Para cultivar a paz, cuidar da criação: síntese da mensagem papal para Dia Mundial
da Paz 2010
Divulgada a mensagem papal para a próximo 1 de Janeiro 2010, Dia Mundial da Paz, que
tem como tema “Se queres cultivar a paz, preserva a criação”. Em tempos de maior tomada
de consciência da responsabilidade de todos e de cada um em relação à natureza criada
(pense-se, nestes dias, na Cimeira de Copenhaga), o Santo Padre propõe uma visão cósmica
da paz, a concretizar num estado de harmonia entre Deus, a humanidade e a criação.
Para o Papa, a degradação ambiental exprime não só uma ruptura do equilíbrio entre
a humanidade e a criação, mas também uma deterioração, mais profunda, da união entre
a humanidade e Deus. Assim reflectir sobre a crise ecológica significa ao mesmo
tempo reflectir sobre uma “crise interior” à criação, crise que interpela directamente
o homem, a quem Deus confiou o mandato de “conservar e cultivar” o mundo criado. Nestes
anos do seu pontificado, Bento XVI foi desenvolvendo, nesta circunstância do Dia 1
de Janeiro, um certo “itinerário de paz”: antes de mais, em 2006, a paz entendida
como dom de Deus na Verdade; em 2007, a paz como fruto do respeito pela
pessoa humana; depois, como expressão da comunhão da família humana (2008),
chamada a eliminar todas as formas de pobreza (2009). Desta vez, para 2010,
o Papa recorda o contexto em que a Humanidade recebe o convite à paz: a criação. Esta
temática foi abordada já no passado pelos Papas Paulo VI e sobretudo por João Paulo
II, que em 1990 dedicou a Mensagem para o Dia Mundial da Paz ao tema “Paz com Deus
criador, paz com toda a criação”. Indo para além dessas expressões anteriores da doutrina
social da Igreja, Bento XVI denuncia agora uma autêntica crise ecológica (citamos
do número 4 da Mensagem):
“Podemos porventura ficar indiferente (interroga-se
o Papa) perante as problemáticas que derivam de fenómenos como as alterações climáticas,
a desertificação, a deterioração e perda de produtividade de vastas áreas agrícolas,
a poluição dos rios e dos lençóis de água, a perda da biodiversidade, o aumento de
calamidades naturais, o desflorestação das áreas equatoriais e tropicais? Como descurar
o crescente fenómeno dos chamados «prófugos ambientais», ou seja, daquelas pessoas
que, por causa da degradação do ambiente onde vivem, se vêem obrigadas a abandoná-lo
– deixando lá muitas vezes também os seus bens – tendo de enfrentar os perigos e as
incógnitas de uma deslocação forçada? Como não reagir perante os conflitos, já em
acto ou potenciais, relacionados com o acesso aos recursos naturais? Trata-se de um
conjunto de questões que têm um impacto profundo no exercício dos direitos humanos,
como, por exemplo, o direito à vida, à alimentação, à saúde, ao desenvolvimento”.
Perante
estes desafios, Bento XVI abstém-se de propor soluções técnicas, não se intromete
nas políticas governamentais, que não são da sua competência. O que faz é, recordando
o empenho da Igreja na defesa da terra, da água, do ar - dons do Criador à humanidade,
exortar a um reequilíbrio da relação entre o Criador, a humanidade e a criação. Nesta
ordem de ideias indica alguns pontos essenciais de um possível caminho para a construção
da paz, no respeito da natureza criada.
- Antes de mais, a necessidade de
cultivar uma visão não redutiva da natureza e do homem. “Considerar a criação
como dom de Deus à humanidade – observa Bento XVI – ajuda-nos a compreender a vocação
e o valor do homem” (n. 2). A beleza da criação é um convite permanente a reconhecer
o amor do Criador, mas “quando o homem, em vez de desempenhar o seu papel de colaborador,
se coloca no lugar de Deus, acaba por provocar a rebelião da natureza” (n. 6). Aqui
se situa a perplexidade da Igreja perante uma concepção do ambiente inspirada no ecocentrismo
e no biocentrismo: pelo risco de que se eliminem a identidade e o papel superior do
homem, favorecendo uma visão igualitarista da dignidade de todos os seres vivos.
