílio Ficino e Cristóvão Landino; nos dramáticos anos da Segunda Guerra Mundial, os mesmos mosteiros propiciaram o nascimento do famoso “Código dos Camaldolenses”, uma das fontes mais significativas da Constituição da Republica Italiana. Não foram menos fecundos os anos do Concilio Vaticano II, durante os quais foram recebidas entre os Camaldolenses personalidades de grande valor, que enriqueceram a Congregação e a Igreja e promoveram novos impulsos e colonatos nos Estados Unidos da América, na Tanzânia, na Índia e no Brasil. Em tudo isso, era garantia de fecundidade o apoio dos monges e monjas que acompanhavam as novas fundações com oração constante, vivida no profundo de sua “reclusão”, muitas vezes chegando ao heroísmo.

Em 17 de setembro de 1993, o Beato Papa João Paulo II, ao encontrar os monges no Sagrado Eremitério dos Camaldolenses, comentava o tema de seu iminente Capítulo Geral, “Escolher a esperança, escolher o futuro”, com estas palavras: “Escolher a esperança e o futuro significa, em última análise, escolher Deus… Significa escolher Cristo, esperança de cada homem”. E acrescentou: “Isso acontece, em particular, com aquela forma de vida que Deus suscitou na Igreja inspirando São Romualdo a fundar a Família beneditina dos Camaldolenses, com a característica complementar de Eremitério e Monastério, vida solitária e vida cenobítica entre eles coordenada”. O meu Beato Predecessor destacou ainda que “escolher Deus quer dizer também cultivar humildemente e pacientemente – aceitando os tempos de Deus – o diálogo ecumênico e o diálogo interreligioso”, sempre a partir da fidelidade ao carisma originário recebido por São Romualdo e transmitido por meio de uma tradição pluriforme e milenar.

Encorajados pela visita e pelas palavras do Sucessor de Pedro, vocês, monges e monjas camaldolenses, prosseguiram o seu caminho procurando sempre o justo equilíbrio entre o espírito eremítico e aquele cenobítico, entre a exigência de vocês se dedicarem inteiramente a Deus na solidão e aquela de vocês se sustentarem na oração comum e aquelas de acolher os irmãos para que possam chegar às fontes da vida espiritual e julgar os acontecimentos do mundo com a consciência verdadeiramente evangélica.

Assim vocês procuram obter aquela perfeita caridade que São Gregório Magno considerava ponto de chegada de cada manifestação da fé, compromisso que encontra confirmação no lema do brasão de vocês: “Ego Vobis, Vos Mihi”, síntese da fórmula da aliança entre Deus e o seu povo, e fonte da eterna vitalidade do seu carisma.

O Mosteiro de São Gregório na Colina do Celio é o contexto romano no qual celebramos o milênio dos Camaldolenses junto com Sua Graça, o Arcebispo de Cantuária que, junto conosco, reconhece este Mosteiro como lugar de nascimento do início do Cristianismo nas Terras britânicas. A celebração de hoje caracteriza-se por um caráter ecumênico profundo que, como sabemos, já faz parte do espírito camaldolense contemporâneo. Este Mosteiro camaldolense Romano desenvolveu com Cantuária e com a Comunhão Anglicana, especialmente depois do Concílio Vaticano II, laços que hoje são tradicionais. Pela terceira vez hoje, o Bispo de Roma se encontrou com o Arcebispo de Cantuária, na casa de São Gregório Magno. E com razão, porque precisamente a partir deste Mosteiro, o Papa Gregório escolheu Agostinho e seus quarenta monges para levar o Evangelho para os anglos, pouco mais de mil e quatrocentos anos atrás. A presença constante de monges neste lugar, e por tanto tempo, já é em si testemunho da fidelidade de Deus à sua Igreja, que somos felizes em anunciar para o mundo inteiro. O sinal de que juntos vamos colocar na frente do altar, onde São Gregório celebrava o sacrifício eucarístico, nós esperamos que permaneça como uma lembrança não só do nosso encontro fraterno, mas como um estímulo para todos os fiéis católicos e anglicanos, que, visitando os gloriosos túmulos dos santos Apóstolos e Mártires, em Roma, renovem o compromisso de sempre rezar e trabalhar pela unidade, para viver plenamente de acordo com o "ut unum sint" de Jesus ao Pai.

