Cidade do Vaticano (RV) - As Vésperas do III Domingo de Quaresma foram marcadas
pelo encontro entre Anglicanos e Católicos na Igreja de Santo André e São Gregório,
na Colina do Celio, em Roma.
As Vésperas também foram marcadas pela homenagem
aos mil anos de criação da Casa dos Camaldolenses e a morte de São Gregório Magno.
Abaixo
publicamos a íntegra das alocuções de Bento XVI e do Arcebispo de Cantuária, Dr. Rowan
Williams.
Alocução Bento XVI
Para mim é uma imensa alegria estar
aqui na Basílica de São Gregório, na Colina do Celio, para a solene celebração das
Vésperas em memória do trânsito de São Gregório Magno. Com vocês, caros irmãos e irmãs
da Família Camaldolense, dou graças a Deus pelos mil anos de Fundação do Sagrado Eremitério
dos Camaldolenses por parte de São Romualdo. Fico muito contente com a presença, nesta
celebração especial, do Doutor Rowan Williams, Arcebispo de Cantuária. Ao senhor,
caro irmão em Cristo, e a cada um de vocês, caros Monges e Monjas, e a todos aqui
presentes faço uma cordial saudação.
Escutamos dois trechos de São Paulo. O
primeiro, tirado da Segunda Carta aos Coríntios, está em sintonia com o tempo litúrgico
que vivemos: a Quaresma. Isso, de fato, contém a exortação do Apóstolo que aproveita
o momento favorável para acolher a graça de Deus. Esse momento é naturalmente aquele
em que Jesus Cristo veio nos revelar e doar o amor de Deus, com a sua Encarnação,
Paixão, Morte e Ressurreição. O “dia da salvação” é aquela realidade que São Paulo
chama também de “plenitude dos tempos”, o momento no qual Deus, ao encarnar-se, entra
de modo singular no tempo e o preenche com a sua graça.
A nós cabe acolher
esta dádiva que é o próprio Jesus: sua Pessoa, sua Palavra, seu Espírito Santo. Além
disso, na Primeira Leitura que ouvimos, São Paulo fala também dele mesmo e de seu
apostolado: de como ele se esforçou para ser fiel a Deus no seu ministério, para que
isso fosse realmente eficaz e não se tornasse, ao invés, obstáculo para a fé. Estas
palavras nos fazem pensar em São Gregório Magno, no luminoso testemunho que deu ao
povo de Roma e à Igreja inteira ao realizar um serviço irrepreensível e cheio de zelo
pelo Evangelho. Na realidade é possível aplicar a Gregório aquilo que Paulo escreveu
sobre si: a graça de Deus nele não foi em vão. É este, na realidade, o segredo para
a vida de cada um de nós: acolher a graça de Deus e consentir de todo coração à ação
Dele. Este também é o segredo da alegria verdadeira e da paz profunda.
Por
outro lado, a Segunda Leitura foi tirada da Carta aos Colossenses. São palavras –
sempre tão tocantes para as inspirações espirituais e pastorais dos Colossenses –
que o Apóstolo dirige aos membros daquela comunidade para formá-los segundo o Evangelho,
para que qualquer coisa que fizessem seja “em palavra e obras, tudo venha em nome
do Senhor Jesus”. “Vocês são perfeitos”, havia dito o Mestre aos seus discípulos;
e então o Apóstolo exorta a viver de acordo com esta alta meta da vida cristã que
é a santidade.
Pode fazer porque os irmãos a quem se dirige são “escolhidos
por Deus, santos e amados”. Também nisso, na base de tudo, existe a graça de Deus,
o dom do chamado, o mistério do encontro com Jesus vivo. Mas esta graça pede a resposta
dos batizados: requer o compromisso de revestir-se dos sentimentos de Cristo: ternura,
bondade, humildade, mansidão, paciência, perdão recíproco e, sobretudo, como síntese
e coroamento, ágape, o amor que Deus nos doou por meio de Jesus e que o Espírito Santo
derramou em nossos corações. E para se revestir de Cristo é preciso que sua Palavra
viva entre nós e em nós com toda a sua riqueza, e em abundância. Em um clima de constante
agradecimento, a comunidade cristã se nutre da Palavra e faz subir até Deus, como
canto de louvor, a Palavra que Ele mesmo nos doou. E cada ação, cada gesto, cada serviço,
é realizado dentro desta relação profunda com Deus, no movimento interior do amor
na Trindade que desce em direção a nós e sobe em direção a Deus, movimento que na
celebração do Sacrifício eucarístico encontra sua forma mais alta.
