Bispos lançam Nota Pastoral em vista à crise portuguesa
Fátima (RV) - Os Bispos de Portugal, preocupados com a conjuntura portuguesa,
lançaram nesta segunda-feira, uma Nota Pastoral. Dividida em sete partes que expressam
a inquietação que aflige não só o Episcopado, mas todos os portugueses, a íntegra
da Nota pode ser consultada abaixo.
Crise, discernimento e compromisso
Nota
Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa
1.
A sociedade portuguesa vive uma conjuntura difícil, que afeta a generalidade dos
seus membros e particularmente aqueles muitos que se viram privados de trabalho e
de condições económicas suficientes para o bem-estar próprio e dos seus.
Fruto
de causas internas e externas, que sucessivas análises têm caracterizado, a presente
“crise” pode e deve ser ocasião de discernimento crítico sobre o que nos trouxe aqui
e de compromissos concretos sobre o modo de coletivamente nos melhorarmos.
Têm
sido assacadas responsabilidades ao excessivo endividamento público e particular,
ao aumento de despesa estatal e à diminuição geral das poupanças, bem como a um crescimento
económico insuficiente, pouco sólido e socialmente desigual. Os financiamentos externos
diminuem e exigem juros e contrapartidas dificilmente suportáveis. A economia e o
investimento sofrem essas restrições do financiamento e subsistem debilidades estruturais
nos diversos setores, da agricultura à indústria e aos serviços. O desemprego reduz
drasticamente as condições de vida de muitas famílias e particulares, a classe média
enfraquece e agudiza-se a desproporção dos rendimentos. A resposta social do Estado
é dificultada pela falta de meios financeiros, com reduções previsíveis e preocupantes
em diversos campos da segurança social. A ajuda internacional entretanto pedida condiciona
a decisão interna e impõe restrições e prazos de árduo cumprimento.
Quer a
nível estatal, quer no âmbito europeu em que nos incluímos, tentam-se respostas que,
debatidas na opinião pública, na concertação social e nos competentes órgãos democráticos,
visam ultrapassar estas e outras dificuldades. Mas nada se conseguirá de consistente
e duradouro sem a consciencialização do que está realmente em causa e do que necessariamente
terá de evoluir ou mesmo mudar na sociedade em geral e nas opções concretas de cada
um.
2. Tal evolução ou mudança liga-se à consciência e à responsabilidade
dos cidadãos que somos, com os valores que reconhecermos e os comportamentos em que
os concretizarmos. É nesse sentido que – além de tudo o que as instituições católicas
vão fazendo, por si ou em colaboração com outras, públicas ou particulares, para minorar
os efeitos negativos da presente crise – partilhamos agora com os nossos concidadãos
aqueles princípios sociais que fundamentalmente assumimos.
Como Igreja Católica
em Portugal não nos cabem as decisões autónomas que competem ao Estado democrático,
mas cabe-nos a partilha de convicções e propósitos que todos os cidadãos devem aos
seus concidadãos, no corpo vivo que é a nação de nós todos. Dando a Deus o que é de
Deus, não nos eximimos a dar a César o que é de César, ou seja, a nossa concidadania
franca e disponível. Citemos o Compêndio da Doutrina Social da Igreja: “Os princípios
permanentes da Doutrina Social da Igreja constituem os verdadeiros e próprios gonzos
do ensinamento social católico: trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana
[…], do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade” (nº 160).
A Doutrina
Social da Igreja sistematiza, de há mais de um século para cá, muitas reflexões e
posicionamentos sobre vários campos da sociedade e da economia, coincidindo em boa
parte com o que a racionalidade humana em geral tem concluído e consignado sobre esses
tópicos nas mais solenes declarações internacionais. Desta significativa coincidência
podemos nós, portugueses e outros, tirar a indispensável iluminação e o maior estímulo
para quanto o momento exige e não dispensa. Como “princípios” que são, devem estar
sempre presentes em tudo o que se decida de concreto, a nível público ou particular,
para construirmos um futuro verdadeiramente humano e não trocarmos autênticas medidas
por meros expedientes.
3. A dignidade – e dignificação prática –
de cada pessoa humana é o princípio e também o fim duma sociedade propriamente dita.
