ABUSO SEXUAL: CARTA CIRCULAR TRAZ NOVAS ORIENTAÇÕES
Cidade do Vaticano, 16 mai (RV) - Foi divulgada, nesta segunda-feira, na sala
de imprensa da Santa Sé, a Carta Circular da Congregação para a Doutrina da Fé, escrita
para ajudar as Conferências Episcopais a preparar as diretrizes para o tratamento
de casos de abuso sexual de menores por parte de clérigos.
O documento de cinco
páginas foi distribuído em diversas línguas e, entre as diversas disposições e esclarecimentos,
relata que o abuso sexual não é somente um delito canônico, mas também civil e que
entre as duas instituições deve haver colaboração mútua para elucidar os casos e preservar
a integridade das vítimas.
Nas conclusões, a Carta afirma que a responsabilidade
no tratamento dos casos de abuso sexual compete em primeiro lugar ao Bispo Diocesano.
A íntegra do texto abaixo. (RB)
CARTA CIRCULAR
Para
ajudar as Conferências Episcopais na preparação de linhas diretrizes no tratamento
dos casos de abuso sexual contra menores por parte de clérigos
Dentre
as importantes responsabilidades do Bispo diocesano para assegurar o bem comum dos
fiéis e, especialmente das crianças e dos jovens, existe o dever de dar uma resposta
adequada aos eventuais casos de abuso sexual contra menores, cometidos por clérigos
na própria diocese. Tal resposta implica a instituição de procedimentos capazes de
dar assistência às vítimas de tais abusos, bem como a formação da comunidade eclesial
com vistas à proteção dos menores. Tal resposta deverá prover à aplicação do direito
canônico neste campo, e, ao mesmo tempo, levar em consideração as disposições das
leis civis.
I. Apectos gerais:
a) As vítimas do abuso sexual:
A
Igreja, na pessoa do Bispo ou de um seu delegado, deve se mostrar pronta para ouvir
as vítimas e os seus familiares e para se empenhar na sua assistência espiritual
e psicológica. No decorrer das suas viagens apostólicas, o Santo Padre Bento XVI deu
um exemplo particularmente importante com a sua disposição para encontrar e ouvir
as vítimas de abuso sexual. Por ocasião destes encontros, o Santo Padre quis se dirigir
às vítimas com palavras de compaixão e de apoio, como aquelas que se encontram na
sua Carta Pastoral aos Católicos da Irlanda (n. 6): “Sofrestes tremendamente e por
isto sinto profundo desgosto. Sei que nada pode cancelar o mal que suportastes. Foi
traída a vossa confiança e violada a vossa dignidade.”
b) A proteção dos
menores:
Em algumas nações foram lançados, em âmbito eclesiástico, programas
educativos de prevenção, a fim de assegurar “ambientes seguros” para os menores. Tais
programas tentam ajudar os pais, e também os operadores pastorais ou escolásticos,
a reconhecer os sinais do abuso sexual e a adotar as medidas adequadas. Os supracitados
programas mereceram amiúde um reconhecimento como modelos na luta para eliminar os
casos de abuso sexual contra menores nas sociedades hodiernas.
c) A formação
dos futuros sacerdotes e religiosos
O Papa João Paulo II dizia no ano
de 2002: “No sacerdócio e na vida religiosa não existe lugar para quem poderia fazer
mal aos jovens” (n. 3, Discurso aos Cardeais americanos, 23 de abril de 2002). Estas
palavras chamam à atenção para a responsabilidade específica dos Bispos, dos Superiores
Maiores e daqueles que são responsáveis pelos futuros sacerdotes e religiosos. As
indicações dadas na Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis, bem como as instruções
dos Dicastérios competentes da Santa Sé, possuem uma importância sempre crescente
com vistas a um correto discernimento vocacional e a uma formação humana e espiritual
sadia dos candidatos. Em particular façam-se esforços de sorte que os candidatos apreciem
a castidade, o celibato e a paternidade espiritual do clérigo e que possam aprofundar
o conhecimento da disciplina da Igreja sobre o assunto. Indicações mais específicas
podem ser integradas nos programas formativos dos seminários e das casas de formação
previstas na respectiva Ratio Institutionis Sacerdotalis de cada nação e Instituto
de Vida Consagrada e Sociedade de Vida Apostólica.
