HOMILIA DE BENTO XVI PARA A QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Cidade do Vaticano, 09 mar (RV) - Na íntegra, a homilia do Papa para a Celebração
da Santa Missa da Quarta-Feira de Cinzas:
Caros irmãos e irmãs,
Iniciamos
hoje o tempo litúrgico da Quaresma com o sugestivo rito da imposição das cinzas, mediante
o qual queremos assumir o compromisso de converter o nosso coração aos horizontes
da Graça. Geralmente, na opinião comum, este tempo corre o risco de ser caracterizado
pela tristeza, pela insipidez da vida. Ao invés, ele é dom precioso de Deus, é tempo
forte e denso de significados no caminho da Igreja, é o itinerário em direção à Páscoa
do Senhor. As leituras bíblicas da celebração de hoje nos oferecem indicações para
viver plenamente essa experiência espiritual.
"Retornai a mim de todo vosso
coração" (Jl 2, 12). Na primeira Leitura, extraída do livro do profeta Joel, ouvimos
essas palavras com as quais Deus convida o povo judeu a um arrependimento sincero
e não aparente. Não se trata de uma conversão superficial e transitória, mas de um
itinerário espiritual que concerne em profundidade às atitudes da consciência e supõe
um sincero propósito de revisão. O profeta parte da chaga da invasão de gafanhotos
que se abatera sobre o povo destruindo a colheita, para convidar a uma penitência
interior, a lacerar o coração e não as vestes (cfr 2, 13). Ou seja, trata-se de assumir
uma atitude de conversão autêntica a Deus – retornar a Ele – reconhecendo a sua santidade,
a sua potência, a sua magestade. E essa conversão é possível porque Deus é rico de
misericórdia e grande no amor. A sua misericórdia é uma misericórdia regeneradora,
que cria em nós um coração puro, renova no íntimo um espírito firme, restituindo-nos
a alegria da salvação (cfr Sal 50, 14). De fato, Deus não quer a morte do pecador,
mas que se converta e viva (cfr Ez 33, 11). Assim o profeta Joel ordena, em nome do
Senhor, que se crie um ambiente penitencial propício: é preciso tocar a trombeta,
convocar a reunião, despertar as consciências. O período quaresmal propõe-nos esse
âmbito litúrgico e penitencial: um caminho de quarenta dias no qual experimentar de
modo eficaz o amor misericordioso de Deus. Hoje ressoa para nós o apelo "retornai
a mim de todo vosso coração"; hoje somos nós a sermos chamados a converter o nosso
coração a Deus, conscientes sempre de não podermos realizar a nossa conversão sozinhos,
somente com as nossas forças, porque é Deus que nos converte. Ele nos oferece mais
uma vez o seu perdão, convidando-nos a nos voltarmos a Ele para dar-nos um coração
novo, purificado do mal que o oprime, para fazer-nos partícipe de sua alegria. O nosso
mundo precisa ser convertido por Deus, precisa de seu perdão, de seu amor, precisa
de um coração novo.
