Assassinato, na Costa do Marfim, de Ibrahim Coulibaly, para pôr termo à guerra; bombardeamentos,
pela NATO, das residências de Mouammar Kadhafi; notícia do assassinato de Ben Laden
acolhida com um coro de aplausos: mortes que interrogam também a África.
É
a característica singular duma época marcada por contrastes e paradoxos. O contrasto,
por exemplo, entre acontecimentos políticos e o clima da beatificação de João Paulo
II, com a presença em Roma de um milhão e meio de pessoas, mas também com encontros
em diversos países do mundo: no México, na Terra Santa e mesmo em diversos países
do continente africano; uma experiência de aproximação, de partilha, de esperança
e de alegria na caminhada conjunta em direcção ao futuro… Enfim, o mundo está ainda
nimbado pela fulgurante luz da Páscoa da Ressurreição do Senhor, através da qual o
Príncipe da Paz estabeleceu o seu reino e venceu a morte. Mas, não é a morte e Ressurreição
de Cristo que ocupa os ecrãs das televisões. É uma outra coorte, uma outra magote
de mortos – mortos mortais, poder-se-ia dizer – que é celebrada e apresentada ao som
vibrante de clarins como se bastasse uma pessoa morrer para que uma outra possa viver.
Paradoxo!
A África – sabe-se – celebra com solenidade e apego os seus mortos.
A morte dum parente restabelece os laços de fraternidade, de comunhão entre os membros
afastados da família, e a própria família ganha novo vigor naquilo que é o seu índole:
uma comunhão de seres humanos, humildes, mesmo nos aspectos trágicos que o imanente
e o destino podem comportar. Mesmo quando, nestes últimos anos, a África deu, porventura,
a impressão de se acomodar facilmente à morte, passando gradualmente da violência
infligida a um pequeno número de pessoas até culminar no horror absoluto do genocídio,
sabemos que a parte sã do continente viveu isso como um drama, manifestação de recusa
do impulso auto-destruidor e mortífero. Início duma gangrena que veio reorientar os
discursos e o gestos, como, aliás, demonstrou o Sínodo dos Bispos para a África de
2009 ao reflectir, precisamente, sobre o tema da paz, justiça e reconciliação.
No
entanto, mesmo sem os números que garante o gigantismo, o continente africano viu-se
face aos “pequenos mortos” desses últimos dias que deram lugar a cenas que convidam
à reflexão. Mesmo quando essas mortes infligidas a outrem aconteceram longe da África
(o caso de Ben Laden, no Paquistão), ou foram praticadas sob a justificação moral
internacional (o filho mais novo de Kadhafi e os seus três netinhos assassinados num
bombardeamento da NATO), ou praticadas numa quase indiferença da comunidade internacional
(Ibrahim Coulibaly, conhecido por “IB”, na Costa do Marfim), essas mortes levam todas
a interrogar-se sobre o significado e o valor da vida humana. Ela é apenas o resultado
duma avaliação humana que, sabemos, pode mudar segundo os contextos e circunstâncias?
Pela sua morte e morte na Cruz, Jesus Cristo veio dar sentido à vida. Pois,
através da Cruz a morte já não constitui o fim do mundo, mas o início dum outro mundo.
“Face à morte duma pessoa, um cristão não pode nunca regozijar. Deve, sim, reflectir
sobre as graves responsabilidades de cada um de nós perante Deus e perante o homem
e deve permanecer na esperança e empenhar-se para que nenhuma acção seja motivo de
ódio, mas sim de reforço da paz” – disse o P. Lombardi a propósito da morte de Ben
Laden, que teve – disse – “uma grave responsabilidade” na difusão “da divisão e do
ódio entre os povos”. Eis porque convém avaliar cada uma das mortes à luz da dimensão
da relação entre o homem e o seu Deus, e não ao som das emoções que suscita.
Visão
religiosa e, por isso redutora? Não, absolutamente! Que se fale do assassinato de
Ibrahim Coulibaly, na Costa do Marfim, dos bombardeamentos da NATO que provocaram
a morte do filho e dos netos de Mouammar Khadafi, ou ainda de Oussama Ben Laden, no
Paquistão, todas essas mortes reconduzem à religião. Não porque as vítimas eram todas
personalidades muçulmanas, cuja religião serviu também, por vezes, de pretexto para
tirar violentamente a vida a milhares de adversários, mas porque aqueles que consideramos
hoje como vencidos, permanecem, para nós cristãos, na inabalável filiação de Deus,
dos seres vivos e dos seres humanos. “Oh morte, onde está a tua vitória?” (Coríntios
I – 15,55).
É preciso ter presente que a morte de Ben Laden, a mais difundida
pelos meios de comunicação de massa, diz respeito também à África. Foi no continente
africano que o fundador de Al Qaida começou, de certo modo, a exercitar-se. Basta
pensar nos atentados anti-americanos em Nairobi e Dar-es-Salaam em Agosto de 1998
e a “tomada” absoluta da Somália, seguida da instalação no Magrebe duma das suas “filiais”,
sem falar dos seus trânsitos de negócio pelo Sudão! Mas, mesmo quando, na visão do
homem, essas mortes podem parecer “justificadas” perante o olhar de Deus ao qual aderiram
milhões de africanos, elas permanecem, contudo, uma sacralidade: a de uma vida que
não tem sentido a não ser que prolongue as dos outros pelas suas acções e manifestações,
e às quais nem os assassinados de hoje nem os decisores da sua sorte, têm o direito
de tocar.
Um dos nossos colegas da Rádio Vaticano, Filomeno Lopes, no livro
“Filosofia senza Feticci” escreve: “A África é considerada o berço da humanidade,
a Mãe da vida. Mas a imagem que hoje dá de si, sobretudo nos países afro-lusófonos,
é a duma mãe que entrou no cemitério para enterrar os seus filhos, vítimas da guerra
fratricida, e que não consegue sair, porque todas as vezes que se aproxima da porta
do cemitério para sair encontra outras mães que chegam, incessantemente, para enterrar
os próprios filhos. E ela, por solidariedade volta de novo para dentro do cemitério
e, juntas, choram os novos mortos. Eis a absurdidade: a África – Mãe da vida – parece
ter encontrado morada no cemitério. E a reflexão filosófica africana hodierna deve
ajudar a África e os africanos a interrogar-se: quando é que havemos de decidir ajudar
as nossas mães a sair do cemitério? A sair definitivamente do cemitério?” (pag. 12).
Domingo 1 de Maio de 2011, na Praça de São Pedro, milhares de peregrinos prestaram
homenagem a um morto. João Paulo II, o bem-aventurado, cujos passos, discursos, gestos
e ardor não cessaram de apelar à vida todos os membros da família humana. Ao saudar
as delegações oficiais vindas a essa comovente cerimónia (entre elas centenas de peregrinos
africanos vindos de avião da África) o Papa Bento XVI disse: “Que a vida de João Paulo
II seja fonte de inspiração para um empenho renovado ao serviço de todos os homens
e de todo o homem! Peço-lhe que bendiga cada um de vós a fim de que possais construir
uma civilização de amor, no respeito da dignidade de cada ser humano, criado à imagem
de Deus”. Se há um sentido a atribuir à morte e, portanto à vida, não poderá outra
senão esta: que ela se enriqueça de exemplos como este a fim de ser celebrada como
dom sagrado e inviolável em qualquer parte do mundo.