Este desejo profundo, que temos a alegria de dividir, confiamos à intercessão celeste de São Gregório Magno e de São Romualdo. Amém.

Alocução Dr. Rowan Williams

É um privilégio estar aqui, onde meus predecessores estiveram em 1989 e 1996, e oferecer mais uma vez, assim como recentemente fizemos em Westminster (e Assis), o serviço de louvar o Único Senhor em cujo nome fomos batizados; o Único Senhor que por seu Espírito, é facilmente reconhecido em cada membro do seu Corpo místico, como imagem do Cristo seu Filho, por meio da nossa vocação batismal apesar das lutas e tentações.

São Gregório Magno tinha muito a dizer sobre as tentações e lutas peculiares dos chamados ao trabalho na Igreja do Senhor. Ser chamado para esse serviço é ser chamado para diferentes tipos de aflições – a angústia da compaixão, como ele mesmo diz (Moralia 30.25.74), a consciência diária das urgentes necessidades humanas, corporais e espirituais, e o tormento da lisonja, louvor e status (ib. 26.34.62).

Este último é um tormento porque aqueles que são chamados a este serviço conhecem tão bem a sua própria fraqueza interior e instabilidade. Mas o conhecimento é um conhecimento salvador, que entre outras coisas nos ajuda a exercer o serviço para os irmãos em dificuldade: e nos lembra que encontramos estabilidade, “soliditas” apenas na vida do Corpo de Cristo, não em nossa própria realização (Homilias sobre Ezequiel 2.5.22).

Estes são ideais profundamente enraizados na formação de São Gregório como um monge. A humildade é a chave para todo ministério fiel, uma humildade que busca constantemente ser imerso, envolvido na vida do Corpo de Cristo, sem procurar um heroísmo individual ou santidade. E é essa humildade que o escritor da primeira biografia de São Gregório, escrita na Inglaterra no início do século oitavo, que encabeça a lista de sua santa virtude, associando-a com o profetismo que lhe permitiu ver o que o povo inglês precisava e responder enviando o missionário Santo Agostinho.

Essa associação de humildade e profecia é, de fato, uma daquelas que o próprio São Gregório fez nos Diálogos. O verdadeiro pastor e líder na Igreja é aquele que, com a eterna auto-oferta de Jesus Cristo através dos mistérios sacramentais da Igreja, é livre para ver os outros como eles realmente são e suas necessidades. Isso pode ser “atormentador”, porque essas necessidades, às vezes tão profundas e trágicas, também nos estimulam a resolvê-las em nome e na força de Cristo.

Aqui se encontra o cerne da visão monástica de São Gregório, visão esta que os irmãos e irmãs de
Camaldoles – cujo milênio hoje celebramos com alegria sincera – ainda procuram viver. Estar imerso na vida sacramental do Corpo de Cristo requer imersão diária na contemplação; sem
isso não podemos ver um ao outro claramente; sem ela não podemos verdadeiramente reconhecer e amar uns aos outros, e crescer juntos, em seu santo, católico e apostólico Corpo. O equilíbrio na vida monástica de solidão, de trabalho comum e adoração, um equilíbrio particularmente e cuidadosamente trabalhado na vida de Camaldoles, é algo que visa permitir uma clara, até mesmo 'profética' visão do outro – vê-los, como sugere a tradição cristã oriental representada por Evágrio à luz de sua essência espiritual autêntica, e não como eles se relacionam com nossas paixões e preferências.

O trabalho inseparável de ação e contemplação, de solidão e comunidade, tem a ver com a purificação constante do nosso conhecimento um do outro, à luz de Deus a quem encontramos no silêncio e no auto-esquecimento.

