Família e reconciliação: mensagem pastoral dos bispos de Angola e São Tomé
(22/11/2011) INTRODUÇÃO 1. Na esteira do último Sínodo dos Bispos para a África,
a CEAST, no quadro da sua programação pastoral trienal, depois de ter reflectido ao
longo do ano de 2011 sobre a “Família e Matrimónio”, dedica este ano pastoral de 2012
à reflexão do tema: “Família e Reconciliação”. A família, igreja doméstica, célula
e base da sociedade, é também o lugar privilegiado da aprendizagem do perdão e da
reconciliação. O VI Encontro Mundial das Famílias, que teve lugar na cidade do México
em Janeiro de 2008, lembrou-nos a todos o papel das famílias cristãs e o seu dever
de educar e formar para os valores humanos e cristãos. Importa, pois, tudo fazer para
proteger a família, se queremos preservar a paz e a harmonia social. A Igreja,
fiel aos ensinamentos de Cristo, prega por toda a parte, oportuna e inoportunamente,
o evangelho do perdão e da reconciliação.
2. Família e Reconciliação caminham
juntas, pois, enquanto a família, derivada do matrimónio e fundada no amor, representa
a célula primária da Igreja e da sociedade; a reconciliação é uma das experiências
básicas da vida cristã e do amor de Deus, possibilidade permanente de acolher a graça
de Deus que permite a regeneração do homem e da mulher, criados à sua imagem e semelhança
(Gen. 1,26) fazendo com que o reconciliado reencontre a fonte de bênção (Mt 18,
15-20; Jo 20,19-23).
I – ALGUNS MALES DE QUE ENFERMA A FAMÍLIA
3.
As falsas ideologias, os longos anos de guerra fratricida e de violência, e a pobreza
económica extrema dilaceraram profundamente as famílias angolanas. As deslocações
forçadas, a falta de habitação condigna, a alimentação insuficiente, o desemprego,
o alcoolismo, o sistema de saúde deficitário, a violência doméstica nas suas mais
variadas formas, a fuga à paternidade, as relações extraconjugais, estáveis ou ocasionais,
causadoras de chantagens e rivalidades são alguns exemplos de males gerados por uma
concepção deturpada de família e agravados pela instabilidade provocada pela guerra.
Preocupa-nos sobremaneira o aumento de lares constituídos por gerações múltiplas
- avós, pais, filhos e netos - a partilharem espaços limitados, onde se cruzam conflitos
por interesses de espaços e de gerações.
4. A disseminação massiva de informação
através de diferentes meios de comunicação, principalmente da televisão e da internet,
a par das suas vantagens, também tem efeitos nocivos no seio familiar. Não poucas
vezes, a educação dos filhos, sobretudo nas cidades, é confiada às telenovelas, filmes
e programas inadequados para as crianças, longe da atenção e do controlo dos pais
e encarregados de educação, absorvidos como andam pela busca de subsistência, quando
não alienados pelo pretexto de uma falsa liberdade, o que acaba por deixar os filhos
entregues à sua sorte e expostos à violência, à pornografia, e a outros comportamentos
nocivos como o aborto, o desrespeito à autoridade paterna, namoros e casamentos precoces,
contravalores amplamente difundidos pela televisão e pela internet.
5. A
desestruturação social e familiar é visível na nossa sociedade. A relação intrafamiliar
ficou banalizada sobretudo na separação dos membros das famílias que são, para todos
os efeitos, a garantia de estabilidade dentro da mesma. Torna-se cada vez mais frequente
as obrigações laborais levarem os cônjuges a viver habitualmente a muitos quilómetros
de distância um do outro. A guerra foi um mal que afectou não apenas os chefes
de famílias, mas, também, todos os seus membros, ficando estes vulnerados até ao ponto
de perderem os valores elementares dentro da família, tais como o perdão, a harmonia
e o respeito dentro do lar. Deste modo, fica subvertida a ordem dos valores.
6.
Alguns contravalores da nossa cultura têm ressurgido com perigosa intensidade.
·
As acusações de feitiçaria, tanto contra as crianças como contra os velhos, têm levado
à destruição de muitas famílias, causando à exclusão, do seio familiar, destas franjas,
já por si necessitadas de carinho e aconchego, traumatizando-as para o resto das suas
vidas. A crença na feitiçaria tornou-se tão perniciosa que, até nas grandes cidades,
influencia a vida de não só de iletrados mas também de intelectuais, que nela colocam
toda a sua confiança.
Mais doloroso ainda é que determinados
grupos religiosos, na ânsia do lucro fácil, vão confundindo, em nome de Deus, a verdade
com o erro, proclamando-se como visionários do oculto. Mas como bem diz o profeta:
“Os ídolos só dão respostas vãs e os adivinhos têm visões mentirosas, fornecem sonhos
enganadores e dão consolações ilusórias. Por isso andam perdidos como ovelhas sem
pastor” (Zac 10, 2). · As exigências financeiras e materiais feitas nas chamadas
“cartas de pedidos” e “alambamentos”, excedem o simbolismo primário do dote, tornando-se,
em muitos casos, verdadeiros negócios de compra e venda, que fragilizam o papel e
a dignidade da mulher na família. · Algumas práticas que excluem a mulher
e os filhos da herança, por morte do marido e do pai, criam enormes injustiças, fragmentam
as famílias, empurrando muitas vezes a viúva e os filhos para situações de mendicidade. ·
A concepção errada de que a abundância de meios materiais legitima a constituição
de famílias poligâmicas acaba por se tornar uma fonte de conflitos e rivalidades.
