2011-08-13 14:37:22

África. À procura da própria soberania alimentar…


A 50 anos do acesso à independência da maior parte dos seus Estados, a África deveria ter já atingido a mais elementar das soberanias: a alimentar. Mas não! A actual crise no Corno de África emergiu como a ponta de um iceberg a recordar o perigo de fome e malnutrição que correm, ainda hoje, milhões de africanos; a recordar quão escondidas e profundas são as causas deste perigo. Não é que faltassem elementos para isso: as revoltas pelo elevado preço do pão estão ainda frescas na memória. Remontam a apenas dois anos atrás. E não são estranhas à chamada “Primavera Árabe”, ou melhor “Africana” que, do Mali dos anos 90 à Tunísia e Egipto do ano em curso, levaram ao derrube de regimes recalcitrantes e alheios aos destinos dos seus povos. Mas a imagem duma criança esquelética ao colo duma mãe estremecida faz, talvez, mais efeito do que revoltas em praças públicas. Enternece mais os corações e suscita uma maior solidariedade, embora sempre insuficiente e, por vezes, bastante tardia. Seja como for, espera-se que o mal seja daqueles que vêm por bem e que leve os responsáveis a avaliar com consciência a dimensão deste iceberg e a adoptar com coragem as medidas necessárias para garantir a segurança alimentar a nível mundial: tanto a africanos como a todos os outros esfomeados e malnutridos do Planeta.

Mas quem são os “responsáveis”? Antes de mais os governos africanos. São eles que têm o dever de analisar a situação e de adoptar estratégias a breve, médio e longo prazo para assegurar o pão a todos os seus cidadãos. E dispõem de todos os instrumentos necessários para o fazer porque, não obstante as guerras e adversidades climáticas, no conjunto, a África dispõe de recursos naturais suficientes para alimentar todos os seus cidadãos. Basta pensar que apenas 14% das terras disponíveis são utilizadas.

Mas uma política global africana que permita transferir recursos das regiões mais férteis para as mais necessitadas requer uma maior unidade continental. A União Africana está a fazer um esforço neste sentido: o NEPAD (Nova Parceria para o Desenvolvimento Económico da África), instituído pela UA há dez anos atrás, tem como principal objectivo, precisamente a segurança alimentar e nutricional em todos os seus Estados membros. E, em 2003, no Maputo, a cimeira da UA voltou a pôr a tónica na agricultura, convidando os Estados membros a investir pelo menos 10% do seu orçamento geral na agricultura. No entanto, até hoje, nem sequer 10 dos agora 54 Estados africanos pôs essa recomendação em prática.

Não basta fazer "declarações clamorosas e publicitárias" se não forem acompanhadas de "medidas concretas e se não se envolverem todos os actores do mundo agrícola na tomada de decisões fundamentais, na avaliação das estratégias e na aplicação das mesmas" -frisa o senegalês Mamadou Sissokho, figura de relevo no movimento campesino africano, entrevistado pela nossa emissora. Embora algo esteja a avançar na boa direcção, as medidas até hoje adoptadas ficam ainda muito aquém dos desafios. Segundo Mamadou, o maior desafio é levar os governantes africanos a compreender que é preciso fazer como fizeram os países considerados potências mundiais e os que estão em vias de se tornar potências: injectar maciços investimentos públicos na agricultura, deixando aos privados a tarefa de intervir, eventualmente, na agro-indústria e na distribuição. Mas, as grandes agências internacionais, de modo particular o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – insistem nos investimentos privados como a única fórmula capaz de levar ao desenvolvimento agrícola em África. E os governantes africanos deixam-se convencer, em vez de tomar medidas que levem à soberania alimentar, sem a qual não se pode falar de independência nacional. Independência que vacila ainda mais quando milhões de hectares das melhores terras agrícolas são cedidas quase de graça, por períodos que chegam até a 99 anos, a investidores estrangeiros que nelas cultivam produtos para exportação: flores, cereais para bio-carburantes e géneros alimentícios destinados a outros povos, deixando os africanos na malnutrição e na fome. A tudo isto se acrescentam as subvenções da União Europeia aos próprios agricultores que inundam os mercados africanos com os seus produtos a baixo preço. Uma clara "violação dos direitos dos povos" para usarmos uma expressão do beato João Paulo II, um "crime contra os camponeses africanos" que devem poder viver do seu trabalho, sublinha Mamadou Cissokho aos nossos microfones. É preciso produzir antes de mais para "satisfazer as necessidades nutricionais dos africanos e consumir produtos locais" em vez de importar alimentos – remata.

Sem deixar de lado o papel dos muçulmanos, Cissokho pede-nos para exortarmos os líderes religiosos cristãos a pronunciarem-se neste sentido a fim de que as coisas mudem.

