A caridade é a via mestra da doutrina social, mas que há que conjugar com a verdade,
salienta Bento XVI na encíclica Caritas in veritate publicada há um ano
(13/7/2010) Caritas in veritate é um documento social, a primeira encíclica
sobre a situação do mundo na época da globalização. Mas é também um documento profundamente
teológico. Os últimos decénios tornaram-se testemunhas da ruptura de continuidade
da mensagem cultural. A linguagem cristã para muitos deixou de ser um portador evidente
de conteúdos que trata seriamente. Pelo contrario esta encíclica contém uma síntese
dos pensamentos do Papa e das experiencias da Igreja, uma síntese que é verdadeiramente
universal e reflecte sobre situações muito diferentes, crescidas em contextos muitas
vezes contrastantes dos respectivos países, continentes, nações; reflecte sobre as
condições dos mecanismos económicos e da força, mas também das dificuldades e fraquezas,
das organizações internacionais no período da globalização.
A encíclica
é um elemento, uma força, não só para superar a crise, mas para seguir em frente no
caminho do desenvolvimento para o bem de cada um e de todos. Mas é também um desafio.
Assinada a 29 de Junho de 2009, há portanto um ano, a encíclica tem como titulo “O
amor na verdade” e já na introdução o Papa afirma que “a caridade na verdade”, da
qual Jesus Cristo que fez testemunha com a sua vida terra e sobretudo com a sua
morte e ressurreição, “é a principal força propulsiva para o verdadeiro desenvolvimento
de cada pessoa e da humanidade inteira” Ela dá verdadeira substancia á relação pessoal
com Deus e com o próximo; é o principio não só das micro - relações: relações amistosas,
familiares, de pequeno grupo, mas também das macro - relações: relações sociais, económicas,
politicas. A carta do Santo Padre aos participantes do G8 que no verão de 2009
se realizou na cidade italiana de Aquila, devastada poucos meses antes por um terramoto,
está fundada no facto de que a encíclica contém uma análise coerente dos mecanismos
sócio –económicos , culturais e políticos do mundo da época da globalização e procura
inspirar as mudanças muito profundas a nível internacional, encoraja a reflectir sobre
a urgente necessidade de uma nova autoridade politica mundial e de uma profunda e
eficaz reforma da ONU. Exorta a reflectir também sobre o repensamento do papel dos
mass media na época da globalização e sobre as novas possibilidades tecnológicas.
“A Caridade na verdade, de que Jesus se fez testemunha” é “a principal força propulsiva
para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira”: é assim
que inicia “Caritas in Veritate”, a Encíclica dirigida ao mundo católico e “a todos
os homens de boa vontade”. Logo na Introdução, o Papa recorda que “é a caridade
a via mestra da doutrina social da Igreja”, mas que há que conjugar com a verdade,
pois “um Cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma
reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social, mas marginais”. O
desenvolvimento tem necessidade da verdade, sem a qual “o agir social fica refém
de interesses privados e de lógicas de poder, com efeitos desagregadores sobre a sociedade”.
Como “critérios orientadores da acção moral”, que derivam da “caridade na verdade”,
Bento XVI aponta a justiça e o bem comum. Embora não tenha soluções técnicas a oferecer,
a Igreja tem contudo “uma missão de verdade a desempenhar”, a bem de “uma sociedade
à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação”.
O primeiro capítulo
é dedicado à mensagem da “Populorum progressio”, de Paulo VI, recordando que
“sem a perspectiva de uma vida eterna, fica sufocado neste mundo o progresso humano”.
Sem Deus, nega-se, desumaniza-se o desenvolvimento. Paulo VI, observa o seu
sucessor, sublinhou “a importância imprescindível do Evangelho para a construção da
sociedade segundo a liberdade e a justiça”. Na Encíclica “Humanae vitae”, ele indicou
“os fortes elos existentes entre ética da vida e ética social”. Também hoje a Igreja
propõe com vigor essa ligação. Como fazia notar a “Populorum progressio”, “o desenvolvimento
é vocação”, porque “nasce de um apelo transcendente”. “As causas do subdesenvolvimento
não são primariamente de ordem material”. Encontram-se antes de mais na vontade, no
pensamento e mais ainda, na “falta de fraternidade entre os homens e os povos”. “A
sociedade cada vez mais globalizada aproxima-nos uns dos outros, sem nos tornar irmãos”.
