DOM ERWIN KRAUTLER RECORDA IRMÃ DOROTHY E DENUNCIA POLÍTICA DO "ROLO COMPRESSOR"
Altamira, 15 fev (RV) - Em um artigo publicado na última sexta-feira, dia 12,
o bispo prelado do Xingu (PA) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi),
Dom Erwin Kräutler, lembra os cinco anos do assassinato da Irmã Dorothy Stang, morta
por Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Carlos Batista.
Vitalmiro Bastos de
Moura, o Bida, fazendeiro acusado de encomendar a morte da missionária Dorothy Stang,
no Pará, há cinco anos, tem julgamento marcado para o dia 31 de março.
A
data foi marcada pelo juiz Cláudio Rendeiro, segundo o promotor Edson Cardoso, do
Ministério Público Estadual do Pará. Cardoso acompanha o processo desde seu início.
O crime ocorreu em 2005, no município de Anapu, sudoeste do Pará.
Em seu artigo
Dom Erwin lembra o trabalho realizado pela religiosa norte-americana no Brasil. “Dorothy
viveu em vida a opção pelos pobres sem deixar-se intimidar ou constranger. Com a sua
morte, porém, Dorothy ultrapassou todos os limites e fronteiras. Sacudiu o mundo,
descerrando a face ensanguentada da Amazônia, fazendo ecoar os gritos e revelando
as dores que golpeiam os povos que aqui vivem”. O bispo lembra também daquele sábado,
em que os dois assassinos lhe tiraram a vida. “Foi assassinada porque abraçou ‘a justiça
e o direito’ e lutou para livrar o oprimido das mãos do opressor”.
Para Dom
Erwin, nestes cinco anos após o assassinato de Irmã Dorothy, há outros fatos a serem
lamentados, entre eles, a construção da Usina de Belo Monte, no Rio Xingu. “A Amazônia
que Dorothy tanto defendeu e pela qual doou sua vida, recebe mais um golpe, desta
vez de proporções que ainda nem sequer podemos vislumbrar”.
Dom Erwin completa
destacando a política que predomina no país: “É a política do rolo compressor, é a
tática do fato consumado, é o método do autoritarismo que não aceita contestação!
E Dorothy, no seu túmulo, chora a desgraça anunciada!”.
Abaixo, a integra do
artigo do bispo do Alto Xingu, Dom Erwin Kräutler.
“Cinco anos passaram
desde aquele fatídico sábado em que Rayfran e Clodoaldo, empregados de Tato, cruzaram
o caminho da Irmã Dorothy, não para cumprimentá-la, mas para executar o sinistro plano,
há tempo concebido pelo consórcio do crime, e cumprir o nefasto papel de matar a Irmã
que dedicou toda a sua vida aos pobres.
Os pobres de hoje não são apenas
uns explorados e oprimidos. São excluídos, expulsos da sociedade e da terra por serem
considerados "supérfluos" (cf. DAp 65). Irmã Dorothy fez a opção de sua vida exatamente
por essas pessoas, por essas famílias "sem eira nem beira", desprezadas e maltratadas,
sem perspectivas num mundo em que perderam sua pátria.
Foi aos pobres,
que Deus assegurou seu amor incondicional e preferencial. As palavras do profeta Jeremias
calaram fundo no coração de Dorothy: "Ponde em prática a justiça e o direito, livrai
o oprimido das mãos do opressor, nunca prejudiqueis ou exploreis o migrante, o órfão
e a viúva nem jamais derrameis sangue inocente no país" (Jr 22,3). Dorothy não apenas
acompanhou as famílias de Anapu e da Transamazônica na busca de seus direitos e defendeu
seus interesses, peregrinando de repartição em repartição, procurando falar com prefeitos,
vereadores, deputados, senadores. Dorothy fez e foi muito mais: Ela amou! E esse
amor fez vibrar cada uma das fibras de seu coração. Ela foi mãe, foi irmã, foi filha
de seu povo! Dorothy nos lembra a passagem tão sugestiva na primeira carta de São
Paulo aos Tessalonicenses: "Apresentamo-nos no meio de vós cheios de bondade, como
u'a mãe que acaricia os seus filhinhos. Tanto bem vos queríamos que desejávamos dar-vos
não somente o evangelho de Deus, mas até a própria vida, de tanto amor que vos tínhamos"
(1 Tes 2,7-8).
Naquela manhã de sábado, 12 de fevereiro de 2005, ela testemunhou
"o evangelho de Deus", derramando o seu próprio sangue. Foi morta porque amou sem
medida, foi trucidada porque entendeu que seu lugar era "ao lado dessas pessoas constantemente
humilhadas" foi assassinada porque abraçou "a justiça e o direito" e lutou para livrar
"o oprimido das mãos do opressor" (Jer 22,3), foi eliminada do meio do povo pobre
porque contrariou os interesses e ambições de "gente que se considera poderosa", como
ela mesma costumava expressar-se.