“Sociedade”, isto é, comunhão de destino e companhia entre todos, que só em conjunto
se podem realizar, sem dispensar ou ultrapassar ninguém e com particular atenção aos
mais fracos e vulneráveis. É em função deles – como de todos – e da sua irredutível
dignidade que a sociedade se constitui e aperfeiçoa, assim mesmo se qualificando. Na
presente conjuntura nacional, é em torno deste primeiro princípio que se devem definir
e avaliar as políticas concretas, por mais exigentes que sejam. Legisladores e governantes,
empresários e gestores, famílias e cidadãos, todos devemos ter em primeiríssima conta
a dignidade das pessoas que somos e os outros igualmente são, sobretudo os que veem
tal dignidade contrariada na prática ou obviada no futuro. Insistamos: A qualidade
das decisões e das políticas afere-se prioritariamente com este critério.
4. O segundo princípio valoriza o bem comum, ou seja, o conjunto de condições
e meios de toda a ordem – materiais, sociais, culturais, espirituais… – que permitam
a realização plena de cada um dos membros da sociedade que justa e organicamente constituímos.
Como
o primeiro, também este princípio, sendo teoricamente luminoso, é praticamente exigente.
Na verdade, dá a cada um de nós, aos corpos sociais intermédios e ao Estado um objetivo
concreto e avaliável, nas áreas complementares da cidadania. Ano após ano, orçamento
após orçamento, programa após programa, trata-se de prever e avaliar a melhoria das
condições referidas, para a valorização própria e alheia: – Temos ou previsivelmente
teremos maiores possibilidades de viver física e psiquicamente bem, de constituir
e manter estavelmente as famílias e a renovação geracional, de acompanhar idosos e
doentes, de proporcionar escolaridade e formação permanente, de desenvolver a economia,
acrescentar o emprego e garantir a ecologia, de avançar cientifica e tecnologicamente,
de alargar a cultura e o espírito?
A soma acrescentada e até certo ponto verificável
destes e outros itens conexos dá-nos o bem comum autêntico, que procuramos no equilíbrio
geral dos seus fatores e na qualidade humana e humanizante das respetivas conquistas.
E se, na atual conjuntura, o bem comum português nos induz a consciência mais clara
do muito que lhe falta ou pode até recuar, também nos deve mobilizar para responder
prioritariamente àquilo que de modo algum pode esperar. É este o caso fundamental
do trabalho e do emprego, base indispensável de sobrevivência e dignificação humana;
a sua garantia é urgente, mesmo exigindo mais criatividade e solidariedade prática
para chegar a todos.
5. O terceiro princípio a ter em conta é o
da subsidiariedade. Refere‑se, antes de mais, à realidade social que constituímos,
enquanto seres essencialmente interdependentes. De facto, a nossa interdependência
pode e deve ser pedagogicamente considerada, estimulando a contribuição de cada um
para o todo social, nos diversos patamares da sociabilidade que nos define. Somos
pessoas entre pessoas, familiares com familiares, empresas com empresas, instituições
com instituições… Assim mesmo constituímos um todo politicamente organizado, que não
pode nem deve reter nos órgãos de topo a espontaneidade e a iniciativa social.
Bem
pelo contrário, os corpos superiores da sociedade devem ir em auxílio (subsidium)
e estímulo dos corpos intermédios, para que estes realizem por si tudo quanto já possam
ou inovem em benefício do conjunto. Do Estado – ou dos organismos internacionais –
a cada família e corpo intermédio, há uma escala social a respeitar sem iludir patamar
algum. E nem a escassez de recursos deve omitir tal subsidiariedade geral, pois isso
redundaria em desmotivação e desistência, exatamente o contrário do que o país requer
agora.
Não há mobilização democrática sem pedagogia subsidiária; não há dinamização
social sem respeito e estímulo pelo que cada corpo social intermédio pode e deve fazer.
Destaque-se em particular, pelas provas já dadas na presente conjuntura, a importância
dos apoios familiares e das instituições particulares de solidariedade social, tão
esclarecedoras do que uma sociedade pode resolver dinamicamente e tanto mais quanto
for respeitado e reforçado o princípio da subsidiariedade, do topo em relação às bases
do edifício social.
