Na abertura do Ano Judiciário da Rota Romana, Bento XVI reflecte as relações entre
justiça, verdade e caridade
É importante considerar o Direito Canónico na sua relação essencial com a justiça.
Como diz a própria expressão - “administrar a justiça”, trata-se de realizar “obra
de justiça: virtude que consiste na vontade firme e constante de dar a Deus e ao próximo
o que lhes é devido”. - Sublinhou-o o Papa, intervindo, nesta sexta-feira de manhã,
na inauguração do Ano Judiciário do Tribunal da Rota Romana. Tendo como pano
de fundo a sua Encíclica “Caritas in veritate”, Bento XVI teceu diversas considerações
aprofundando as relações entre justiça, caridade e verdade, começando por chamar a
atenção para a tendência, “difusa e radicada”, de contrapor a justiça à caridade,
como se uma excluísse a outra. Desvaloriza-se assim, por vezes, o Direito Canónico,
como se fosse mero instrumento técnico ao serviço de qualquer interesse subjectivo,
mesmo não assente na verdade. Ora, qualquer que seja a situação, o processo e a sentença
estão de algum modo fundamentalmente ligados à justiça, ao seu serviço. O juiz
que deseja ser justo (observou o Papa) experimenta uma grave responsabilidade diante
de Deus e dos homens. Aliás, todos os que actuam no campo do Direito devem ser guiados
pela justiça. Incluindo os advogados, que devem evitar cuidadosamente de assumir o
patrocínio de causas que, segundo a sua consciência, não sejam objectivamente sustentáveis.
Por
outro lado – prosseguiu Bento XVI – a acção de quem administra a justiça não pode
prescindir da caridade:
“O amor para com Deus e para com o próximo deve modelar
cada actividade, mesma a que aparentemente é mais técnica e burocrática. O olhar e
a medida da caridade ajudarão a não esquecer que se está sempre diante de pessoas
marcadas por problemas e sofrimentos”.
A abordagem das pessoas (envolvidas
num processo canónico) deve, portanto, ter presente o caso concreto, até para ajudar
as partes, com delicadeza e solicitude, no contacto com o competente tribunal. Por
outro lado – observou ainda o Papa – nunca se esqueça que qualquer obra de autêntica
caridade compreende a indispensável referência à justiça.
“Quem ama com caridade
os outros é antes de mais justo com eles. Não só a justiça não é alheia à caridade,
não só não é uma via alternativa ou paralela à caridade: a justiça é inseparável da
caridade, intrínseca a ela. Caridade sem justiça não é caridade, mas mera contrafacção,
porque a própria caridade requer aquela objectividade típica da justiça, que não há
que confundir com frieza desumana”.
Neste contexto, o Papa citou o seu predecessor
João Paulo II, que falando, há 20 anos, das relações entre pastoral e direito, advertia
os juízes quanto ao “risco de uma compaixão mal entendida que caísse em sentimentalismo”.
Só aparentemente seria pastoral.
“Há que não dar ouvidos aos apelos de pseudopastorais
que colocam as questões num plano meramente horizontal, no qual a única coisa que
conta é satisfazer as solicitações subjectivas, para chegar a todo o custo à declaração
de nulidade, para superar, nomeadamente, os obstáculos à recepção dos sacramentos
da Penitência e da Eucaristia”.
Ora – considerou Bento XVI – “o altíssimo
bem da readmissão à Comunhão eucarística depois da reconciliação sacramental exige
que se considere o autêntico bem das pessoas, que não se pode separar da verdade da
sua situação canónica. Seria um bem fictício, e uma grande falta de justiça e de amor,
aplanar-lhes de um modo qualquer o caminho para a recepção dos sacramentos, com o
risco de as fazer viver em contraste objectivo com a verdade da sua condição pessoal”.
“Defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na
vida são formas exigentes e insubstituíveis de caridade. Esta compraz-se com a verdade.
Só na verdade se pode viver autenticamente a caridade. Sem verdade a caridade descamba
em sentimentalismo. O amor torna-se uma casca vazia, a encher arbitrariamente. É o
fatal risco do amor numa cultura sem verdade. Acaba por ficar abandonado às emoções
e opiniões contingentes dos sujeitos, palavra abusada e distorcida, acabando por significar
o contrário”.