Dorothy viveu em vida a opção pelos pobres
sem deixar-se intimidar ou constranger. Com a sua morte, porém, Dorothy ultrapassou
todos os limites e fronteiras. Sacudiu o mundo, descerrando a face ensanguentada da
Amazônia, fazendo ecoar os gritos e revelando as dores que golpeiam os povos que aqui
vivem.
Cinco anos passaram! Cinco anos, também repletos de tramas e trâmites
judiciais. Prisões efetuadas com grande alarde, sentenças condenatórias solenemente
proferidas e com a mesma solenidade anuladas, pedidos de habeas corpus deferidos e
liberdade provisória concedida. Sempre novas versões do crime, chegando até ao cúmulo
absurdo de transformar a vítima em ré, alegando legítima defesa.
Há poucos
dias um dos acusados é preso outra vez. Foi condenado a 30 anos e absolvido em um
segundo julgamento. Agora outro recurso consegue anular o veredicto anterior e o fazendeiro
recebe novamente voz de prisão. E a imprensa divulga o fato como se fosse a prova
mais convincente de que a Justiça funciona. Só tem um detalhe! Nós todos já estamos
saturados de tais notícias. Em breve, algum advogado esperto vai achar outra brecha
na legislação e o homem conseguirá mais um alvará de soltura para acrescentar à sua
coleção. O mesmo se diga do tal desaforamento anunciado agora. Precisava cinco anos
para chegar a essa conclusão?
E o consórcio do crime? Nada mais tem a temer!
A poeira há tempo sentou. Afinal, já há quem responde pelo homicídio! Por que procurar
outros para submetê-los a processos complicados? Por que investigar a quem já não
quer lembrar-se de nada? E aqueles que de longa data prepararam o terreno e o ambiente
para que a irmã fosse morta? Agora negam tudo! Há pessoas que andaram de cima para
baixo com a Dorothy e com ela comeram farofa na casa da Prelazia. Hoje estão do outro
lado! Habilitaram-se a jogar no time adversário! É o salmo 41 bem atualizado: "Até
meu amigo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou o calcanhar contra
mim" (Sl 41 (40),10).
Neste ano de 2010, o mês de fevereiro, em que Irmã
Dorothy foi assassinada, ganha mais uma razão para tornar-se histórico. A Amazônia
que Dorothy tanto defendeu e pela qual doou sua vida, recebe mais um golpe, desta
vez de proporções que ainda nem sequer podemos vislumbrar. O Presidente da República
me prometeu pessoalmente a continuação do diálogo sobre o projeto Belo Monte. No dia
primeiro deste mês o Ibama tornou pública a licença prévia para que o Xingu fosse
barrado. 1522 km2 de destruição à vista: 516 km2 de área inundada e 1006 km2 de área
deteriorada porque faltará água!
Todas as 40 condicionantes que a Licença
Prévia elenca para serem observadas pela empresa que sairá vitoriosa no leilão, nada
mais são que uma confissão pública do Governo que o projeto, se for executado, terá
consequências desastrosas. Ao exigir um bilhão e meio de reais em projetos para mitigar
os efeitos, o próprio Governo admite de antemão que Belo Monte causará um terrível
e irreversível impacto sobre a Amazônia. Onde já se viu tanto esmero para atenuar
sequelas antes de iniciar a obra? É a prova cabal de que o próprio Governo sabe que
está dando um tiro no escuro. Até esta data, o Ibama nem sequer conseguiu identificar
a abrangência e intensidade dos impactos. Como esse órgão então pode realmente atestar
a viabilidade de Belo Monte?
Lamentavelmente, quem sofrerá os trágicos efeitos
não serão os tecnocratas em Brasília e políticos míopes, mas os povos desta região
da Amazônia. O Xingu nunca mais será o mesmo. O solo será danificado, a floresta devastada
e das águas turvas e mortas emergirão apenas os esqueletos esbranquiçados das outrora
frondosas árvores.
É a política do rolo compressor, é a tática do fato
consumado, é o método do autoritarismo que não aceita contestação!
E Dorothy,
no seu túmulo, chora a desgraça anunciada!
Mas não deixa de encorajar-nos
na luta em favor da vida contra projetos de morte. Nosso caminho é aquele traçado
pelo Evangelho. Somos enviados por Jesus para anunciar a Boa Nova aos pobres e denunciar
o que se opõe ao Evangelho da Vida, para quebrar as algemas da opressão e tirania,
para defender o lar que Deus criou para todos nós e as futuras gerações, e proclamar
um ano de graça do Senhor (cf. Lc 4,18-19).
Amém! Marána thá! Vem Senhor
Jesus!"
Anapu, 12 de fevereiro de 2010 Erwin Kräutler, Bispo do Xingu
(CM)