2010-12-20 12:40:24

Revitalizar o espírito de reconciliação”…“manter a capacidade de ver o essencial, Deus e o homem: Discurso do Papa á Cúria Romana para a troca de Boas Festas de Natal


(20/12/2010) “Forte grito dirigido a todas as pessoas com responsabilidade política ou religiosa para que se detenha a cristã-fobia”. Há que “revitalizar o espírito de reconciliação”. “Combater contra a cegueira em relação à razão”, “manter a capacidade de ver o essencial, ver Deus e o homem, o que é bom e verdadeiro” – “é o interesse comum que deve unir todos os homens de boa vontade. Está em jogo o futuro da humanidade”. Para tal, exige-se uma profunda conversão, que constitui uma “viragem copernicana”: o que é verdadeiramente real, o que efectivamente conta, é “Deus e o homem, o próprio ser do homem a nível espiritual”.
– Estes alguns dos aspectos sublinhados por Bento XVI no discurso pronunciado nesta segunda de manhã, no tradicional encontro com os Cardeais, bispos e outros responsáveis da Cúria Romana, para a apresentação das Boas Festas de Natal. Como de costume, o Papa passou em resenha alguns dos principais acontecimentos do ano que agora se conclui, que mais afectaram a sua actividade pastoral e toda a vida da Igreja.

Uma primeira referência reservou-a o Santo Padre ao Ano Sacerdotal, que constituiu uma oportunidade para “renovar a consciência do dom que o sacerdócio da Igreja Católica representa”. Neste contexto, maior foi o abalo que suscitou o chegar ao conhecimento, numa dimensão inimaginável, dos abusos contra os menores, cometidos por sacerdotes, ferindo profundamente a pessoa humana na sua infância, com marcas para toda a vida. Neste contexto, Bento XVI evocou uma visão de Santa Hildegarda de Bingen, em que esta contemplou uma figura feminina, “esposa de Cristo”, representando a Igreja, com o rosto conspurcado e os vestidos rasgados pelos pecados dos homens, nomeadamente dos padres que transgridem o Evangelho e o seu dever sacerdotal. Embora em alguns deles, se reconhecesse o esplendor da verdade.

“Na visão de Hildegarda, o rosto da Igreja está coberto de pó, e foi assim que nós a vimos, com o vestido rasgado, por culpa dos sacerdotes. Como ela a viu e exprimiu, assim a vimos nós este ano. Devemos acolher esta humilhação como uma exortação à verdade e uma chamada à renovação. Só a verdade salva.”

Bento XVI considerou ser necessário “interrogar-nos o que é que estava errado no nosso anúncio, em todo o nosso modo de configurar o ser cristão, para que tal possa ter acontecido. Precisamos de encontrar uma nova determinação na fé e no bem. Temos que ser capazes de penitência” – insistiu o Papa, que agradeceu todos os que cuidam de reparar junto das vítimas o mal cometido, assim como os “muitos bons padres que transmitem com humildade e fidelidade a bondade do Senhor e, no meio das devastações, testemunham a beleza, não perdida, do sacerdócio”.

“Temos consciência da particular gravidade deste pecado cometido por sacerdotes e da nossa co-responsabilidade a esse propósito. Mas não podemos também silenciar o contexto do nosso tempo, em que nos é dado ver estes acontecimentos” – acrescentou o Papa, denunciando a pornografia infantil:

“Existe um mercado da pornografia no que diz respeito às crianças, que de algum modo parece ser considerado cada vez mais pela sociedade como uma coisa normal. A devastação psicológica das crianças, em que pessoas humanas ficam reduzidas a um artigo de mercado, é um horrível sinal dos tempos”.

Idêntica referência do Papa ao problema da droga, que com força crescente estende os seus tentáculos á volta do globo, expressão da ditadura do dinheiro, que perverte o homem, minando e acabando por eliminar mesmo a sua liberdade.
Lançando um olhar sobre os fundamentos ideológicos desta forças, Bento XVI denunciou o facto de nos anos 70 se ter teorizado a pedofilia como algo de conforme ao homem e mesmo à criança. O que – advertiu – “fazia parte de uma perversão de fundo do conceito de ethos”, que contaminou aliás a própria teologia católica. “Segundo os objectivos e as circunstâncias, tudo poderia ser bem, ou também mal”.

O Papa evocou, neste contexto, a Encíclica “Veritatis splendor”, de 1993, na qual “com força profética (disse) João Paulo II apontou na grande tradição racional do ethos cristão as bases essenciais e permanentes do agir moral”.

“Este texto deve ser hoje colocado de novo ao centro, como caminho na formação da consciência. É nossa responsabilidade tornar novamente audíveis e compreensíveis entre os homens estes critérios como vias da verdadeira humanidade, no contexto da preocupação pelo homem, em que estamos imersos”.
Passando a um segundo ponto, nesta evocação da sua actividade ao longo de 2010, Bento XVI referiu o Sínodo das Igrejas do Médio Oriente, preparado já pela viagem a Chipre. O Papa recordou com gratidão o ter podido experimentar a “inesquecível hospitalidade” da Igreja ortodoxa local.