Santo Padre, queridos irmãos e irmãs, seria errado sugerir que entramos em contemplação, a fim de ver uns aos outros mais claramente, mas se alguém dissesse que a contemplação é um luxo na Igreja, algo imaterial para a saúde do Corpo, deveríamos dizer que sem isso constantemente lidaríamos com sombras e ficções, e não com a realidade do mundo em que vivemos.

A Igreja é chamada a mostrar o mesmo espírito profético atribuído a São Gregório, a capacidade para ver onde a verdade é necessária para responder ao chamado de Deus na pessoa dos mais necessitados. Para fazer isso, é preciso discernimento, olhar para além dos preconceitos e clichês que afetam até mesmo os fiéis em uma cultura tão apressada e superficial em muitos de seus julgamentos. Ao hábito de discernimento pertence o hábito de reconhecer uns aos outros como agentes da graça, compaixão e redenção de Cristo.

Tal hábito só se desenvolverá se diariamente aprendermos a disciplina do silêncio e da paciência, esperando que a verdade se releve para nós assim como lentamente colocamos de lado as distorções da nossa visão causadas pelo egoísmo e pela ganância. Nos últimos anos, vimos o desenvolvimento de um vasto sistema fantasioso e sofisticado, criado e sustentado pela cobiça, um conjunto de hábitos econômicos em que as necessidades atuais parecem estar quase totalmente obscurecidas. Estamos familiarizados com a cultura da publicidade febril na qual somos persuadidos a desenvolver desejos irreais e desproporcionais. Todos nós temos – leigos e pastores – a necessidade da disciplina que expurga nossa visão e restaura em nós algum sentido da verdade, mesmo que possa produzir o "tormento" de saber mais claramente o quanto as pessoas sofrem e quão pouco podemos fazer por elas.


Santo Padre, "Certeza ainda imperfeita" foi como nossos predecessores de abençoada memória, o Papa João Paulo II e o Arcebispo Robert, aqui em Roma em 1989, caracterizaram a comunhão que as nossas Igrejas compartilham. "Certeza” por causa da visão eclesial compartilhada à qual nossas duas comunhões estão comprometidas como sendo o caráter da Igreja – uma visão da restauração de plena comunhão sacramental, de uma vida eucarística que é totalmente visível, e, portanto, um testemunho de que é totalmente credível, para que um mundo confuso e atormentado possa entrar na bem-vinda e transformadora luz de Cristo. E “ainda imperfeita" por causa do limite de nossa visão, um deficit no fundo de nossa esperança e paciência. Nosso reconhecimento do único Corpo na vida comunitária de cada uma das Igrejas é instável e incompleto; sem tal reconhecimento final nós não seremos completamente livres para compartilhar o poder transformador do Evangelho na Igreja e no mundo.

"A verdade vos libertará", diz Nosso Senhor. Nas disciplinas de contemplação e de silêncio, nós somos levados para mais perto da verdade, e assim também mais perto da Cruz do Senhor. Reconhecemos a nossa fraqueza e aprendemos algo do mistério de como Deus lida com nossa fraqueza – não ignorando ou rejeitando-o – mas abraçando suas consequências na encarnação e na paixão de Cristo. Seu auto-esvaziamento nos chama à nossa própria auto-negação – um tema apropriado para a Quaresma. Aprendemos como configurar um lado das nossas ocupadas agendas fato que permite que o Cristo viva em nós, para abrir nossos olhos e nos capacitar para o serviço. Hoje, ao dar graças por um milênio de testemunho monástico, celebramos os dons da visão clara e verdadeira que foram possibilitados através deste testemunho. E rezamos para que todos aqueles chamados ao serviço na Igreja de Cristo possam ter a graça da disciplina contemplativa e da clareza profética em seu próprio testemunho, para que a glória da cruz de Cristo brilhe em nosso mundo, mesmo em meio às nossas próprias fraquezas e fracassos.








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