Rio de Janeiro, 20 mai (RV) - A “Lectio Divina” é uma expressão latina já
presente e consagrada no vocabulário católico, que pode ser traduzida como “leitura
divina”, “leitura espiritual”, ou ainda como ocorre hoje em nosso país e em vários
escritos atuais, como “leitura orante da Bíblia”. Ela é um alimento necessário para
a nossa vida espiritual. A partir deste exercício, conscientes do plano de Deus e
a Sua vontade, pode-se produzir os frutos espirituais necessários para a salvação.
A Lectio Divina é deixar-se envolver pelo plano da Salvação de Deus. Os princípios
da Lectio Divina foram expressos por volta do ano 220 e praticados por monges católicos,
especialmente as regras monásticas dos santos: Pacômio, Agostinho, Basílio e Bento.
O tempo diário dedicado à lectio divina sempre foi grande e no melhor momento do dia.
A espiritualidade monástica sempre foi bíblica e litúrgica. A sistematização do método
da lectio divina nós encontramos nos escritos de Guigo, o Cartucho, por volta do século
XII.
A Lectio Divina tradicionalmente é uma oração individual, porém, pode-se
fazê-la em grupo. O importante é rezar com a Palavra de Deus, lembrando o que dizem
os bispos no Concílio Vaticano II, relembrando a mais antiga tradição católica – que
conhecer a Sagrada Escritura é conhecer o próprio Cristo. Monges diziam que a Lectio
Divina é a escada espiritual dos monges, mas é também de todo o cristão. O Papa Bento
XVI fez a seguinte observação num discurso de 2005: “Eu gostaria, em especial, recordar
e recomendar a antiga tradição da Lectio Divina, a leitura assídua da Sagrada Escritura,
acompanhada da oração que traz um diálogo íntimo em que na leitura, se escuta Deus
que fala e, rezando, responde-lhe com confiança a abertura do coração”.
O
Concílio Vaticano II, em seu decreto Dei Verbum 25, ratificou e promoveu, com todo
o peso de sua autoridade, a restauração da Lectio Divina, retomando essa antiquíssima
tradição da Igreja Católica. O Concílio exorta igualmente, com ardor e insistência,
a todos os fiéis cristãos, especialmente aos religiosos, que, pela frequente leitura
das divinas Escrituras, alcancem esse bem supremo: o conhecimento de Jesus Cristo
(Fl 3,8). Porquanto, “ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo” (São Jerônimo, Comm.
In Is., prol).
O método mais antigo e que inspirou outros mais recentes, é
que, seja pessoalmente, em comunidade ou no círculo bíblico nós comecemos a reflexão
com a Palavra de Deus e que, depois da invocação do Espírito Santo, segue os passos
tradicionais: 1- Lectio (Leitura); 2- Meditatio (Meditação); 3- Oratio (Oração) e
4- Contemplatio (Contemplação). Existem outros métodos que, inspirados aqui, procuram
ajudar o cristão a acolher em sua vida a Palavra de Deus e a colocar em prática no
seu dia a dia. Em nossa 48ª Assembleia dos Bispos do Brasil, celebrada em Brasília
de 3 a 13 de maio último, além de tratar como tema central a “Palavra de Deus”, proporcionou
aos Bispos, na manhã do domingo, dia 9, um tempo para lerem, meditarem e rezarem com
esse método. A mensagem que foi publicada sobre o tema central está baseada justamente
nesse clima. Chegou o momento de passarmos a colocar em nossos grupos de reflexão,
círculos bíblicos e outros grupos a Palavra de Deus como fonte de reflexão e inspiração
para iluminar a nossa realidade concreta.
O método tradicional é simples:
são quatro degraus – “a leitura procura a doçura da vida bem-aventurada; a meditação
a encontra; a oração a pede, e a contemplação a experimenta. A leitura, de certo modo,
leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração consegue
o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz. A leitura está na casca,
a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da
doçura obtida.” (Guigo, o Cartucho, Scala Claustralium).
