AS DIFÍCEIS CONDIÇÕES DE VIDA DAS MULHERES DE KIBERA
Cidade do Vaticano, 30 jul (RV) - Iniciamos, a partir de hoje, aqui nesse espaço
dedicado aos direitos humanos, uma série de programas que vão tratar dos direitos
das mulheres e dos casos de violação desses direitos em diferentes lugares do mundo.
Faremos um panorama dessa situação, sem, contudo, colocar o gênero feminino na posição
da vítima ou da parte frágil da sociedade. Se o fizéssemos, estaríamos repetindo um
discurso que perpetua os abusos. Não se trata de vítimas, mas de seres humanos inseridos
em diferentes contextos sociais, atuantes nestes contextos e que, através da tomada
de consciência, podem tornar-se atoras da própria libertação.
Comecemos essa
viagem pela África.
República do Quênia, país do leste africano que se estende
ao longo do Oceano Índico e de outros oceanos tão misteriosos quanto. Faz fronteira
com a Etiópia ao norte, a Somália a nordeste, o Sudão a noroeste, a Tanzânia ao sul
e a Uganda e o Lago Vitória a oeste. No país, que tem uma diversidade cultural imensa,
moram 39 milhões de pessoas. O nome Quênia lhe foi emprestado da montanha da qual
se avizinha, a Montain Kenya, uma das maiores da África.
A Montain Kenya,
por sua vez, recebeu esse nome devido a uma lenda originada entre os habitantes nativos
originais dessa região, os indígenas da tribo Kikuyu. Essa montanha abriga um vulcão
pré-histórico, agora inativo, mas que em tempos remotos devastava as terras férteis
que o circundavam. Os kikuyu acreditavam que esse era um sinal de descontentamento
dos deuses, e deram o nome à montanha de Quênia, que significa "onde Deus repousa".
E que ironia nos trouxe a história. O dito "lugar onde Deus repousa" hoje
é uma terra tomada pelas disputas étnico-políticas locais. Não há mais as lavas do
vulcão devastando os campos, mas há sangue e miséria em muitas áreas. E essa miséria
traz situações de plena violação dos direitos humanos, em especial, daqueles das mulheres.
O nosso quadro hoje fala sobre a situação das meninas e mulheres que vivem
em assentamentos urbanos improvisados, periféricos, não planejados, literalmente esquecidos
pela prefeitura de Nairobi, capital do país. No maior deles, que se chama Kibera,
moram um milhão de pessoas, e não existe ali sequer um posto de polícia. Essa
história foi denunciada pela ONG Anistia Internacional em um amplo relatório sobre
a violação da integridade e da dignidade das moradoras desse assentamento.
Kibera
é um desses lugares esquecidos pela sociedade, onde nem a polícia chega. Lá, elas
estão expostas a todo o tipo de agressão, principalmente às violações sexuais. Agressões
estas que ficam impunes na grande maioria dos casos. De acordo com relatório realizado
pela Anistia Internacional, o medo de serem agredidas está transformando essas mulheres
em prisioneiras dentro das próprias casas.
Uma prática simples, cotidiana,
como fazer a higiene diária, para elas, significa risco de vida. Como a grande maioria
das casas não têm banheiros ou qualquer outro local apropriado para a higiene diária,
tem-se de caminhar muito até chegar aos sanitários públicos. Andar muito, lá, significa
passar por estradas estreitas, mal iluminadas e desertas. A ocorrência de estupros,
espancamentos e mortes nesses locais é diária. As mulheres são aconselhadas a não
fazer o trajeto após o anoitecer, mas, mesmo à luz do dia, as agressões são constantes.
Para evitar tudo isso, muitas optam por um método improvisado chamado de "toalete
voador". Consiste, basicamente, no uso de sacolas plásticas para depositar os dejetos,
que depois são jogados nas ruas, formando um grande esgoto à céu aberto. É, de fato,
uma paisagem desoladora. As ruas são de chão batido, não há pavimentação. Tem muito
lixo exposto, jogado por todos os lados. Doenças e falta de medicamentos completam
o cenário que provoca mal-estar só em ser mencionado, imaginem vivido. De fato, em
depoimento, essas mulheres dizem sentirem-se humilhadas. Em entrevistas registradas
no documento, elas contam que é muito alto o numero de mulheres e crianças que são
agredidas e violentadas no caminho aos toaletes. É uma questão muito complexa, porque
envolve a precariedade da estrutura sanitária, do atendimento medico, falta de policiamento
e a impunidade penal.
E assim, diante de tanta omissão, elas vão se tornando
prisioneiras dentro das próprias casas, pois se o risco existe no caminho para o toalete
mais próximo, também existe no caminho para o armazém mais próximo, para o posto de
saúde que está fora do assentamento, para qualquer professor informal que uma mãe
mais afortunada possa ter encontrado para seus filhos, enfim, o risco, para elas,
está em todo o lugar. Obviamente também os homens correm riscos nesses assentamentos,
mas as mulheres estão mais expostas às violências ditas de gênero. A impunidade é
um dos grandes problemas, pois possibilita que essa situação se perpetue.
Esta
é, certamente, uma denúncia de violação dos direitos das mulheres, mas, igualmente,
é uma denúncia de violação dos direitos de todo ser humano, pois todo indivíduo tem
direito a ter acesso a condições de vida dignos. O Quênia estava entre os 171 países
que participaram da segunda conferência das Nações Unidas para os Assentamentos humanos
– a Habitat II -, realizada em 1996 na Turquia. Da Conferencia resultou um documento,
que obriga as partes signatárias, no qual se lê: “todos têm o direito a um padrão
adequado de vida para si próprios e para suas famílias - incluindo comida, vestimentas,
moradias, água encanada e estrutura sanitária – e todos têm direito ao contínuo investimento
na melhora das suas condições de vida.” (ED)