É preciso que nos mobilizemos para que a economia evolua “para metas plenamente
humanas” É no segundo capítulo que o Papa entra propriamente no
tema do Desenvolvimento humano na nossa época. Visando unicamente o lucro sem
ter o bem comum como fim último – observa Bento XVI – corre-se o risco de destruir
riqueza e de criar pobreza. E enumera algumas distorções do desenvolvimento: uma actividade
financeira “predominantemente especulativa”; fluxos migratórios “frequentemente provocados”
e mal geridos; “a exploração desregrada dos recursos da terra”. Perante estes problemas,
interligados entre si, o papa invoca “uma nova síntese humanista”. A crise “obriga-nos
a projectar de novo o nosso caminho. O desenvolvimento – constata o Papa –
é hoje em dia “policêntrico”. “Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas
aumentam as disparidades” e nascem novas pobrezas. A corrupção, infelizmente, está
presente tanto nos países ricos como nos países pobres. E muitas vezes as empresas
transnacionais não respeitam os direitos dos trabalhadores. Por outro lado, denuncia
o Papa, “existem formas excessivas de protecção do conhecimento da parte dos países
ricos, mediante uma utilização demasiado rígida do direito de propriedade intelectual,
especialmente no campo da saúde. Depois do fim dos “blocos”, João Paulo II tinha pedido
que se projectasse de novo, globalmente, o desenvolvimento, o que só em parte aconteceu.
Hoje em dia há uma “avaliação renovada” do papel dos “poderes públicos do Estado”,
sendo desejável uma participação da sociedade civil na política nacional e
internacional. “O primeiro capital a salvaguardar e valorizar é o homem, a pessoa
na sua integridade”. No plano cultural, as possibilidades de interacções abrem
novas perspectivas de diálogo, mas existe o perigo de cair num ecletismo cultural,
considerando as culturas substancialmente equivalentes. Há também o risco oposto do
empobrecimento cultural com a mera “homologação de estilos de vida”. Quanto ao
respeito pela vida, Bento XVI recorda que este não pode de modo algum ser dissociado
do desenvolvimento dos povos. Em diversas partes do mundo existem práticas de controlo
demográfico que chegam a impor o aborto, enquanto que nos países desenvolvidos se
difundiu uma “mentalidade anti-natalista que muitas vezes se procura transmitir aos
outros Estados como se fosse um progresso cultural”. Preocupam também as legislações
que prevêem a eutanásia: uma sociedade que se orienta para a negação ou a supressão
da vida, acaba por não encontrar motivações e energias para se empenhar ao serviço
do verdadeiro bem do homem”. Outro aspecto ligado ao desenvolvimento é o direito
à liberdade religiosa. As violências, adverte o Papa, travam o desenvolvimento
autêntico, especialmente no caso do terrorismo de matriz fundamentalista. Por outro
lado, a promoção do ateísmo, em certos países, “contrasta com as necessidades do desenvolvimento
dos povos, subtraindo-lhes recursos espirituais e humanos”. A bem do desenvolvimento,
há que promover a inter-acção dos diversos níveis do saber, harmonizados pela caridade.
Neste sentido, o Papa faz votos de que as actuais opções económicas continuem a
visar como prioridade o objectivo do acesso ao trabalho para todos. E adverte
sobre o risco de uma economia pensada e vivida a breve ou mesmo brevíssimo prazo,
determinando “o abaixamento do nível de tutela dos direitos dos trabalhadores”, em
nome de uma “maior competitividade internacional”. Exorta portanto a que se corrijam
as disfunções do modelo de desenvolvimento tendo também em conta o que exige “o estado
de saúde ecológica do planeta”. Referindo, a concluir, a globalização, escreve Bento
XVI: “Sem a guia da caridade na verdade, este impulso planetário pode contribuir para
criar riscos de prejuízos até agora desconhecidos e de novas divisões”. Impõe-se portanto
“um empenho inédito e criativo”.
Fraternidade, desenvolvimento económico
e sociedade civil é o tema do terceiro capítulo, que abre com um elogio da
experiência do dom, muitas vezes não reconhecida, “em razão de uma visão meramente
produtivística e utilitarista da existência”. Ora o desenvolvimento, “se quiser ser
autenticamente humano”, terá que “dar espaço ao princípio da gratuidade”. “Sem formas
internas de solidariedade e de confiança recíproca – sublinha o Papa – o mercado não
pode realizar plenamente a sua função económica”. O mercado não deve considerar os
pobres como um peso, mas sim como um recurso. O mercado não se deve tornar “lugar
de abuso do forte sobre o débil”. Há que orientar a lógica mercantil para o bem
comum, que deve ser assumido também e sobretudo pela comunidade política. A actual
crise mostra que “não se podem descurar os tradicionais princípios da ética social”
– transparência, honestidade, responsabilidade. Aliás, a economia não elimina o papel
dos Estados e tem necessidade de “leis justas”. Ocorrem “formas económicas solidárias”.
Mercado e política necessitam de “pessoas abertas ao dom recíproco”. A crise
actual – observa ainda a Encíclica – exige “profundas transformações” das empresas,
cuja gestão não se pode limitar a tomar em consideração os interesses dos proprietários:
deve também atender à comunidade local. Deplora-se que os gestores se limitem a corresponder
apenas às indicações dos accionistas e que se faça um uso “especulativo” dos recursos
financeiros. Este capítulo conclui com uma nova apreciação do fenómeno da globalização,
que não há que entender apenas como “processo sócio-económico”. Não devemos ser apenas
vítimas, mas protagonistas, fazendo apelo à razão, guiados pela caridade e pela verdade”.
