Manifestando-se como menino, Deus revela-nos a sua humildade, como Francisco de Assis
bem entendeu: Papa na noite de Natal
(24/12/2011) Deus manifestou-se como menino. Assim se contrapõe a toda a violência
e traz uma mensagem de paz, neste tempo continuamente ameaçado pela violência. Mas
não se trata de sentimentalismo: é na nova experiência da realidade da humanidade
de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava Jesus menino, porque
neste ser menino tornou-se-lha clara a humildade de Deus. Estas algumas das considerações
propostas por Bento XVI na homilia da Missa da noite de Natal, celebrada às 22 horas
na basílica de São Pedro. Eis o texto integral:
“Amados irmãos e irmãs! A
leitura que ouvimos, tirada da Carta do Apóstolo São Paulo a Tito, começa solenemente
com a palavra «apparuit», que encontramos de novo na leitura da Missa da Aurora: «apparuit
– manifestou-se». Esta é uma palavra programática, escolhida pela Igreja para exprimir,
resumidamente, a essência do Natal. Antes, os homens tinham falado e criado imagens
humanas de Deus, das mais variadas formas; o próprio Deus falara de diversos modos
aos homens (cf. Heb 1, 1: leitura da Missa do Dia). Agora, porém, aconteceu algo mais:
Ele manifestou-Se, mostrou-Se, saiu da luz inacessível em que habita. Ele, em pessoa,
veio para o meio de nós. Na Igreja antiga, esta era a grande alegria do Natal: Deus
manifestou-Se. Já não é apenas uma ideia, nem algo que se há-de intuir a partir das
palavras. Ele «manifestou-Se». Mas agora perguntamo-nos: Como Se manifestou?
Ele verdadeiramente quem é? A este respeito, diz a leitura da Missa da Aurora: «Manifestaram-se
a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens» (Tt 3, 4). Para os homens do tempo
pré-cristão – que, vendo os horrores e as contradições do mundo, temiam que o próprio
Deus não fosse totalmente bom, mas pudesse, sem dúvida, ser também cruel e arbitrário
–, esta era uma verdadeira «epifania», a grande luz que se nos manifestou: Deus é
pura bondade. Ainda hoje há pessoas que, não conseguindo reconhecer a Deus na fé,
se interrogam se a Força última que segura e sustenta o mundo seja verdadeiramente
boa, ou então se o mal não seja tão poderoso e primordial como o bem e a beleza que,
por breves instantes luminosos, se nos deparam no nosso cosmos. «Manifestaram-se a
bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens»: eis a certeza nova e consoladora que
nos é dada no Natal.
Na primeira das três leituras desta Missa de Natal, a
liturgia cita um texto tirado do livro do Profeta Isaías, que descreve, de forma ainda
mais concreta, a epifania que se verificou no Natal: «Um Menino nasceu para nós, um
filho nos foi concedido. Tem o poder sobre os ombros, e dão-lhe o seguinte nome: “Conselheiro
admirável! Deus valoroso! Pai para sempre! Príncipe da Paz!” O poder será engrandecido
numa paz sem fim» (Is 9, 5-6). Não sabemos se o profeta, ao falar assim, tenha em
mente um menino concreto nascido no seu período histórico. Mas isso parece ser impossível.
Trata-se do único texto no Antigo Testamento, onde de um menino, de um ser humano,
se diz: o seu nome será Deus valoroso, Pai para sempre. Estamos perante uma visão
que se estende muito para além daquele momento histórico apontando para algo misterioso,
colocado no futuro. Um menino, em toda a sua fragilidade, é Deus valoroso; um menino,
em toda a sua indigência e dependência, é Pai para sempre. E isto «numa paz sem fim».
Antes, o profeta falara duma espécie de «grande luz» e, a propósito da paz dimanada
d’Ele, afirmara que o bastão do opressor, o calçado ruidoso da guerra, toda a veste
manchada de sangue seriam lançados ao fogo (cf. Is 9, 1.3-4). Deus manifestou-Se…
como menino. É precisamente assim que Ele Se contrapõe a toda a violência e traz uma
mensagem de paz. Neste tempo, em que o mundo está continuamente ameaçado pela violência
em tantos lugares e de muitos modos, em que não cessam de reaparecer bastões do opressor
e vestes manchadas de sangue, clamamos ao Senhor: Vós, o Deus forte, manifestastes-Vos
como menino e mostrastes-Vos a nós como Aquele que nos ama e por meio de quem o amor
há-de triunfar. Fizestes-nos compreender que, unidos convosco, devemos ser artífices
de paz. Amamos o vosso ser menino, a vossa não-violência, mas sofremos pelo facto
de perdurar no mundo a violência, levando-nos a rezar assim: Demonstrai a vossa força,
ó Deus. Fazei que, neste nosso tempo e neste nosso mundo, sejam queimados os bastões
do opressor, as vestes manchadas de sangue e o calçado ruidoso da guerra, de tal modo
que a vossa paz triunfe neste nosso mundo.
