2012-01-16 13:51:03

De Ouidah a Cuba, passando pelo México:
Bento XVI na rota dos afrodescendentes…


A “Porta do Não-retorno” e a “Porta do Perdão”. Estão ali a poucos metros de distância uma da outra, entre a praia e a cidadezinha de Ouidah, que viu partir milhões de africanos acorrentados e a chegada do Evangelho, levado pelos missionários. Estão ali a recordar o dever de “denunciar e de combater todas as formas de escravatura” – disse Bento XVI, que escolheu, em Novembro passado, precisamente Ouidah, com toda a sua carga simbólica de sofrimento e de esperança, para entregar aos bispos africanos, na Basílica da Imaculada Conceição de Maria, a exortação apostólica “Africae Munus”, sublinhando que “A Igreja em África é chamada a promover a paz e a justiça” no espírito de reconciliação que nos vem de Deus.

O Papa estava ainda no Benin que já era anunciada a sua viagem, em Março próximo, ao México e a Cuba, dois dos pontos de chegada daqueles milhões de africanos passados pela “Porta do Não-retorno”. Dois países onde se encontra hoje uma parte daqueles cerca de 300 milhões de afrodescendentes dispersos pelo mundo, sobretudo nas Américas e Caraíbas. A eles as Nações Unidas dedicaram o ano 2011. Objectivo: “reforçar as acções nacionais e a cooperação regional e internacional em benefício das pessoas de descendência africana”, a fim de que possam gozar de todos os direitos humanos, possam participar e integrar todos os âmbitos da vida social e seja promovido um “maior conhecimento e respeito da sua herança cultural”.

Os estigmas deixados pela escravatura e o tráfico transatlântico estão, com efeito, ainda longe de desaparecer completamente e o racismo e a discriminação que deles derivam continuam a condicionar a vida das pessoas de descendência africana onde quer que estejam. “A comunidade internacional não pode aceitar que comunidades inteiras sejam marginalizadas por causa da cor da pele”, frisava Ban Ki-Moon, solicitando projectos e programas de actividade orientados a concretizar os objectivos do Ano Internacional dos Afro-descendentes. E respostas neste sentido não faltaram. O primeiro a dar exemplo foi a própria ONU com o projecto de um imponente monumento na entrada da sua sede, em Nova Iorque, em memória das vítimas daquele tráfico criminal através dos Oceanos (definido por João Paulo II “holocausto esquecido” e pelo qual pediu perdão por parte da Igreja, na Ilha de Gorée, no Senegal, em 1992). Depois, de Angola ao Brasil, do Gabão ao Peru, seminários, encontros culturais, estudos, cimeiras, publicações, medidas jurídicas ou um maior esforço de aplicação das já existentes... procuraram chamar a atenção para as injustiças e desigualdades que tornam difícil a integração e a subida na escala social dos afro-descendentes. No entanto, eles deram e continuam a dar um contributo não só económico como também humano e cultural ao mundo inteiro. Basta pensar nas línguas crioulas, nas diversas expressividades religiosas, no jazz ou no tango que fazem hoje divertir muita gente, inconsciente da sua origem nas plantações do “novo mundo”, onde representaram para o africano escravizado uma forma de resistência ao aniquilamento físico, cultural e espiritual.

Reconhecer todos os obstáculos ao desabrochamento social do afrodescendente e enfrentá-los seriamente é, não só um dever moral de todos, mas também um grande contributo à paz, à justiça e à reconciliação a nível mundial. Por seu lado, a África terá de fazer o máximo para atingir um desenvolvimento integral, por forma a ter um reflexo positivo sobre os seus descendentes no resto do mundo, que a União Africana optou por definir “sexta região”, com o intento de colher a grande energia representada pela diáspora para a construção da Grande África.

A Igreja está plenamente mergulhada neste processo. “Africae Munus”, fruto da reflexão dos bispos sobre o papel da Igreja na promoção da paz, justiça e reconciliação no Continente, é um exemplo emblemático disto. É também um apelo a toda a África a empenhar-se, a fazer bom uso das energias positivas de que é rica e a torná-las úteis ao resto do mundo: “África, Boa Nova para a Igreja, torna-te nisto mesmo para o mundo inteiro” - exortou o Papa no Benin.