6. Ainda um quarto princípio se há de ter em
conta, intrinsecamente complementar do precedente, ou seja, o da solidariedade. Mais
uma vez, as convicções são fundamentais para garantir atitudes práticas consequentes,
oficiais ou particulares.
A solidariedade concretiza-se numa atitude permanente
e geral de partilha: o que alguns detêm em vez dos outros é o que precisamente têm
para os outros, pois toda a propriedade tem dimensão social. Nada obtemos inteiramente
sós, de nada fruímos legitimamente sós. Pode dizer-se que esta é uma lei geral da
vida, que agora se revela porventura mais clara e exigente. E não só no plano interpessoal,
mas também entre nações e continentes.
Solidariedade que não atropela o princípio
anterior da subsidiariedade, pois não confisca para o coletivo aquilo que particularmente
pode ser ganho e valorizado; mas lembra constantemente ao particular – individual
ou nacional que seja – que a criação é bem comum de todos e para todos e os ganhos
próprios só se fruem em pleno quando também se partilham.
Na encíclica Caritas
in Veritate, que há dois anos dedicou à presente situação internacional, o Papa Bento
XVI resume sugestivamente a relação entre os dois princípios, com muita aplicação
estatal ou particular: “O princípio da subsidiariedade há de ser mantido estritamente
ligado com o princípio da solidariedade e vice-versa, porque, se a subsidiariedade
sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem a subsidiariedade
decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado” (nº 58).
E, juntando
estes dois princípios com o do bem comum, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja
agrega assim vários passos do magistério: “O ensinamento social da Igreja exorta a
reconhecer a função social de qualquer forma de posse privada, com a clara referência
às imprescindíveis consequências do bem comum. O homem não deve jamais considerar
as coisas que legitimamente possui como exclusivamente suas, mas também como comuns,
neste sentido: que possam ser úteis não só a si, mas também aos outros” (nº 178).
7. Esta breve recordação e partilha de princípios quis apenas oferecer à sociedade
portuguesa um contributo teórico-prático para a reflexão que se impõe.
Fomos
atingidos por uma grave crise que, sendo económica e social, não deixa de ser cultural
e de convicções. Por isso mesmo, além da indispensável ação dos vários corpos sociais
e políticos, requer aprofundamento e até mudança no que a cada um mova como expectativa
ou ideal, para a vida própria e alheia. E, se o esquecimento dos princípios acima
enunciados acompanhou negativamente o nosso percurso recente, a sua recuperação mais
convicta dará maior definição e ânimo ao que temos de fazer agora, para um Portugal
de todos e para todos.
Significa isto a consciência reforçada de que somos
um todo nacional e como que um “eu” coletivo, em que nada se fará sem corresponsabilidade
forte, compromisso de pessoas e grupos e solidariedade prática, para salvaguardar
e acrescentar um bem verdadeiramente comum. É o Estado o primeiro órgão dinamizador
do bem comum, mas é a sociedade no seu todo que o deve vivificar constantemente. Neste
momento, os sacrifícios que nos são pedidos e as exigências que nos são apresentadas
são de todos para todos, sem dispensar ninguém.
Aproximando-se a celebração
do Natal de Jesus, desejamos:
– agradecer e felicitar as pessoas e instituições
que, no seu dia a dia ou em certas ocasiões, promovem ações de serviço aos mais necessitados;
–
urgir que se converta tudo o que é idolatria do lucro, ostentação e despesismo, em
estilos de vida sóbria, em que a partilha seja regra de vida e não uma exceção reservada
a generosos;
– pedir que o espírito de fraternidade, a que esta quadra especialmente
nos convida, tenha concretizações na ajuda a pessoas necessitadas ou a instituições
que as servem;
– recordar que os cristãos são aliados naturais dos débeis e
pobres e que estão ao seu lado como seus defensores, amigos e servidores, pois para
quem tem fé, ajudar os outros é servir Jesus Cristo e amar o próprio Deus.
Assim,
desejar «Boas Festas» será muito mais que uma frase da praxe social; será um propósito
de contribuir para que todos tenham vida e vida em abundância.