Uma diligência especial
deve ser ademais reservada à indispensável troca de informações acerca daqueles candidatos
ao sacerdócio ou à vida religiosa que são transferidos de um seminário a outro, de
uma a outra Diocese ou de Institutos religiosos a Dioceses.
d) O acompanhamento
dos sacerdotes
1. O Bispo tem o dever de tratar a todos os seus sacerdotes
como pai e irmão. Além disso, o Bispo deve providenciar com atenção especial à formação
permanente do clero, sobretudo nos primeiros anos seguintes à sagrada Ordenação, valorizando
a importância da oração e do mútuo apoio na fraternidade sacerdotal. Os sacerdotes
devem ser informados sobre o dano provocado por um clérigo à vítima de abuso sexual
e sobre a própria responsabilidade diante da legislação canônica e civil, como também
a reconhecer os sinais de eventuais abusos perpetrados contra menores;
2. Os
Bispos devem assegurar todos os esforços no tratamento dos casos de eventuais abusos
que porventura lhes sejam denunciados de acordo com a disciplina canônica e civil,
no respeito dos direitos de todas as partes;
3. O clérigo acusado goza da presunção
de inocência até prova contrária, contudo, o Bispo, por cautela, poderá limitar o
exercício do ministério, enquanto espera que se esclareçam as acusações. Em caso de
inocência, não se poupem esforços para reabilitar a boa fama do clérigo acusado injustamente.
e)
A cooperação com as autoridades civis
O abuso sexual de menores não é só
um delito canônico, mas também um crime perseguido pela autoridade civil. Se bem que
as relações com as autoridades civis sejam diferentes nos diversos países, é, contudo
importante cooperar com elas no âmbito das respectivas competências. Em particular
se seguirão sempre as prescrições das leis civis no que toca o remeter os crimes às
autoridades competentes, sem prejudicar o foro interno sacramental. É evidente que
esta colaboração não se refere só aos casos de abuso cometidos por clérigos, mas diz
respeito também aos casos de abuso que implicam o pessoal religioso ou leigo que trabalha
nas estruturas eclesiásticas.
II. Breve relatório da legislação
canônica em vigor relativa ao delito de abuso sexual de menores perpretado por um
clérigo
No dia 30 de abril de 2001, o Papa João Paulo II promulgou
o Motu Própio Sacramentorum Sanctitatis Tutela (SST), com o qual se inseriu o abuso
sexual de um menor perpetrado por um clérigo no elenco de delicta graviora, reservado
à Congregação para a Doutrina da Fé (CDF). A prescrição de tal delito foi fixada em
10 anos a partir do 18º aniversário da vítima. A legislação do Motu Próprio vale tanto
para os clérigos latinos quanto para os clérigos orientais, igualmente para o clero
diocesano como para o religioso.
Em 2003, o então Prefeito da CDF, o Cardeal
Ratzinger, obteve de João Paulo II a concessão de algumas faculdades especiais para
oferecer maior flexibilidade nos processos penais para os casos de delicta graviora,
dentre os quais o uso do processo penal administrativo e o pedido da demissão ex officio
nos casos mais graves. Estas faculdades foram integradas na revisão do Motu Próprio
aprovada pelo Santo Padre Bento XVI aos 21 de maio de 2010. Segundo as novas normas
a prescrição é de 20 anos, os quais nos casos de abuso de menores se calculam a partir
do 18º aniversário da vítima. A CDF pode eventualmente derrogar às prescrições em
casos particulares. Especificou-se também o delito canônico da aquisição, detenção
ou divulgação de material pedopornográfico.
A responsabilidade de tratar
os casos de abuso sexual contra menores é, num primeiro momento, dos Bispos ou dos
Superiores Maiores. Se a acusação parecer verossímil, o Bispo, o Superior Maior ou
o seu delegado devem proceder a uma inquisição preliminar de acordo com os cân. 1717
do CIC, 1468 CCEO e o art. 16 SST.
Se a acusação for considerada crível –
digna de crédito, pede-se que o caso seja remetido à CDF. Uma vez estudado o caso,
a CDF indicará ao Bispo ou ao Superior Maior os ulteriores passos a serem dados. Ao
mesmo tempo, a CDF oferecerá uma diretriz para assegurar as medidas apropriadas, seja
garantindo um procedimento justo aos clérigos acusados, no respeito do seu direito
fundamental à defesa, seja tutelando o bem da Igreja, inclusive o bem das vítimas.
É útil recordar que normalmente a imposição de uma pena perpétua, como a demissão
do estado clerical requer um processo penal judicial. De acordo com o Direito Canônico
(cf. can. 1342 CIC) os Ordinários não podem decretar penas perpétuas por decretos
extrajudiciários; para tanto devem se dirigir à CDF, à qual compete o juízo definitivo
a respeito da culpabilidade e da eventual inidoneidade do clérigo para o ministério,
bem como a conseqüente imposição da pena perpétua (SST Art. 21, § 2).
As
medidas canônicas aplicadas contra um clérigo reconhecido culpado de abuso sexual
de um menor são geralmente de dois tipos:
1) medidas que restringem o ministério
público de modo completo ou pelo menos excluindo os contatos com menores. Tais medidas
podem ser acompanhadas por um preceito penal; 2) penas eclesiásticas, dentre as quais
a mais grave é a demissão do estado clerical.
