Santa Missa "in Coena Domini", Homilia do Papa Bento XVI
Amados irmãos e irmãs,
No seu Evangelho, São João refere-nos, mais amplamente
do que os outros três evangelistas e com o seu estilo peculiar, os discursos de despedida
de Jesus, que se apresentam quase como o seu testamento e a síntese do núcleo essencial
da sua mensagem. No início destes discursos, aparece o lava-pés, no qual o serviço
redentor de Jesus em favor da humanidade necessitada de purificação é resumido num
gesto de humildade. No fim, as palavras de Jesus transformam-se em oração, a sua Oração
Sacerdotal, cuja inspiração de fundo foi individuada pelos exegetas no ritual da Festa
judaica da Expiação. O que constituía o sentido daquela festa e dos seus ritos – a
purificação do mundo, a sua reconciliação com Deus – realiza-se com o acto de Jesus
rezar: um rezar que antecipa a Paixão e ao mesmo tempo transforma-a em oração. Assim,
na Oração Sacerdotal, torna-se visível também, de maneira muito particular, o mistério
permanente de Quinta-feira Santa: o novo sacerdócio de Jesus Cristo e a sua continuação
na consagração dos Apóstolos, com a participação dos discípulos no sacerdócio do Senhor.
Deste texto inexaurível, pretendo, nesta hora, escolher três afirmações de Jesus,
que nos podem introduzir mais profundamente no mistério da Quinta-feira Santa.
A
primeira delas é a frase: «É esta a vida eterna: que Te conheçam a Ti, único Deus
verdadeiro, e Àquele que enviaste, Jesus Cristo» (Jo 17, 3). Todo o ser humano quer
viver. Deseja uma vida verdadeira, plena, uma vida que valha a pena, que seja feliz.
Associada com este anseio pela vida, aparece ao mesmo tempo a resistência contra a
morte, a qual porém é invencível. Quando Jesus fala da vida eterna, pensa no modo
autêntico da vida – uma vida que é vida em plenitude e, consequentemente, livre da
morte, mas que pode realmente começar já neste mundo; antes, deve ter início aqui:
somente se aprendermos já agora a viver de modo autêntico, se aprendermos aquela vida
que a morte não pode tirar, é que a promessa da eternidade tem sentido. Mas como é
que isto se realiza? O que vem a ser esta vida verdadeiramente eterna, que a morte
não pode lesar? A resposta de Jesus, acabamos de a ouvir: A vida verdadeira é que
Te conheçam a Ti – Deus – e o teu Enviado, Jesus Cristo. Com surpresa nossa, é-nos
dito que vida é conhecimento. Isto significa antes de mais nada: vida é relação. Ninguém
recebe a vida de si mesmo e só para si mesmo. Recebemo-la do outro, na relação com
o outro. Se é uma relação na verdade e no amor, um dar e receber, a mesma dá plenitude
à vida, torna-a bela. Mas, por isso mesmo, a destruição da relação por obra da morte,
pode ser particularmente dolorosa, pode pôr em questão a própria vida. Somente a relação
com Aquele que em Si próprio é a Vida, pode sustentar a minha vida mesmo para além
das águas da morte, pode conduzir-me vivo através delas. Na filosofia grega, já existia
a ideia de que o homem pode encontrar uma vida eterna, se se agarrar àquilo que é
indestrutível – à verdade que é eterna. Deveria, por assim dizer, encher-se de verdade,
para trazer em si a substância da eternidade. Mas, somente se a verdade for Pessoa,
é que pode levar-me através da noite da morte. Nós agarramo-nos a Deus – a Jesus Cristo,
o Ressuscitado; e somos assim levados por Aquele que é a própria Vida. Nesta relação,
nós vivemos mesmo atravessando a morte, porque não nos abandona Aquele que é a própria
Vida. Mas, voltemos à frase de Jesus… É esta a vida eterna: que Te conheçam a Ti
e ao teu Enviado. O conhecimento de Deus torna-se vida eterna. Obviamente, por «conhecimento»,
aqui entende-se algo mais do que um saber exterior, como acontece quando sabemos,
por exemplo, da morte de uma pessoa famosa e da realização de uma invenção. Conhecer,
no sentido da Sagrada Escritura, é tornar-se interiormente um só com o outro. Conhecer
Deus, conhecer Cristo significa sempre também amá-Lo, tornar-se em certa medida um
só com Ele em virtude do conhecer e do amar. Por conseguinte, a nossa vida torna-se
autêntica, verdadeira e também eterna, se conhecermos Aquele que é a fonte de todo
o ser e de toda a vida. Assim a palavra de Jesus torna-se para nós convite: tornemo-nos
amigos de Jesus, procuremos conhecê-Lo cada vez mais! Vivamos em diálogo com Ele!
