HOMILIA DO SANTO PADRE NA CELEBRAÇÃO DE IMPOSIÇÃO DAS CINZAS
Cidade do Vaticano, 17 fev (RV) – Segue na íntegra a homilia do Santo Padre
na missa de imposição das cinzas, com a tradução livre de Raimundo Lima.
"Vós
amais as criaturas, Senhor, e nada desprezais daquilo que criastes; vós esqueceis
os pecados daqueles que se convertem e os perdoa, porque vós sois o Senhor nosso
Deus" (Antífona de Entrada)
Venerados Irmãos no episcopado, Caros irmãos
e irmãs!
Com essa comovente invocação, extraída do Livro da Sabedoria
(cfr 11, 23-26), a liturgia introduz a celebração eucarística da Quarta-feira de Cinzas.
São palavras que, de certo modo, abrem todo o itinerário quaresmal, colocando como
seu fundamento a onipotência do amor de Deus, a sua absoluta senhoria sobre toda criatura,
que se traduz na indulgência infinita, animada pela constante e universal vontade
de vida. Efetivamente, perdoar alguém equivale a dizer-lhe: não quero que você morra,
mas que viva; quero sempre e somente o seu bem.
Essa absoluta certeza ajudou
Jesus durante os quarenta dias transcorridos no deserto da Judéia, após o batismo
recebido por João no Jordão. Aquele longo tempo de silêncio e de jejum foi para Ele
um abandonar-se completamente ao Pai e ao seu desígnio de amor; esse tempo foi ele
mesmo um "batismo", isto é uma "imersão" na sua vontade, e nesse sentido uma antecipação
da Paixão e da Cruz. Adentrar-se no deserto e permanecer ali longamente, sozinho,
significava expor-se voluntariamente aos assaltos do inimigo, o tentador que fez Adão
cair e por sua inveja a morte entrou no mundo (cfr Sb 2, 24); significava travar com
ele a batalha em campo aberto, desafiá-lo sem outras armas a não ser a confiança sem
limite no amor onipotente do Pai. Basta-me o vosso amor, alimento-me da vossa bondade
(cfr Jo 4, 34): essa convicção habitava a mente e o coração de Jesus durante essa
sua "quaresma". Não foi um ato de orgulho, uma iniciativa titânica, mas uma escolha
de humildade, coerente com a Encarnação e o Batismo no Jordão, na mesma linha de obediência
ao amor misericordioso do Pai, que "amou tanto o mundo que entregou o seu Filho único"
(Jo 3, 16).
O Senhor Jesus fez tudo isso por nós. O fez para salvar-nos, e
ao mesmo tempo para mostrar-nos o caminho para segui-lo. De fato, a salvação é dom,
é graça de Deus, mas para ter efeito na minha existência requer o meu assentimento,
um acolhimento demonstrado nos fatos, isto é, na vontade de viver como Jesus, de segui-lo.
Seguir Jesus no deserto quaresmal é, portanto, condição necessária para participar
da sua Páscoa, do seu "êxodo". Adão foi expulso do Paraíso terrestre, símbolo da comunhão
com Deus; agora, para retornar a essa comunhão e, portanto, à vida eterna, é preciso
atravessar o deserto, a provação da fé. Não sozinhos, mas com Jesus! Ele – como sempre
– precedeu-nos e já venceu o combate contra o espírito do mal. Eis o sentido da Quaresma,
tempo litúrgico que todo ano nos convida a renovar a escolha de seguir Cristo no caminho
da humildade para participar da sua vitória sobre o pecado e sobre a morte.