Em alguns casos, prévio pedido
do próprio clérigo, pode-se conceder a dispensa, pro bono Ecclesiae das obrigações
inerentes ao estado clerical, inclusive do celibato.
A inquisição preliminar
e todo o processo devem se desenvolver com o devido respeito a fim de proteger a discrição
em torno às pessoas envolvidas, e com a devida atenção à sua reputação.
Ao
menos que existam razões graves em contrário, o clérigo acusado dever ser informado
da acusação apresentada, a fim de que lhe seja dada a possibilidade de responder à
mesma, antes de se transmitir um caso à CDF. A prudência do Bispo ou do Superior Maior
decidirá qual informação deva ser comunicada ao acusado durante a inquisição preliminar.
Compete
ao Bispo ou ao Superior Maior prover o bem comum determinando quais medidas de precaução
previstas pelo cân. 1722 CIC e pelo cân. 1473 CCEO devem ser impostas. De acordo com
o art. 19 SST, isto se faz depois de começada a inquisição preliminar.
Recorda-se
finalmente que se alguma Conferência Episcopal, excetuado o caso de uma aprovação
da Santa Sé, julgue por bem dar normas específicas, tal legislação particular dever
ser considerada como um complemento à legislação universal e não como substituição
desta. A legislação particular deve, portanto harmonizar-se com o CIC/CCEO, bem como
com o Motu Próprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela (30 de abril de 2001) como foi
atualizado aos 21 de maio de 2010. Se a Conferência Episcopal decidir estabelecer
normas vinculantes, será necessário requerer a recognitio aos Dicastérios competentes
da Cúria Romana.
III. Indicações aos Ordinários sobre o modo de proceder
As linhas diretrizes preparadas pela Conferência Episcopal deveriam
fornecer orientações aos Bispos diocesanos e aos Superiores Maiores no caso em que
fossem informados de possíveis (presunti) abusos sexuais contra menores perpetrados
por clérigos presentes no território da sua jurisdição. Tais linhas diretrizes devem
levar em conta as seguintes considerações:
a.) o conceito de “abuso sexual
contra menores” deve coincidir com a definição do Motu Próprio SST art. 6 (“o delito
contra o sexto mandamento do Decálogo cometido por um clérigo com um menor de dezoito
anos”), bem como com a praxe interpretativa e a jurisprudência da Congregação para
a Doutrina da Fé, levando em consideração as leis civis do País;
b.) a pessoa
que denuncia o delito dever ser tratada com respeito. Nos casos em que o abuso sexual
esteja ligado com outro delito contra a dignidade do sacramento da Penitência (SST,
art. 4), o denunciante tem direito de exigir que o seu nome não seja comunicado ao
sacerdote denunciado (SST, art. 24);
c.) as autoridades eclesiásticas devem
se empenhar para oferecer assistência espiritual e psicológica às vítimas;
d.)
o exame das acusações seja feito com o devido respeito do princípio de privacidade
e de boa fama das pessoas;
e.) ao menos que haja graves razões em contrário,
já durante o exame prévio, o clérigo acusado seja informado das acusações para ter
a possibilidade de responder às mesmas;
f.) os órgãos consultivos de vigilância
e de discernimento dos casos particulares, previstos em alguns lugares, não devem
substituir o discernimento e a potestas regiminis dos bispos em particular;
g.)
as linhas diretrizes devem levar em consideração a legislação do país da Conferência,
especialmente no tocante à eventual obrigação de avisar as autoridades civis;
h.)
seja assegurado em todos os momentos dos processos disciplinares ou penais um sustento
justo e digno ao clérigo acusado;
i.) exclua-se o retorno do clérigo ao ministério
se o mesmo for perigoso para os menores ou escandaloso para a comunidade.
Conclusão:
As
linhas diretrizes preparadas pelas Conferências Episcopais pretendem proteger os menores
e ajudar as vítimas para encontrar assistência e reconciliação. As mesmas deverão
indicar que a responsabilidade no tratamento dos delitos de abuso sexual de menores
pro parte dos clérigos compete em primeiro lugar ao Bispo diocesano. Por fim, as linhas
diretrizes deverão levar a uma orientação comum no seio de uma Conferência Episcopal,
ajudando a harmonizar do melhor modo os esforços dos Bispos em particular a fim de
salvaguardar os menores.
Roma, da Sede da Congregação para a Doutrina da
Fé, 3 de maio de 2011
William Cardinale Levada Prefeito
X
Luis F. Ladaria, S.I. Arcebispo Tit. de Thibica Secretário