Aprendamos d’Ele a vida recta, tornemo-nos suas testemunhas! Tornar-nos-emos assim
pessoas que amam e agiremos de modo justo. Então viveremos verdadeiramente.
Ao
longo da Oração Sacerdotal, Jesus fala duas vezes da revelação do nome de Deus: «Manifestei
o teu nome aos homens que do mundo Me deste» (v. 6); «dei-lhes a conhecer o teu nome
e dá-lo-ei a conhecer, para que o amor com que Me amaste esteja neles e Eu esteja
neles» (v. 26). O Senhor faz aqui alusão ao episódio da sarça ardente; lá Deus, respondendo
à pergunta de Moisés, revelara o seu nome. Portanto Jesus quer dizer que leva a termo
o que se iniciara junto da sarça ardente: Deus, que Se dera a conhecer a Moisés, agora
revela-Se plenamente n’Ele. E, com isto, Ele realiza a reconciliação: o amor com que
Deus ama o seu Filho no mistério da Trindade, envolve agora os homens nesta circulação
divina do amor. Mas concretamente que significa que a revelação da sarça ardente é
levada a termo, alcança plenamente a sua meta? O essencial do acontecimento do monte
Horeb não foi a palavra misteriosa, o “nome”, que Deus entregara a Moisés, por assim
dizer, como sinal de reconhecimento. Comunicar o nome significa entrar em relação
com o outro. Por isso, a revelação do nome divino significa que Deus, infinito e subsistente
em Si mesmo, entra no entrelaçamento de relações dos homens: Ele, por assim dizer,
sai de Si mesmo e torna-Se um de nós, um que está presente no meio de nós e ao nosso
dispor. Por isso, Israel, sob o nome de Deus não viu apenas um termo envolvido em
mistério, mas o facto de Deus estar-connosco. Segundo a Sagrada Escritura, o Templo
é o lugar onde habita o nome de Deus. Nenhum espaço terreno encerra Deus; Ele permanece
infinitamente acima do mundo. Mas, no Templo, está presente ao nosso dispor como Aquele
que pode ser chamado – como Aquele que quer estar connosco. Este estar de Deus com
o seu povo realiza-se na incarnação do Filho. Nesta, completa-se realmente o que tivera
início junto da sarça ardente: Deus enquanto Homem pode ser chamado por nós e está
perto de nós. Ele é um de nós, sem deixar de ser o Deus eterno e infinito. O seu amor
sai, por assim dizer, d’Ele mesmo e entra em nós. O mistério eucarístico, a presença
do Senhor sob as espécies do pão e do vinho é a máxima e mais alta condensação deste
novo estar-connosco de Deus. «Tu és, na verdade, um Deus escondido, Deus de Israel»
- rezava o profeta Isaías (45, 15). Isto continua a ser verdade; mas ao mesmo tempo
podemos dizer: verdadeiramente tu és um Deus próximo, és Deus-connosco. Revelaste-nos
o teu mistério e mostraste-nos o teu rosto. Revelaste-Te a Ti mesmo e Te entregaste
nas nossas mãos… Nesta hora, deve invadir-nos a alegria e a gratidão por Ele Se ter
manifestado; por Ele, o Infinito e o Inacessível para a nossa razão, ser o Deus próximo
que ama, o Deus que podemos conhecer e amar.