A globalização requer “uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta
à transcendência”, capaz de “corrigir as disfunções”. Existe a possibilidade de uma
grande redistribuição da riqueza. Há que não bloquear “com projectos egoístas,
proteccionistas” a difusão do bem estar.
No quarto capítulo, a Encíclica
trata de Desenvolvimento dos povos, direitos e deveres, ambiente. Nas sociedades
opulentas nota-se “a revindicação do direito ao supérfluo” enquanto que em certas
regiões subdesenvolvidas faltam alimento e água. “Desligados de um quadro de deveres,
os direitos individuais perdem o tino”. Direitos e deveres remetem para uma referência
ética. Não têm o seu fundamento nas deliberações de uma assembleia de cidadãos, que
os possam mudar a bel prazer, em qualquer momento. Referindo as problemáticas
ligadas ao crescimento demográfico, a Encíclica classifica “incorrecto considerar
o aumento da população como primeira causa do subdesenvolvimento”. Por outro lado,
não se pode “reduzir a sexualidade a mero facto hedonístico e lúdico” ou regulamentar
a sexualidade com políticas materialistas de planificação forçada dos nascimentos.
“A abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e económica” – afirma
a Encíclica. Os Estado “estão chamados a adoptar políticas que promovam a centralidade
da família”. “A economia tem necessidade de ética para o seu correcto funcionamento.
Não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa”. Há-de ser a própria
centralidade da pessoa o princípio guia nas intervenções da cooperação internacional
em ordem ao desenvolvimento, as quais devem envolver os beneficiários. Os organismos
internacionais deveriam interrogar-se sobre a real eficácia dos seus aparelhos burocráticos,
tantas vezes demasiado custosos. Daqui o convite a uma “plena transparência” sobre
os fundos recebidos. Os últimos parágrafos do capítulo são dedicados ao ambiente.
Para o crente, a natureza é um dom de Deus a usar responsavelmente. Neste contexto,
a Encíclica detém-se sobre as problemáticas da energia. “O açambarcamento dos
recursos” da parte de Estados e grupos de poder – denuncia o Papa – constitui “um
grave impedimento para o desenvolvimento dos países pobres”. A comunidade internacional
deve, portanto, “encontrar os caminhos institucionais para disciplinar a exploração
dos recursos não renováveis”. “As sociedades tecnologicamente avançadas podem e devem
reduzir as suas necessidades energéticas”, incrementando ao mesmo tempo a busca de
energias alternativas. Há que adoptar novos estilos de vida, superando o consumismo
actual. O problema decisivo é o comportamento moral da sociedade”. “Se não se respeita
o direito à vida e à morte natural”, a “consciência comum acaba por perder o conceito
de ecologia humana” e o de ecologia ambiental.
A colaboração da
família humana é o cerne do quinto capítulo, em que Bento XVI põe em destaque
que “o desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento de ser uma só
família”. Aliás, a religião cristã só pode contribuir para o desenvolvimento se
Deus encontrar um lugar também na esfera pública. Se nega o direito a professar
publicamente a própria religião, a política assume um rosto agressivo e opressor.
“No laicismo e no fundamentalismo perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo”
entre razão e fé. Ruptura que “comporta um custo que muito pesa no desenvolvimento
da humanidade”. Neste contexto, a Encíclica refere o princípio de subsidiariedade,
que oferece uma ajuda à pessoa, “através da autonomia dos corpos intermédios”. A
subsidiariedade – explica o Papa – “é o antídoto mais eficaz contra qualquer forma
de assistencialismo paternalista” e é apropriado para humanizar a globalização.
As ajudas internacionais “podem por vezes manter um povo num estado de dependência”.
Há casos em que as ajudas equivalem a um modo de criar mercados marginais para os
países em vias de desenvolvimento. Bento XVI exorta os Estados ricos a destinarem
maiores quotas do PIB ao desenvolvimento, respeitando os compromissos assumidos. Relativamente
ao fenómeno “epocal” das migrações, a Encíclica adverte que “nenhum país conseguirá,
sozinho, fazer face aos problemas migratórios. Cada um dos migrantes é uma pessoa
que “possui direitos que há respeitar em toda e qualquer situação”. A concluir
este capítulo, o Papa sublinha a urgência da reforma da ONU e da “arquitectura económica
e financiaria internacional”. Urge “uma autêntica Autoridade política mundial” que
se conforme “de modo coerente aos princípios de subsidiariedade e de solidariedade”.
O sexto e último capítulo está centrado sobre o tema do Desenvolvimento
dos povos e a técnica. A técnica – adverte o Papa – não pode ter uma “liberdade
absoluta”. Campo primário “da luta cultural entre o absolutismo da tecnicidade
e a responsabilidade moral do homem é hoje em dia o campo da bioética”. “A
razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria omnipotência” – lê-se
na Encíclica.
Na Conclusão da Encíclica, Bento XVI recorda que o desenvolvimento
“tem necessidade de cristãos de braços elevados para Deus, em gesto de oração”, de
“amor e de perdão, de renúncia a si mesmos, de acolhimento do próximo, de justiça
e de paz”.