Natal é epifania: a manifestação
de Deus e da sua grande luz num menino que nasceu para nós. Nascido no estábulo de
Belém, não nos palácios do rei. Em 1223, quando Francisco de Assis celebrou em Greccio
o Natal com um boi, um jumento e uma manjedoura cheia de feno, tornou-se visível uma
nova dimensão do mistério do Natal. Francisco de Assis designou o Natal como «a festa
das festas» – mais do que todas as outras solenidades – e celebrou-a com «solicitude
inefável» (2 Celano, 199: Fontes Franciscanas, 787). Beijava, com grande devoção,
as imagens do menino e balbuciava-lhes palavras de ternura como se faz com os meninos
– refere Tomás de Celano (ibidem). Para a Igreja antiga, a festa das festas era
a Páscoa: na ressurreição, Cristo arrombara as portas da morte, e assim mudou radicalmente
o mundo: criara para o homem um lugar no próprio Deus. Pois bem! Francisco não mudou,
nem quis mudar, esta hierarquia objectiva das festas, a estrutura interior da fé com
o seu centro no mistério pascal. Mas, graças a Francisco e ao seu modo de crer, aconteceu
algo de novo: ele descobriu, numa profundidade totalmente nova, a humanidade de Jesus.
Este facto de Deus ser homem resultou-lhe evidente ao máximo, no momento em que o
Filho de Deus, nascido da Virgem Maria, foi envolvido em panos e colocado numa manjedoura.
A ressurreição pressupõe a encarnação. O Filho de Deus visto como menino, como
verdadeiro filho de homem: isto tocou profundamente o coração do Santo de Assis, transformando
a fé em amor. «Manifestaram-se a bondade de Deus e o seu amor pelos homens»: esta
frase de São Paulo adquiria assim uma profundidade totalmente nova. No menino do estábulo
de Belém, pode-se, por assim dizer, tocar Deus e acarinhá-Lo. E o Ano Litúrgico ganhou
assim um segundo centro numa festa que é, antes de mais nada, uma festa do coração.
Tudo
isto não tem nada de sentimentalismo. É precisamente na nova experiência da realidade
da humanidade de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava Jesus
menino, porque, neste ser menino, tornou-se-lhe clara a humildade de Deus. Deus tornou-Se
pobre. O seu Filho nasceu na pobreza do estábulo. No menino Jesus, Deus fez-Se dependente,
necessitado do amor de pessoas humanas, reduzido à condição de pedir o seu, o nosso,
amor. Hoje, o Natal tornou-se uma festa dos negócios, cujo fulgor ofuscante esconde
o mistério da humildade de Deus, que nos convida à humildade e à simplicidade. Peçamos
ao Senhor que nos ajude a alongar o olhar para além das fachadas lampejantes deste
tempo a fim de podermos encontrar o menino no estábulo de Belém e, assim, descobrimos
a autêntica alegria e a verdadeira luz. Francisco fazia celebrar a santíssima
Eucaristia, sobre a manjedoura que estava colocada entre o boi e o jumento (cf. 1
Celano, 85: Fontes, 469). Depois, sobre esta manjedoura, construiu-se um altar para
que, onde outrora os animais comeram o feno, os homens pudessem agora receber, para
a salvação da alma e do corpo, a carne do Cordeiro imaculado – Jesus Cristo –, como
narra Celano (cf. 1 Celano, 87: Fontes, 471). Na Noite santa de Greccio, Francisco
– como diácono que era – cantara, pessoalmente e com voz sonora, o Evangelho do Natal.
E toda a celebração parecia uma exultação contínua de alegria, graças aos magníficos
cânticos natalícios dos Frades (cf. 1 Celano, 85 e 86: Fontes, 469 e 470). Era precisamente
o encontro com a humildade de Deus que se transformava em júbilo: a sua bondade gera
a verdadeira festa.
Hoje, quem entra na igreja da Natividade de Jesus em Belém
dá-se conta de que o portal de outrora com cinco metros e meio de altura, por onde
entravam no edifício os imperadores e os califas, foi em grande parte tapado, tendo
ficado apenas uma entrada com metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito
com a intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assaltos, mas sobretudo
para evitar que se entrasse a cavalo na casa de Deus. Quem deseja entrar no lugar
do nascimento de Jesus deve inclinar-se. Parece-me que nisto se encerra uma verdade
mais profunda, pela qual nos queremos deixar tocar nesta noite santa: se quisermos
encontrar Deus manifestado como menino, então devemos descer do cavalo da nossa razão
«iluminada». Devemos depor as nossas falsas certezas, a nossa soberba intelectual,
que nos impede de perceber a proximidade de Deus. Devemos seguir o caminho interior
de São Francisco: o caminho rumo àquela extrema simplicidade exterior e interior que
torna o coração capaz de ver. Devemos inclinar-nos, caminhar espiritualmente
por assim dizer a pé, para podermos entrar pelo portal da fé e encontrar o Deus que
é diverso dos nossos preconceitos e das nossas opiniões: o Deus que Se esconde na
humildade dum menino acabado de nascer. Celebremos assim a liturgia desta Noite santa,
renunciando a fixarmo-nos no que é material, mensurável e palpável. Deixemo-nos fazer
simples por aquele Deus que Se manifesta ao coração que se tornou simples. E nesta
hora rezemos também e sobretudo por todos aqueles que são obrigados a viver o Natal
na pobreza, no sofrimento, na condição de emigrante, pedindo que se lhes manifeste
a bondade de Deus no seu esplendor, que nos toque a todos, a eles e a nós, aquela
bondade que Deus quis, com o nascimento de seu Filho no estábulo, trazer ao mundo.
Amen.”