O pedido mais conhecido da Oração
Sacerdotal é o da unidade para os discípulos, para aqueles de então e os que haviam
de vir: «Não peço somente por eles – a comunidade dos discípulos reunida no Cenáculo
– mas também por aqueles que vão acreditar em Mim por meio da sua palavra, para que
eles sejam todos um, como Tu, Pai, o és em Mim e Eu em Ti, para que também eles sejam
um em Nós e o mundo acredite que Tu Me enviaste» (v. 20s; cf. vv. 11 e 13). Em concreto,
que pede aqui o Senhor? Antes de mais nada, Ele reza pelos discípulos daquele tempo
e de todos os tempos futuros. Olha em frente para a história futura em toda a sua
amplitude. Vê os perigos dela e recomenda esta comunidade ao coração do Pai. Pede
ao Pai a Igreja e a sua unidade. Foi dito que a Igreja não aparece no Evangelho de
João. Não é verdade; aparece aqui com as suas características essenciais: como a comunidade
dos discípulos que, através da palavra apostólica, acreditam em Jesus Cristo e assim
se tornam um só. Jesus suplica a Igreja como una e apostólica. Assim esta oração revela-se,
propriamente, um acto fundador da Igreja. O Senhor pede a Igreja ao Pai. Esta nasce
da oração de Jesus e por meio do anúncio dos Apóstolos, que dão a conhecer o nome
de Deus e introduzem os homens na comunidade de amor com Deus. E, por conseguinte,
Jesus pede que o anúncio dos discípulos continue ao longo dos tempos; que tal anúncio
reúna homens que, baseados no mesmo, reconheçam Deus e o seu Enviado, o Filho Jesus
Cristo. Ele reza para que os homens sejam conduzidos à fé e, por meio desta, ao amor.
Pede ao Pai que estes crentes «sejam um em Nós» (v. 21); isto é, que vivam na comunhão
interior com Deus e com Jesus Cristo e que, a partir deste estar interiormente na
comunhão com Deus, se crie a unidade visível. Duas vezes disse o Senhor que esta unidade
deverá fazer com que o mundo acredite na missão de Jesus. Portanto deve ser uma unidade
que se possa ver: uma unidade que ultrapasse tanto aquilo que habitualmente é possível
entre os homens, que se torne um sinal para o mundo e afiance a missão de Jesus Cristo.
A oração de Jesus dá-nos a garantia de que o anúncio dos Apóstolos não poderá jamais
cessar na história; que suscitará sempre a fé e congregará homens na unidade – uma
unidade que se torna testemunho para a missão de Jesus Cristo. Mas esta oração também
é sempre um exame de consciência para nós. Nesta hora, o Senhor interpela-nos: vives
tu, através da fé, em comunhão comigo e, deste modo, em comunhão com Deus? Ou não
estarás porventura a viver mais para ti mesmo, afastando-te assim da fé? E, por isto,
não serás talvez culpado da divisão que obscurece a minha missão no mundo, que fecha
aos homens o acesso ao amor de Deus? Foi uma componente da Paixão histórica de Jesus
e continua uma parte daquela sua Paixão que se prolonga na história o facto de ter
Ele visto, e ver, tudo aquilo que ameaça, que destrói a unidade. Quando meditarmos
na Paixão do Senhor, devemos também sentir a dor de Jesus pela facto de nos encontrarmos
em contraste com a sua oração, de fazermos resistência ao seu amor; de nos opormos
à unidade, que deve ser para o mundo testemunho da sua missão.
Nesta hora,
em que o Senhor Se oferece a Si mesmo – o seu corpo e o seu sangue – na Santíssima
Eucaristia, em que Se entrega nas nossas mãos e corações, oxalá nos deixemos tocar
pela sua oração. Oxalá entremos nós mesmos na sua oração, suplicando-Lhe: Sim, Senhor,
concede-nos a fé em Ti, que sois um só com o Pai no Espírito Santo; concede-nos viver
no teu amor para assim nos tornarmos um só como Tu és um só com o Pai, a fim de que
o mundo acredite. Ámen.