(21/12/2010) O Natal faz parte do património da fé cristã a que a Igreja tem por
missão dar visibilidade ao longo da história. Trata-se duma celebração que nasceu
no contexto dessa fé. Logo, só no interior desta poderá ser correctamente interpretada.
A fé cristã é o universo de linguagem dentro do qual se capta o verdadeiro sentido
do Natal. Este ‘universo de linguagem’ não é apenas algo a que se adere mentalmente.
É, antes de mais, uma coisa que se vive. Por sua vez, o ‘sentido do Natal’ não depende
do que cada um pensa que ele deveria ser ou gostaria que ele fosse. O Natal é que
nos diz o que ele próprio é. Celebra o nascimento de Jesus, que constitui a entrada
definitiva de Deus na história humana, para apontar a todos o caminho da verdadeira
felicidade. Só vivendo a fé cristã é que se percebe o significado do Natal. Mas
a celebração deste tem que decorrer no seio da nossa sociedade plural. Ela fica, pois,
exposta diante de quem não entende o seu significado objectivo, não lhe dá qualquer
valor, ou rejeita pura e simplesmente. Acresce o facto de o Natal ser uma data que
consta do calendário do conjunto da sociedade. Isto leva a que, a par do Natal cristão,
exista o Natal cultural. Este último não tem conteúdo definido a priori. Mais parece
o preenchimento dum espaço que a Igreja não pode controlar e com o qual a sociedade
nem sempre sabe lidar. Faz-se do Natal uma grande sessão de despesas. Constroem-se
fantasias à sua volta. Multiplica-se o seu significado consoante o que cada um quer.
Tudo isto faz parte da chamada ‘magia do Natal’. Alguns talvez desejem até retirar-lhe
o que tem de expressão pública. Viver o Natal cristão no seio desta sociedade plural
requer aprendizagem. Levantam-se questões que se tornam frentes de trabalho. Existe,
em primeiro lugar, a discussão do que deve ser o pluralismo na nossa sociedade. Reconhece-se
à tradição cristã o direito de o integrar ou pretende-se dar lugar a tudo menos a
ela? Aceita-se que esse pluralismo surge num espaço de passado marcadamente cristão
ou quer-se partir para o futuro fazendo tábua rasa do que está para trás? Este debate
deve levar a perceber que, onde se risca a memória, dificilmente se consegue identidade.
Deve ajudar a ver que, apagando o passado donde se vem, fica-se vulnerável à experimentação
ideológica, tendencialmente tirânica, como é o caso do laicismo. A inclusão do Natal
no nosso calendário civil deve-se ao passado cristão da sociedade a que pertencemos.
Mas a tradição cristã tem mostrado até que respeita os outros no seio do convívio
democrático. O Natal cristão não se impõe; quer existir e fazer viver. Surge, em
segundo lugar, a reflexão sobre o conteúdo do Natal cultural. Sabendo que ele não
existiria sem o Natal cristão, compreende-se que este lhe aponte o que é proveitoso,
sem fazer violência ao conjunto da sociedade. O Natal é, em virtude da sua origem,
um elemento da simbólica cristã. Contudo, pode extrair-se dele o ‘humano fundamental’,
que, de si, deve interessar a todos. Da cena do presépio, colhem-se os valores da
humildade, do desprendimento, da dádiva; aprende-se a atender ao essencial da vida.
Quando Deus surge no meio de nós da maneira que lá vemos, ele diz-nos o que é ser
verdadeiramente humano. Está aqui a riqueza que o Natal cristão oferece à sociedade. Pede-se
aos cristãos, em terceiro lugar, um reforço identitário colectivo. É preciso cultivar
o clima da fé cristã, para que ele robusteça as vivências individuais da mesma. Cada
um deve fomentá-lo juntamente com outros, para que todos possam beneficiar depois
dele. A fé cristã ganha consistência colectiva através de acontecimentos que lhe dão
visibilidade e a fazem comunicar vida. É o caso daqueles que dão corpo ao Natal cristão.
Veja-se a exposição dos estandartes do Menino Jesus nas janelas e varandas de muitas
casas. Tais acontecimentos contribuem para um clima de fé cristã mais robusto, capaz
de alimentar os que a praticam e de ser sinal para o mundo. O reforço identitário
colectivo, que de tudo isto resulta, não pretende fomentar espírito de gueto. Está
aberto às interpelações que lhe chegam do exterior, designadamente às grandes necessidades
humanas. Esse reforço identitário procura ser também evangelizador; fala para fora.
É bom que não enverede logo por um debate racional; talvez desgaste e não dê frutos.
Convém que toque aquela área das pessoas que precede os argumentos, pois é nela que
a mensagem do Natal pode fazer alguém nascer de novo. Domingos Terra, Professor
da Faculdade de Teologia