"Deixai-vos reconciliar com Deus" (2 Cor 5,20). Na segunda
Leitura São Paulo oferece-nos outro elemento no caminho da conversão. O Apóstolo convida
a deixar de fixar o olhar nele e, ao invés, a voltar a atenção para quem o enviou
e para o conteúdo da mensagem que traz: "Portanto, em nome de Cristo somos embaixadores:
por nosso meio é Deus mesmo que exorta. Suplicamo-vos em nome de Cristo: deixai-vos
reconciliar com Deus (ibid). Um embaixador repete aquilo que ouviu pronunciar o seu
Senhor e fala com a autoridade e nos limites em que a recebeu. Quem desempenha o ofício
de embaixador não deve atrair o interesse sobre si mesmo, mas deve colocar-se a serviço
da mensagem a ser transmitida e de quem a mandou. Assim age São Paulo na realização
de seu ministério de pregador da Palavra de Deus e de Apóstolo de Jesus Cristo. Ele
não se subtrai à tarefa recebida, mas a assume com dedicação total, convidando a abrir-se
à Graça, a deixar que Deus nos converta: "Porque somos seus colaboradores – escreve
– exortamo-vos ainda a que não recebais a graça de Deus em vão" (2 Cor 6,1). "O apelo
de Cristo à conversão – diz-nos o Catecismo da Igreja Católica – continua ressoando
na vida dos cristãos. (...) é um empenho contínuo para toda a Igreja que "abarca em
seu seio os pecadores" e que, "santa, ao mesmo tempo, e sempre necessitada de purificação,
incessantemente recorre à penitência e à sua renovação". Esse esforço de conversão
não é somente uma obra humana. É o dinamismo do "coração contrito" (Sal 51,19), atraído
e movido pela graça a responder ao amor misericordioso de Deus que nos amou por primeiro"
(n. 1428). São Paulo fala aos cristãos de Corinto, mas através deles quer dirigir-se
a todos os homens. De fato, todos precisam da graça de Deus, que ilumine a mente e
o coração. E o Apóstolo profere: "Eis agora o tempo favorável por excelência, eis
agora o dia da salvação!" (2 Cor 6,2). Todos podem abrir-se à ação de Deus, a seu
amor; com o nosso testemunho evangélico, nós cristãos devemos ser um mensageiro vivo,
aliás, em muitos casos somos o único Evangelho que os homens de hoje leem ainda. Eis
a nossa responsabilidade nas pegadas de São Paulo, eis um motivo a mais para viver
bem a Quaresma: oferecer o testemunho da fé vivida a um mundo em dificuldade que precisa
retornar a Deus, que precisa de conversão.
"Guardai-vos de praticar a vossa
justiça diante dos homens para serdes vistos por eles" (Mt 6,1). Jesus, no Evangelho
de hoje, relê as três obras fundamentais de piedade prescritas pela lei mosaica. A
esmola, a oração e o jejum caracterizam o judeu observante da lei. Durante o tempo,
essas prescrições foram atingidas pela ferrugem do formalismo exterior, ou até mesmo
se transformaram num sinal de superioridade. Jesus evidencia nessas três obras de
piedade uma tentação comum. Quando se faz algo de bom, quase instintivamente nasce
o desejo de ser estimados e admirados pela boa ação, ou seja, de ter uma satisfação.
E isso, de um lado, faz-se fechar-se em si mesmo, de outro, leva para fora de si mesmo,
porque se vive projetado àquilo que os outros pensam de nós e admiram em nós. Ao repropor
essas prescrições, o Senhor Jesus não pede um respeito formal a uma lei estranha ao
homem, imposta por um legislador severo como fardo pesado, mas convida a redescobrir
essas três obras de piedade vivendo-as de modo mais profundo, não por amor próprio,
mas por amor a Deus, como meios no caminho de conversão a Ele. Esmola, oração e jejum:
é o traçado da pedagogia divina que nos acompanha, não somente na Quaresma, em direção
ao encontro com o Senhor Ressuscitado; um traçado a ser percorrido sem ostentação,
na certeza de que o Pai celeste sabe ler e ver também no segredo do nosso coração.
Caros
irmãos e irmãs, iniciemos confiantes e alegres o itinerário quaresmal. Quarenta dias
nos separam da Páscoa; esse tempo "forte" do ano litúrgico é um tempo propício que
nos é dado para esperar, com maior empenho, a nossa conversão, para intensificar a
escuta da Palavra de Deus, a oração e a penitência, abrindo o coração ao dócil acolhimento
da vontade divina, para uma prática mais generosa da mortificação, graças à qual voltar-se
mais largamente em ajuda ao próximo necessitado: um itinerário espiritual que nos
prepara a reviver o Mistério pascal.
Maria, nossa guia no caminho quaresmal,
conduza-nos a um conhecimento sempre mais profundo de Cristo, morto e ressuscitado,
ajude-nos no combate espiritual contra o pecado, nos auxilie ao invocar com força:
Converte nos, Deus salutaris noster - Convertei-nos a Vós, ó Deus, nossa salvação.
Amém!