-
A mensagem pontifícia exorta depois a uma profunda renovação ética e cultural.
“As situações de crise, sejam elas de carácter económico, alimentar, ambiental ou
social – escreve o Papa – são, em última análise, crises morais”, que “põem em causa
o comportamento de cada um de nós, os estilos de vida e os modelos de consumo e de
produção actualmente dominantes, muitas vezes insustentáveis”. A crise pode assim
ser ocasião de crescimento e de nova projectualidade.
- Todos somos
responsáveis pelo cuidado da criação. É uma responsabilidade sem fronteiras (11).
Fundamental importância assume a educação para a ecologia, sobretudo no âmbito da
família (12). Neste contexto, o Papa reconhece o precioso contributo das Organizações
não governamentais “que se prodigalizam com determinação e generosidade na difusão
de uma responsabilidade ecológica” (11).
- Em todo o caso, especial responsabilidade
recai sobre os responsáveis a nível nacional e internacional, aos quais o Santo
Padre exorta a “actuar uma profunda revisão do modelo de desenvolvimento, numa
perspectiva de largos horizontes, reflectindo por outro lado sobre o sentido da economia
e dos seus fins, para corrigir as respectivas disfunções e distorções”.
-
Infelizmente – deplora Bento XVI – “há que reconhecer que uma multidão de pessoas,
em diversos países e regiões do planeta, experimenta crescentes dificuldades por causa
da negligência ou da recusa, da parte de tantos, de exercer um governo responsável
no que diz respeito ao ambiente”. “A herança da criação pertence a toda a humanidade”.
É um aspecto do destino universal dos bens, sempre sublinhado pelo magistério social
da Igreja.
- Ora o actual ritmo de exploração dos recursos naturais põe seriamente
em causa a respectiva disponibilidade para as gerações futuras” (n. 7). A crise ecológica
revela, neste aspecto, a necessidade de uma solidariedade que se projecte no espaço
e no tempo. Existe uma responsabilidade das gerações presentes, em relação às
futuras: aquilo que se pode chamar uma solidariedade inter-geracional, sobretudo
nas relações entre os países em vias de desenvolvimento e os já altamente desenvolvidos,
embora sem alimentar visões facciosas que tendam a radicalizar algumas responsabilidades
em detrimento de outras. Observa Bento XVI: “é importante reconhecer, entre as causas
da actual crise ecológica, a responsabilidade histórica dos países industrializados.
Mas os países menos desenvolvidos, em particular os emergentes, não se encontram isentos
de responsabilidades sobre a criação. Todos têm o dever de adoptar gradualmente
medidas e políticas ambientais eficazes” (n. 8).
- Finalmente, o Papa
recorda uma questão fundamental que a comunidade internacional está chamada
a enfrentar: a dos recursos energéticos. Há que identificar estratégias susceptíveis
de serem partilhadas e apoiadas para satisfazer as necessidades energéticas. Há que
promover a busca e aplicação de energias de menor impacto ambiental e a redistribuição
planetária dos recursos energéticos.
A mensagem papal para 1 de Janeiro 2010
conclui com um apelo à esperança, que não perca de vista a capacidade da inteligência
humana e o sentido da sua dignidade, adoptando uma posição realista mas não catastrófica
da crise ecológica. “Proteger o ambiente natural para construir um mundo de paz é
dever de todos. Trata-se de um desafio urgente que se há-de enfrentar com empenho
renovado e concorde, como uma oportunidade providencial para entregar às novas gerações
a perspectiva de um futuro melhor para todos” (14).