Mas a Igreja católica faz isto desde há anos. Da encíclica Populorum Progressio do Papa Paulo VI à Caritas in Veritate do actual Pontífice, a Doutrina Social da Igreja está cheia de apelos a uma maior justiça social em todos os sentidos. A Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a África, reunida no Vaticano em Outubro de 2009, exortava, no capítulo terra e água das suas Proposições finais a fazer com que "A produção de alimentos para a exportação não ponha em perigo a segurança alimentar nem as necessidades das gerações futuras". E no Angelus de domingo 31 de Julho, Bento XVI lançou mais um apelo a fim de que a alimentação seja garantida de maneira permanente e, ainda mais, em situações de extrema necessidade, como está a acontecer actualmente no Corno de África.

Neste contexto de emergência a Cáritas-África pôs imediatamente à disposição vinte e cinco mil euros e lançou um apelo às Cáritas nacionais africanas a fazerem recolha de fundos para os necessitados. Por seu lado a Conferência Episcopal do Quénia no espírito de "um povo, uma nação" criou um fundo para as vítimas da seca. E outros exemplos vão surgindo tanto a nível da sociedade civil como de instituições. Mas, para um continente que considera a solidariedade uma das suas principais características e que é vista como tal pelos outros, não seria de esperar muito mais e mais rapidamente?
No plano Estatal, o Gabão foi dos primeiros a manifestar a sua solidariedade doando, através da FAO, dois milhões e meio de dólares e, a UA anunciou ter posto à disposição da Somália, o país mais atingido pela carestia, 300 mil dólares. E deverá realizar no dia 25 deste mês de Agosto, na sua sede em Adis-Abeba, a reunião de doadores, inicialmente prevista para o dia 9, e onde se deverá discutir sobre a coordenação das ajudas que vão chegando tanto dos países africanos como árabes e doutros ainda.

Enfim, sinais de um continente que se move, embora de maneira lenta. O seu maior organismo, a UA, precisamente, parece, de facto, “um gigante com pés de argila”. Mas, o estômago dos esfomeados não pode esperar. Quantas mães e crianças perderão, entretanto, a vida? Quantas crianças ficarão marcadas para sempre pelas consequências nefastas da malnutrição? Não nos é dado sabê-lo. O que sabemos é que só a boa vontade política dos Chefes africanos e internacionais poderá salvar os famintos e pôr a África, finalmente, nos carris da soberania alimentar. Mas essa boa vontade demora a chegar. Vai-se de promessas em promessas, de reuniões em reuniões, de boa intenções em boa intenções. E o sector agrícola que absorve a mão de obra da grande maioria dos africanos e mais de 50% da população do Planeta não é seriamente tomada em consideração. Assim as populações rurais vêem-se obrigadas a deslocar-se para as cidades, aumentando, deste modo, ainda mais, a pobreza.

É necessário, então, continuar a lançar apelos, a pressionar os políticos. A Igreja não é a única a fazê-lo. Fazem-no também os camponeses africanos, que vão consolidando cada vez mais os seus movimentos nacionais e regionais. E têm mesmo uma Plataforma continental que, se por um lado tarda a reunir-se para manifestar a sua solidariedade para com os necessitados do Corno de África, por outro, faz da luta contra as más políticas agrícolas a sua batalha quotidiana. Fazem-no desde há pelo menos trinta anos – recorda Mamadou Cissokho que, no seu livro “Dieu n’est pas un paysan” (Deus não é um camponês) publicado em 2009 pela editora Présence Africaine, ilustra as enormes dificuldades encontradas, tanto a nível dos políticos africanos como internacional neste esforço de encetar uma politica alimentar mais justa em África.

O caminho a percorrer é, portanto, ainda longo. Requer passos concretos, ponderados e programados. As experiências negativas do passado e a crise económica mundial mostram que a realidade é muito mais complexa do que as fórmulas simplistas propostas universalmente pelos grandes organismos internacionais.

No que toca especificamente à África, não há todavia, que apressar-se demasiado (com o perigo de adoptar políticas erradas) pensando que estamos atrasados. "Não, não estamos atrasados!” – afirma com força Mamadou, dando o exemplo da União Europeia que iniciou a sua política agrícola há mais de 50 anos e a vai adaptando às novas circunstâncias. O mesmo fazem os Estados Unidos. Então, o que a África deve fazer é saber programar o seu próprio caminho, envolvendo todos os protagonistas do sector e ter adequados mecanismos de avaliação. Foi isto que fez Lula da Silva no Brasil com o lançamento do programa “Fome Zero”– refere ainda esse erudito agricultor senegalês, citando o caso brasileiro como um claro exemplo de boa vontade política, que muitos líderes africanos deveriam seguir. Para ele é necessário que a África aprenda dos outros sem, todavia, copiar a 100%, mas adaptando, isso sim, aos contextos físico, social e cultural africanos.

Esperemos que alguém o ouça… e que em África, no mundo, não haja nunca mais fome de pão, mas sim de Deus, como disse, em 1985, João Paulo II, na capital peruana, perante uma grande multidão de pessoas.

Maria Dulce Araújo Évora – Programa Português/Rádio Vaticano







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