7.
Por último, os modelos familiares dominantes em cargos públicos - sobretudo políticos
e económicos -, em muitos casos, não são exemplares e fazem com que muitos jovens
não encontrem referências a seguir, o que é deplorável.
II – A FAMÍLIA
AO SERVIÇO DA JUSTIÇA, DA RECONCILIAÇÃO E DA PAZ. 8. O Concilio Vaticano II,
na Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, afirma que “a família
- na qual se congregam as diferentes gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar
uma sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências
da vida social - constitui assim o fundamento da sociedade. E por esta razão, todos
aqueles que têm alguma influência nas comunidades e grupos sociais, devem contribuir
eficazmente para a promoção do matrimónio e da família” (GS 52).
Apesar dos
modelos de família sofrerem variações ao longo dos tempos e nos diversos contextos
culturais, ela constitui sempre uma base fundamental da sociedade, sendo chamada a
desempenhar um papel crucial na educação, desenvolvimento e socialização de cada pessoa
humana, que a qualidade da vida social acaba por reproduzir em grande parte. Como
ensinou o Beato Papa João Paulo II, de veneranda memória, “enquanto comunidade educativa,
a família deve ajudar o ser humano a discernir a própria vocação e a assumir o empenho
necessário para uma maior justiça, formando-o desde o início, para relações interpessoais,
ricas de justiça e de amor” (FC 2). Esta exigência passa inequivocamente pelo dever
de o pai e a mãe não serem apenas progenitores, mas também educadores (GE, 3).
Apesar
de este dever estar consagrado na legislação angolana, é com tristeza que assistimos
à atitude egoísta e cobarde de muitos pais que não contribuem para o sustento e a
educação dos filhos por si gerados, com consequências traumáticas no desenvolvimento
da sua personalidade. O Beato João Paulo II reconhecia que “se coloca assim a toda
a Igreja o dever de uma reflexão e de um empenho bastante profundo, para que a nova
cultura emergente seja intimamente evangelizada, sejam reconhecidos os verdadeiros
valores, sejam defendidos os direitos do homem e da mulher e seja promovida a justiça
também nas estruturas da sociedade” (FC 8).
9. Importa reconhecer que a
verdadeira Paz nasce da Justiça (Is. 32,17) e os índices de violência – física, psicológica,
sexual, económica, cultural, religiosa, etc - tanto na família como na sociedade,
são sinal manifesto de graves injustiças, que exigem reparação e um processo de reconciliação
onde a dignidade de cada pessoa seja reconhecida e respeitada.
10.
Como refere a Declaração Final da Segunda Assembleia Especial para a África do Sínodo
dos Bispos, realizada recentemente, “a Igreja em África, quer enquanto Família de
Deus, quer ao nível individual dos seus membros crentes, tem o dever de ser instrumento
de paz e de reconciliação, segundo o coração de Cristo, nossa paz e reconciliação»
(Nuntius 8); e, com as demais Igrejas em África, a Igreja em Angola está «consciente
de que muitas das nossas famílias vivem sob uma grande pressão. A pobreza torna frequentemente
os pais incapazes de cuidar dos seus filhos, com consequências desastrosas. Queremos
recordar aos governos e às autoridades civis que um país que destrói com as suas leis
as suas próprias famílias, hipoteca o futuro da própria nação. Muitas famílias pedem
apenas o suficiente para sobreviverem. E elas têm direito a viver» (Mensagem [Nuntius],
24).
11. Perante os enormes desafios que se colocam hoje
às famílias angolanas e às entidades civis e religiosas a quem é confiado o encargo
de as promover e proteger, mesmo reconhecendo a diversidade dos contextos e das nossas
comunidades eclesiais, ousamos apresentar algumas propostas concretas que, uma vez
postas em prática, vão ajudar as famílias angolanas, católicas ou não, a serem mais
sólidas, estáveis e felizes. Desta forma, vamos também contribuindo para a construção
de uma sociedade mais humana e por isso mais justa, próspera e pacífica, em suma,
mais conforme aos desígnios de Deus.