Esta Palavra
ilumina também estas felizes circunstâncias nas quais estamos reunidos hoje, em nome
de São Gregório Magno. Graças a fidelidade e a benevolência do Senhor, a Congregação
dos Monges Camaldolenses da Ordem de São Bento pode percorrer esse milênio de história,
nutrindo-se quotidianamente da Palavra de Deus e da Eucaristia, assim como havia ensinado
o seu fundador São Romualdo, de acordo com o “triplex bonum” da solidão, da vida em
comunidade e da evangelização. Figuras exemplares de homens e mulheres de Deus, como
São Pedro Damião, Graziano – autor do Decretum – São Bruno de Querfurt e os Cinco
Irmãos Mártires, Rodolfo I e II, a Beata Gherardesca, a Beata Joana de Bagno e o Beato
Paulo Justiniano; homens de ciências e de arte como Frei Mauro o Cosmógrafo, Lourenço
Monje, Ambrósio Traversari, Pedro Delfino e Guido Grandi; ilustres historiadores como
os Analistas Camaldolenses João Benedito Mittarelli e Anselmo Costadoni; zelosos Pastores
da Igreja, entre os quais destaca-se o Papa Gregório XVI, mostraram os horizontes
e a grande fecundidade da tradição camaldolense.
Cada fase da longa história
dos Camaldolenses conheceu testemunhos fiéis do Evangelho, não somente no silêncio
do ocultamento e da solidão e na vida comunitária compartilhada com os Irmãos, mas
também no serviço humilde e generoso a todos.
Particularmente fecundo foi
o acolhimento oferecido nas hospedarias camaldolenses. Nos tempos do humanismo florentino
os muros dos Camaldolenses acolheram as famosas disputationes, as quais participavam
grandes humanistas como Marcílio Ficino e Cristóvão Landino; nos dramáticos anos da
Segunda Guerra Mundial, os mesmos mosteiros propiciaram o nascimento do famoso “Código
dos Camaldolenses”, uma das fontes mais significativas da Constituição da Republica
Italiana. Não foram menos fecundos os anos do Concilio Vaticano II, durante os quais
foram recebidas entre os Camaldolenses personalidades de grande valor, que enriqueceram
a Congregação e a Igreja e promoveram novos impulsos e colonatos nos Estados Unidos
da América, na Tanzânia, na Índia e no Brasil. Em tudo isso, era garantia de fecundidade
o apoio dos monges e monjas que acompanhavam as novas fundações com oração constante,
vivida no profundo de sua “reclusão”, muitas vezes chegando ao heroísmo.
Em
17 de setembro de 1993, o Beato Papa João Paulo II, ao encontrar os monges no Sagrado
Eremitério dos Camaldolenses, comentava o tema de seu iminente Capítulo Geral, “Escolher
a esperança, escolher o futuro”, com estas palavras: “Escolher a esperança e o futuro
significa, em última análise, escolher Deus… Significa escolher Cristo, esperança
de cada homem”. E acrescentou: “Isso acontece, em particular, com aquela forma de
vida que Deus suscitou na Igreja inspirando São Romualdo a fundar a Família beneditina
dos Camaldolenses, com a característica complementar de Eremitério e Monastério, vida
solitária e vida cenobítica entre eles coordenada”. O meu Beato Predecessor destacou
ainda que “escolher Deus quer dizer também cultivar humildemente e pacientemente –
aceitando os tempos de Deus – o diálogo ecumênico e o diálogo interreligioso”, sempre
a partir da fidelidade ao carisma originário recebido por São Romualdo e transmitido
por meio de uma tradição pluriforme e milenar.
Encorajados pela visita e pelas
palavras do Sucessor de Pedro, vocês, monges e monjas camaldolenses, prosseguiram
o seu caminho procurando sempre o justo equilíbrio entre o espírito eremítico e aquele
cenobítico, entre a exigência de vocês se dedicarem inteiramente a Deus na solidão
e aquela de vocês se sustentarem na oração comum e aquelas de acolher os irmãos para
que possam chegar às fontes da vida espiritual e julgar os acontecimentos do mundo
com a consciência verdadeiramente evangélica.
Assim vocês procuram obter aquela
perfeita caridade que São Gregório Magno considerava ponto de chegada de cada manifestação
da fé, compromisso que encontra confirmação no lema do brasão de vocês: “Ego Vobis,
Vos Mihi”, síntese da fórmula da aliança entre Deus e o seu povo, e fonte da eterna
vitalidade do seu carisma.