Bento XVI vai ao México para celebrar os duzentos anos da independência da maior parte dos países latino-americanos. Mas, muito antes desse feliz evento da independência, foram os escravos levados do então Reino do Congo que, já no século XVII/XVIII, tentaram uma ruptura com a Espanha, procurando, em vão, proclamar um reino africano em terras mexicanas. Maioritários no Exército, então formado essencialmente de escravos, a presença africana no México foi, todavia, diluindo-se. Hoje seria talvez necessário um estudo do DNA (aliás, já na forja) para encontrar na sinais dessa presença na população. O mesmo não se pode dizer de Cuba, onde a presença e o contributo cultural dos afro-descendentes é visível. Segundo uma legenda um dos seus ascendentes estaria mesmo entre aqueles que avistaram no mar Nossa Senhora da Caridade do Cobre, cujo jubileu leva o Papa àquela importante ilha caraíbica. Aliás, foi precisamente em El Cobre que se verificaram já no século XVI as primeiras revoltas de negros em Cuba. Na época da conquista da África e do tráfico negreiro, a Igreja, impotente perante a força do mercantilismo deu, todavia, um sinal positivo, pedindo que os escravos fossem baptizados, como que a recordar que eram pessoas e não “coisas”, como os classificou juridicamente o rei da França, Luís XIV, promulgando em 1685 o tristemente famoso “Código Negro”.

O Papa tem a peito “o caminho de integração” da América Latina e “do seu novo protagonismo emergente no concerto mundial”, assim como a procura duma sã liberdade à qual anelam aqueles povos, liberdade que desde os primórdios do tráfico negreiro manteve viva a chama da esperança no ânimo daqueles escravos arrancados com violência à Mãe África, Berço da Humanidade.

Que esta integração e este novo protagonismo não se faça à revelia dos afrodescendentes e que a bênção que o Papa vai levar a toda a América Latina se estenda também sobre eles. Que este apoio na óptica da justiça e da paz para todos ajude a percorrer até ao fundo as pistas traçadas pelo Ano Internacional dos Afrodescendentes e pelo “Grupo de Trabalho de Peritos sobre Pessoas de Ascendência Africana” criada em 2001. Segundo este Grupo de Trabalho criado na sequencia da Conferência de Durban sobre o racismo, os maiores desafios que os afrodescendentes enfrentam dizem respeito à sua representação social e ao tratamento, muitas vezes iníqua, nas instituições administrativas, de justiça, de educação, de saúde, de habitação, etc. Instituições essas que se tornam assim naquilo que a Doutrina Social da Igreja definiria “estruturas de pecado” . Que a visita do Papa contribua para as tornar mais humanas.

Tudo somado, o balanço do Ano Internacional dos Afro-descendentes foi positivo. Alguns peritos vêem, por exemplo, na nomeação da afrodescendente, Susana Baca, a Ministra da Cultura no Peru, precisamente em 2011, uma expressão positiva dos objectivos pré-fixados por Ban Ki-Moon com a proclamação do Ano Internacional dos Afrodescendentes.

O pontapé de saída está, portanto, dado. Esperamos que o jogo continue e que tenha sobre si mais reflectores do que teve o Ano 2011; um ano, no entanto, rico em eventos e reflexões sobre pessoas de ascendência africana. Um sinal positivo neste sentido vem, talvez, do facto de o Brasil ter prometido reunir os frutos dessas reflexões e publicar diversos livros no âmbito da “Colecção Saiba Mais”, destinado a satisfazer a demanda de material didáctico na área da cultura afro-brasileira.

Outro sinal positivo de continuidade desse esforço a favor do respeito dos direitos dos afrodescendente e da sua herança cultural pode ser a importante reunião programada para Novembro próximo, nos Estados Unidos, sobre os objectivos do desenvolvimento do milénio e os afrodescendentes.

Que Nossa senhora de Guadalupe, Padroeira da América Latina, olhe para tudo isso.

Maria Dulce Araújo Évora – Programa Português (África)








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