12. Por isso, dirigimos
o nosso apelo a vários actores que desempenham um papel fundamental na qualidade da
vida familiar. · Às Comunidades Cristãs pedimos o compromisso de: ü
promover uma evangelização integral que inclua, além da dimensão religiosa e espiritual,
a dimensão familiar, social, económica, cultural e política. ü intensificar os
serviços de escuta e aconselhamento familiar nas paróquias, como instâncias de reconciliação; ü
promover grupos e movimentos apostólicos que ajudam as famílias católicas a viver
as diferentes etapas por que vão passando num clima de entre-ajuda humana e espiritual; ü
promover nas Paróquias e Missões cursos de relações humanas e gestão de conflitos
com aplicações concretas à vida familiar; ü incluir nos cursos de preparação
do matrimónio temáticas que ajudem a aprofundar a beleza e a graça sacramental do
matrimónio e a perceber as dificuldades concretas da vida familiar, algumas formas
concretas de as prevenir e/ou superar, indicando também as entidades que poderão ajudar
os noivos a enfrentá-las; ü estimular as Comissões de Justiça e Paz para que
ajudem as pessoas a accionar os mecanismos legais que obrigam os progenitores a contribuir
para o sustento de todos os filhos que geraram; ü estimular as Paróquias e Missões
a criar creches e actividades de ocupação de tempos livres para ajudar as crianças,
adolescentes e jovens (que vão crescendo sem a presença de adultos) a interiorizar
regras, hábitos e a desenvolver as suas capacidades de forma positiva; ü tomar
iniciativas que ajudem a prevenir e permitam tratar a dependência do álcool e das
drogas, que afecta dramaticamente muitas famílias. ü acolher e apoiar as famílias
cujos membros estão infectados ou afectados pelo VIH.
· Às entidades
do Estado o empenho de: ü implementar politicas públicas de apoio às famílias:
habitação digna a custos acessíveis, acesso a creches e escolas para todos, políticas
que fomentem o emprego e a qualificação dos angolanos, valorizando o trabalho e o
descanso. ü promover a multiplicação de instituições que permitam a ocupação
construtiva dos tempos livres através de bibliotecas, incentivo de actividades literárias,
desportivas, recreativas e culturais. ü maior protecção social dos membros mais
vulneráveis que são abandonados ou rejeitados pelas suas famílias por razões culturais
ou económicas. ü tanto quanto possível, nas áreas a requalificar para construção,
as famílias cujas casas se prevêem demolir possam ser realojadas condignamente na
mesma zona de residência, evitando o seu desenraizamento e aliviando os seus gastos
com deslocações para a escola, o trabalho, etc. ü desenvolver políticas que
desincentivem o consumo excessivo de álcool, num país onde uma cerveja é mais barata
que uma garrafa de água. ü criar instituições competentes para tratar a dependência
do álcool e de outras drogas.
· Aos Meios de Comunicação Social solicitamos
encarecidamente uma participação mais activa na formação e educação das nossas famílias
para os valores cívicos, culturais e cristãos. · Aos que se preparam para
constituir família recomendamos o seguinte: ü procurar conhecer os seus próprios
defeitos e qualidades e os do seu par, aprendendo a compreendê-los e a aperfeiçoar-se,
pedindo ajuda se necessário; ü criar um projecto comum de vida familiar, pois
para a estabilidade da família não basta a atracção sentimental entre os noivos (reflectindo,
por exemplo, sobre o tempo que um (a) jovem investe na sua instrução e qualificação
profissional e o que investe na formação da sua família); ü procurar concluir
os estudos e arranjar emprego, criando assim as condições económicas que permitam
à sua família a tarefa de prover às suas necessidades.
· Às famílias
lembramos o dever de: ü viver uma caridade activa, cultivando os valores fundamentais
da justiça, do respeito, da solidariedade, do serviço e do amparo dos mais vulneráveis; ü
incentivar a educação cristã dos filhos, tanto na família como na comunidade cristã,
e acompanhar a orientação vocacional de cada um, tanto no plano profissional como
na orientação para a vida familiar, religiosa ou presbiteral; ü cultivar os valores
fundamentais de justiça, respeito, perdão e serviço; ü na medida do possível
acompanhar o crescimento físico e afectivo dos filhos, cuidando a qualidade do tempo
que passam juntos, pois não há prendas nem dinheiro que compense o que venha a faltar
em atenção e carinho; ü cultivar o diálogo e a reconciliação diante das dificuldades
e dos conflitos; ü alimentar a unidade familiar das famílias cristãs através
da oração em família; ü e particularmente, nos momentos de dor e infelicidade,
procurar o reforço efectivo e afectivo dos laços familiares, evitando situações que
criem desunião. CONCLUSÃO 13. Ao concluir, recordemos o
apelo do Santo Padre, o Papa Bento XVI, no final da nossa recente visita ‘Ad Limina
Apostolorum’: “Na verdade, os cristãos respiram o espírito do seu tempo e sofrem a
pressão dos costumes da sociedade em que vivem; mas, pela graça do Baptismo, são chamados
a renunciar às tendências nocivas imperantes e a caminhar contra a corrente guiados
pelo espírito das Bem-aventuranças”.
Tornemos pois as nossas famílias
numa escola de reconciliação, que seja fermento de paz e amor cada vez mais alargados
até incluírem todos os filhos e filhas de Angola e S. Tomé e Príncipe.
Rogamos
a Sagrada Família de Nazaré que abençoe o esforço de reconciliação de todas as nossas
famílias e lhes dê a coragem de imitar suas virtudes. Luanda, 17 de Novembro de
2011. Os Bispos Católicos de Angola e S. Tomé