O Mosteiro de São Gregório na Colina do Celio é
o contexto romano no qual celebramos o milênio dos Camaldolenses junto com Sua Graça,
o Arcebispo de Cantuária que, junto conosco, reconhece este Mosteiro como lugar de
nascimento do início do Cristianismo nas Terras britânicas. A celebração de hoje caracteriza-se
por um caráter ecumênico profundo que, como sabemos, já faz parte do espírito camaldolense
contemporâneo. Este Mosteiro camaldolense Romano desenvolveu com Cantuária e com a
Comunhão Anglicana, especialmente depois do Concílio Vaticano II, laços que hoje são
tradicionais. Pela terceira vez hoje, o Bispo de Roma se encontrou com o Arcebispo
de Cantuária, na casa de São Gregório Magno. E com razão, porque precisamente a partir
deste Mosteiro, o Papa Gregório escolheu Agostinho e seus quarenta monges para levar
o Evangelho para os anglos, pouco mais de mil e quatrocentos anos atrás. A presença
constante de monges neste lugar, e por tanto tempo, já é em si testemunho da fidelidade
de Deus à sua Igreja, que somos felizes em anunciar para o mundo inteiro. O sinal
de que juntos vamos colocar na frente do altar, onde São Gregório celebrava o sacrifício
eucarístico, nós esperamos que permaneça como uma lembrança não só do nosso encontro
fraterno, mas como um estímulo para todos os fiéis católicos e anglicanos, que, visitando
os gloriosos túmulos dos santos Apóstolos e Mártires, em Roma, renovem o compromisso
de sempre rezar e trabalhar pela unidade, para viver plenamente de acordo com o "ut
unum sint" de Jesus ao Pai.
Este desejo profundo, que temos a alegria de dividir,
confiamos à intercessão celeste de São Gregório Magno e de São Romualdo. Amém.
Alocução
Dr. Rowan Williams
É um privilégio estar aqui, onde meus predecessores
estiveram em 1989 e 1996, e oferecer mais uma vez, assim como recentemente fizemos
em Westminster (e Assis), o serviço de louvar o Único Senhor em cujo nome fomos batizados;
o Único Senhor que por seu Espírito, é facilmente reconhecido em cada membro do seu
Corpo místico, como imagem do Cristo seu Filho, por meio da nossa vocação batismal
apesar das lutas e tentações.
São Gregório Magno tinha muito a dizer sobre
as tentações e lutas peculiares dos chamados ao trabalho na Igreja do Senhor. Ser
chamado para esse serviço é ser chamado para diferentes tipos de aflições – a angústia
da compaixão, como ele mesmo diz (Moralia 30.25.74), a consciência diária das urgentes
necessidades humanas, corporais e espirituais, e o tormento da lisonja, louvor e status
(ib. 26.34.62).
Este último é um tormento porque aqueles que são chamados
a este serviço conhecem tão bem a sua própria fraqueza interior e instabilidade. Mas
o conhecimento é um conhecimento salvador, que entre outras coisas nos ajuda a exercer
o serviço para os irmãos em dificuldade: e nos lembra que encontramos estabilidade,
“soliditas” apenas na vida do Corpo de Cristo, não em nossa própria realização (Homilias
sobre Ezequiel 2.5.22).
Estes são ideais profundamente enraizados na formação
de São Gregório como um monge. A humildade é a chave para todo ministério fiel, uma
humildade que busca constantemente ser imerso, envolvido na vida do Corpo de Cristo,
sem procurar um heroísmo individual ou santidade. E é essa humildade que o escritor
da primeira biografia de São Gregório, escrita na Inglaterra no início do século oitavo,
que encabeça a lista de sua santa virtude, associando-a com o profetismo que lhe permitiu
ver o que o povo inglês precisava e responder enviando o missionário Santo Agostinho.
Essa
associação de humildade e profecia é, de fato, uma daquelas que o próprio São Gregório
fez nos Diálogos. O verdadeiro pastor e líder na Igreja é aquele que, com a eterna
auto-oferta de Jesus Cristo através dos mistérios sacramentais da Igreja, é livre
para ver os outros como eles realmente são e suas necessidades. Isso pode ser “atormentador”,
porque essas necessidades, às vezes tão profundas e trágicas, também nos estimulam
a resolvê-las em nome e na força de Cristo.
Aqui se encontra o cerne da visão
monástica de São Gregório, visão esta que os irmãos e irmãs de Camaldoles – cujo
milênio hoje celebramos com alegria sincera – ainda procuram viver. Estar imerso na
vida sacramental do Corpo de Cristo requer imersão diária na contemplação; sem isso
não podemos ver um ao outro claramente; sem ela não podemos verdadeiramente reconhecer
e amar uns aos outros, e crescer juntos, em seu santo, católico e apostólico Corpo.