“Embora não nos seja ainda dada a plena comunhão, contudo pudemos constatar com alegria que nos une profundamente uns aos outros a forma basilar da Igreja antiga: o ministério sacramental dos Bispos, como portadores da tradição apostólica; a leitura da Escritura segundo a hermenêutica da Regula fidei, a compreensão da Escritura na unidade multiforme centrada em Cristo, e desenvolvida graças à inspiração de Deus; e, finalmente, a fé na centralidade da Eucaristia na vida da Igreja”.

Recordando a sessão sinodal realizada em Roma, Bento XVI lembrou que esta permitiu alargar o horizonte a todo o Médio Oriente, onde convivem fiéis pertencentes a diferentes religiões e mesmo a múltiplas tradições e ritos distintos. Neste contexto, referiu um crescendo de tensões e divisões:

“Nas convulsões dos últimos anos, ficou abalada a situação de partilha, cresceram tensões e divisões, de tal modo que somos testemunhas com temor de actos de violência em que já não se respeita o que é sagrado para o outro, e em que vêm a faltar as mais elementares regras de humanidade. Na situação actual , os cristãos são a minoria mais oprimida e atormentada. Ao longo de séculos tinham convivido pacificamente com os seus vizinhos judeus e muçulmanos”.

“Tendo por base o espírito da fé e da racionalidade – observou o Papa – o Sínodo desenvolveu um grande conceito de diálogo, de perdão e de acolhimento recíproco, conceito que agora queremos gritar ao mundo”:

“O ser humano é um só, uma só é a humanidade. Aquilo que em qualquer lugar se faz contra o homem, acaba por ferir a todos. Assim as palavras e os pensamentos do Sínodo devem ser um forte grito dirigido a todas as pessoas com responsabilidade política ou religiosa para que detenham a cristão-fobia; para que se levantem em defesa dos prófugos e dos que sofrem; e para que revitalizem o espírito da reconciliação.
Em última análise, o restabelecimento só pode vir de uma fé profunda no amor reconciliador de Deus. Dar força a esta fé, alimentá-la e fazê-la resplandecer é a principal tarefa da Igreja nesta hora”.

Passando finalmente à “inesquecível viagem” ao Reino Unido, Bento XVI deteve-se em dois momentos: o encontro com o mundo da cultura, no Westminster Hall, e a beatificação do cardeal John Henry Newman.


No primeiro caso – observou – tratou-se de “um encontro em que a consciência da responsabilidade comum neste momento histórico criou uma grande atenção, que, em última análise, se concentrou na questão da verdade e da própria fé”. O Papa recordou a afirmação feita a seu tempo por Alexis de Toccqueville, segundo o qual a democracia foi possível e funcionou na América “porque existia um consenso moral de base que, indo para além das denominações de cada um, a todos unia”. Ora – prosseguiu Bento XVI - “só com tal consenso sobre o essencial é que podem funcionar as constituições e o direito”.
“Este consenso de fundo proveniente do património cristão está em perigo quando, no seu lugar, no lugar da razão moral, se substitui a mera racionalidade finalística, que na verdade constitui uma cegueira da razão em relação ao que é essencial. Combater contra esta cegueira da razão e conservar a sua capacidade de ver o essencial, de ver Deus e o homem, isto é, o que é bom e verdadeiro, é o interesse comum que deve unir todos os homens de boa vontade. Está em jogo o futuro do mundo”.

Relativamente ao cardeal John Henry Newman, Bento XVI considerou importante que se aprenda com as suas três conversões, como “passos de um caminho espiritual que vale para todos” e pôs em destaque a primeira dessas conversões: a conversão à fé no Deus vivo. “Na sua conversão, Newman reconhece que é “Deus e a alma, o próprio ser do homem a nível espiritual” aquilo que é verdadeiramente real, aquilo que conta.

“Esta conversão significa uma viragem copernicana. O que até então lhe tinha aparecido irreal e secundário revela-se como a coisa verdadeiramente decisiva. Onde surge tal conversão, não muda simplesmente uma teoria, muda a forma fundamental da vida. É desta conversão que todos nós precisamos, sempre de novo: então estaremos no caminho certo”.

A concluir, Bento XVI deplorou ter de, por falta de tempo, renunciar a falar das “viagens tão significativas” a Malta, Portugal e Espanha.

“Nelas se tornou de novo visível que a fé não é uma coisa do passado, mas sim um encontro com o Deus que vive e actua agora. Ele nos chama em causa e opõe-se à nossa preguiça, e é precisamente assim que nos abre o caminho para a verdadeira alegria”

(Texto integral em Audiencias)








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