Portanto, quanto à
leitura, leia, com calma e atenção, um pequeno trecho da Sagrada Escritura (aconselha-se
que nas primeiras vezes utilizem-se os textos dos Evangelhos). Leia o texto quantas
vezes e versões forem necessárias. Procure identificar as coisas importantes desta
perícope: o ambiente, os personagens, os diálogos, as imagens usadas, as ações. É
importante identificar tudo com calma e atenção, como se estivesse vendo a cena. A
leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação de espírito.
Quanto
à Meditatio, começa, então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não
pára na superfície, apóia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta
cada aspecto. Considera atenta sobre o que esta Palavra está iluminando minha vida
e a realidade em que vivo hoje. Quais são as circunstâncias que ela me questiona e
me incentiva? Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que
toca à própria vida, a meditação começa a pensar no prêmio: Como seria glorioso e
deleitável ver a face desejada do Senhor, mais bela do que a de todos os homens (Sl
45,3), não mais tendo a aparência como que o revestiu sua mão, mas envergando a estola
da imortalidade, e coroado com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição
e de glória, o dia que o Senhor fez (Sl 118,24). Quanto à Oratio, toda boa meditação
desemboca naturalmente na oração. É o momento de responder a Deus após havê-lo escutado.
Esta oração é um momento muito pessoal que diz respeito apenas à pessoa e Deus. Não
se preocupe em preparar palavras, fale o que vai ao coração depois da meditação: se
for louvor, louve; se for pedido de perdão, peça perdão; se for necessidade de maior
clareza, peça a luz divina; se for cansaço e aridez, peça os dons da fé e esperança.
Enfim, os momentos anteriores, se feitos com atenção e vontade, determinarão esta
oração da qual nasce o compromisso de estar com Deus e fazer a sua vontade. Vendo,
pois, a pessoa que não pode por si mesma atingir a desejada doçura de conhecimento
e da experiência, e que quanto mais se aproxima do fundo do coração (Sl 64,7), tanto
mais distante é Deus (cf. Sl 64,8), ela se humilha e se refugia na oração. E diz:
Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro, pela leitura
e pela meditação, qual é, e como poder ser adquirida a verdadeira doçura do coração,
a fim de por ela conhecer-te, ao menos um pouco.
Quanto ao último passo, a
Contemplatio: desta etapa a pessoa não é dona. É um momento que pertence a Deus e
sua presença misteriosa, sim, mas sempre presença. É um momento no qual se permanece
em silêncio diante de Deus. Se ele o conduzirá à contemplação, louvado seja Deus!
Se ele lhe dará apenas a tranquilidade de uns momentos de paz e silêncio, louvado
seja Deus! Se para você será um momento de esforço para ficar na presença de Deus,
louvado seja Deus! Mas em todas as circunstâncias será uma maneira de ver Deus presente
na história e em nossa vida! “Ele recria a alma fatigada, nutre a quem tem fome, sacia
sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que não é terrestre, vivifica-a, mortificando-a
por um admirável esquecimento de si mesma, e embriagando-a sóbria a torna” (Guido,
o Cartucho).
Há uma preocupação grande com a vida prática, com a conversão,
de modo que muitas vezes se costuma acrescentar a “actio”, ou seja, ação junto com
a contemplação. Os temores de uma vida “alienada” podem ser sempre apresentados em
todas as circunstâncias, mas quando se aprofunda realmente na Palavra de Deus e se
crê que ela é como uma espada de dois gumes que penetra no mais profundo de nosso
ser e que também ilumina nossa vida e nosso caminho, teremos certeza de que ela ilumina
a nossa estrada e nos conduz com a graça de Deus por uma vida nova.
Portanto,
diante deste patrimônio da nossa Igreja que é este método da Lectio Divina, desejo
a todos que inspirados na mensagem que os Bispos enviaram acerca do tema central da
48º Assembleia, possamos todos nós aprofundar a Leitura Orante da Bíblia, que, aproximando-nos
da Palavra de Deus, encontremos os caminhos da vida dos cristãos hoje, neste início
de milênio, que, diante da atual mudança de época, respondamos com uma vida nova,
haurida nas escrituras sagradas, que nos comunicam a Palavra eterna, o Verbo eterno,
Jesus Cristo, nosso Senhor!
+ Orani João Tempesta, O. Cist. Arcebispo Metropolitano
de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ (CM)