O equilíbrio na vida monástica de solidão, de trabalho comum e adoração, um equilíbrio
particularmente e cuidadosamente trabalhado na vida de Camaldoles, é algo que visa
permitir uma clara, até mesmo 'profética' visão do outro – vê-los, como sugere a tradição
cristã oriental representada por Evágrio à luz de sua essência espiritual autêntica,
e não como eles se relacionam com nossas paixões e preferências.
O trabalho
inseparável de ação e contemplação, de solidão e comunidade, tem a ver com a purificação
constante do nosso conhecimento um do outro, à luz de Deus a quem encontramos no silêncio
e no auto-esquecimento.
Santo Padre, queridos irmãos e irmãs, seria errado
sugerir que entramos em contemplação, a fim de ver uns aos outros mais claramente,
mas se alguém dissesse que a contemplação é um luxo na Igreja, algo imaterial para
a saúde do Corpo, deveríamos dizer que sem isso constantemente lidaríamos com sombras
e ficções, e não com a realidade do mundo em que vivemos.
A Igreja é chamada
a mostrar o mesmo espírito profético atribuído a São Gregório, a capacidade para ver
onde a verdade é necessária para responder ao chamado de Deus na pessoa dos mais necessitados.
Para fazer isso, é preciso discernimento, olhar para além dos preconceitos e clichês
que afetam até mesmo os fiéis em uma cultura tão apressada e superficial em muitos
de seus julgamentos. Ao hábito de discernimento pertence o hábito de reconhecer uns
aos outros como agentes da graça, compaixão e redenção de Cristo.
Tal hábito
só se desenvolverá se diariamente aprendermos a disciplina do silêncio e da paciência,
esperando que a verdade se releve para nós assim como lentamente colocamos de lado
as distorções da nossa visão causadas pelo egoísmo e pela ganância. Nos últimos anos,
vimos o desenvolvimento de um vasto sistema fantasioso e sofisticado, criado e sustentado
pela cobiça, um conjunto de hábitos econômicos em que as necessidades atuais parecem
estar quase totalmente obscurecidas. Estamos familiarizados com a cultura da publicidade
febril na qual somos persuadidos a desenvolver desejos irreais e desproporcionais.
Todos nós temos – leigos e pastores – a necessidade da disciplina que expurga nossa
visão e restaura em nós algum sentido da verdade, mesmo que possa produzir o "tormento"
de saber mais claramente o quanto as pessoas sofrem e quão pouco podemos fazer por
elas.
Santo Padre, "Certeza ainda imperfeita" foi como nossos predecessores
de abençoada memória, o Papa João Paulo II e o Arcebispo Robert, aqui em Roma em 1989,
caracterizaram a comunhão que as nossas Igrejas compartilham. "Certeza” por causa
da visão eclesial compartilhada à qual nossas duas comunhões estão comprometidas como
sendo o caráter da Igreja – uma visão da restauração de plena comunhão sacramental,
de uma vida eucarística que é totalmente visível, e, portanto, um testemunho de que
é totalmente credível, para que um mundo confuso e atormentado possa entrar na bem-vinda
e transformadora luz de Cristo. E “ainda imperfeita" por causa do limite de nossa
visão, um deficit no fundo de nossa esperança e paciência. Nosso reconhecimento do
único Corpo na vida comunitária de cada uma das Igrejas é instável e incompleto; sem
tal reconhecimento final nós não seremos completamente livres para compartilhar o
poder transformador do Evangelho na Igreja e no mundo.
"A verdade vos libertará",
diz Nosso Senhor. Nas disciplinas de contemplação e de silêncio, nós somos levados
para mais perto da verdade, e assim também mais perto da Cruz do Senhor. Reconhecemos
a nossa fraqueza e aprendemos algo do mistério de como Deus lida com nossa fraqueza
– não ignorando ou rejeitando-o – mas abraçando suas consequências na encarnação e
na paixão de Cristo. Seu auto-esvaziamento nos chama à nossa própria auto-negação
– um tema apropriado para a Quaresma. Aprendemos como configurar um lado das nossas
ocupadas agendas fato que permite que o Cristo viva em nós, para abrir nossos olhos
e nos capacitar para o serviço. Hoje, ao dar graças por um milênio de testemunho monástico,
celebramos os dons da visão clara e verdadeira que foram possibilitados através deste
testemunho. E rezamos para que todos aqueles chamados ao serviço na Igreja de Cristo
possam ter a graça da disciplina contemplativa e da clareza profética em seu próprio
testemunho, para que a glória da cruz de Cristo brilhe em nosso mundo, mesmo em meio
às nossas próprias fraquezas e fracassos.