Nessa
perspectiva se compreende também o sinal penitencial das Cinzas, que são colocadas
na cabeça daqueles que iniciam com boa vontade o itinerário quaresmal. É essencialmente
um gesto de humildade, que significa: reconheço-me por aquilo que sou, uma criatura
frágil, feita de terra e destinada à terra, mas também feita à imagem de Deus e destinada
a Ele. Pó, sim, mas amado, plasmado por seu amor, animado por seu sopro vital, capaz
de reconhecer a sua voz e de responder-lhe; livre e, por isso, capaz também de desobedecer-lhe,
cedendo à tentação do orgulho e da autossuficiência. Eis o pecado, doença mortal entrada
cedo para poluir a terra abençoada que o ser humano. Criado à imagem do Santo e do
Justo, o homem perdeu a sua inocência e agora pode voltar a ser justo somente graças
à justiça de Deus, a justiça do amor que – como escreve São Paulo – "opera pela fé
em Jesus Cristo" (Rm 3, 22). Dessas palavras do Apóstolo extraí a abordagem para a
minha Mensagem, dirigida a todos os fiéis por ocasião da Quaresma: uma reflexão sobre
o tema da justiça à luz das Sagradas escrituras e de seu cumprimento em Cristo.
Também
nas leituras bíblicas da Quarta-feira de Cinzas está bem presente o tema da justiça.
Em primeiro lugar, a página do profeta Joel e o Salmo responsorial – O Miserere –
formam um díctico penitencial, que evidencia como na origem de toda injustiça material
e social se encontra o que a Bíblia chama "iniqüidade", isto é, o pecado, que consiste
fundamentalmente numa desobediência a Deus, significa uma falta de amor. "Pois – confessa
o Salmista – reconheço minhas transgressões e diante de mim está sempre meu pecado;
pequei contra ti, contra ti somente, pratiquei o que é mau aos teus olhos" (Sl 50/51,
5-6). O primeiro ato de justiça é, portanto, reconhecer a própria iniqüidade, e reconhecer
que ela está radicada no "coração", no próprio centro da pessoa humana. Os "jejuns",
os "prantos", as "lamentações" (cfr Gl 2, 12) e toda expressão penitencial têm valor
aos olhos de Deus somente se são sinal de corações sinceramente arrependidos. Também
o Evangelho, extraído do "discurso da montanha", insiste sobre a exigência de praticar
a própria "justiça" – esmola, oração, jejum – não diante dos homens, mas somente aos
olhos de Deus, que "vê no segredo" (cfr Mt 6, 1-6.16-18). A verdadeira "recompensa"
não é a admiração dos outros, mas a amizade com Deus e a graça que dela deriva, uma
graça que doa paz e força para fazer o bem, amar também quem não o merece, perdoar
quem nos ofendeu.
A segunda leitura, o apelo de Paulo a deixar-nos reconciliar
com Deus (cfr 2 Cor 5, 20), contém um dos célebres paradoxos paulinos, que reconduz
toda a reflexão sobre a justiça ao mistério de Cristo: "Aquele que não conhecera pecado
– isto é, o seu Filho feito homem – Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que,
por ele nos tornemos justiça de Deus" (2 Cor 5, 21). No coração de Cristo, isto é
no centro da sua Pessoa divino-humana, jogou-se em termos decisivos e definitivos
todo o drama da liberdade. Deus levou às extremas conseqüências o seu desígnio de
salvação, permanecendo fiel a seu amor também a custa de entregar o Filho unigênito
à morte, e à morte de cruz. Como escrevi na Mensagem quaresmal, "aí se abre a justiça
divina, profundamente diferente da justiça humana... graças à ação de Cristo, nós
podemos entrar na justiça "maior", que é a justiça do amor" (cfr Rm 13, 8-10).
Caros
irmãos e irmãs, também em nossos dias a humanidade precisa esperar num mundo mais
justo, acreditar que isso é possível, apesar das desilusões que vêm das experiências
cotidianas. Iniciando uma nova Quaresma, um novo caminho de renovação espiritual,
a Igreja indica a conversão pessoal e comunitária como único caminho não ilusório
para formar sociedades mais justas, onde todos possam ter o necessário para viver
segundo a dignidade humana (cfr Mensagem para a Quaresma 2010). Confessemos, portanto,
sinceramente os nossos pecados, convertamos-nos a Deus com todo o coração e deixemos-nos
reconciliar com Ele. Assim, com a graça de Cristo e a celeste intercessão de Maria
Santíssima, poderemos testemunhar com toda humildade a justiça que é dom de Deus,
e ajudar a comunidade humana a progredir segundo a caridade na verdade.