O "cordial, amistoso e apaixonado apelo" de Bento XVI aos artistas, na Capela Sistina:
"recordai-vos que sois os guardiães da beleza no mundo!" "A fé nada tira ao vosso
génio, à vossa arte, antes exalta-os, nutre-os, encoraja-os".
(21/11/2009) Um “convite à amizade, ao diálogo, à colaboração”: foi com estas palavras
que Bento XVI definiu o sentido do seu encontro com os Artistas, na Capela Sistina,
neste sábado de manhã. Uns 250 artistas, “de países, culturas e religiões diversas,
e porventura até mesmo distantes de experiências religiosas”, mas todos “desejosos
de manter viva uma comunicação com a Igreja Católica, sem restringir os horizontes
da existência à mera materialidade, a uma visão redutiva e banalizante”: pintores
e escultores, arquitectos, escritores e poetas, compositores e cantores, e ainda artistas
do mundo do cinema, do teatro, da dança, da fotografia. “Com este encontro desejo
exprimir e renovar a amizade da Igreja com o mundo da arte, uma amizade consolidada
no tempo, pois o Cristianismo, desde as suas origens, bem compreendeu o valor das
artes, utilizando sapientemente as suas multiformes linguagens para comunicar a sua
imutável mensagem de salvação”.
Este encontro – recordou Bento XVI – tem lugar
a dez anos da Carta que João Paulo II dirigiu aos Artistas, em vésperas do Grande
Jubileu do ano 2000. E há 25 anos o mesmo Papa Wojtyla proclamou padroeiro dos artistas
o Beato Angélico, como “um modelo de perfeita sintonia entre fé e arte”. Finalmente,
e sobretudo, com o encontro de hoje se recorda o “histórico acontecimento” de Maio
de 1964, há quarenta e cinco anos, quando o Papa Paulo VI promoveu um idêntico encontro
com os artistas, na mesma Capela Sistina, “para reafirmar a amizade entre a Igreja
e as artes”.
“Naquela circunstância, Paulo VI assumiu o compromisso de ‘restabelecer
a amizade entre a Igreja e os artistas’, e pediu-lhes que fizessem seu [esse empenho],
partilhando-o, analisando com seriedade e objectividade os motivos que tinham perturbado
tal relação, e assumindo cada um, com coragem e paixão, a responsabilidade de um renovado
e aprofundado itinerário de conhecimento e de diálogo, em vista de um autêntico ‘renascimento’
da arte, no contexto de um novo humanismo”. A profunda ligação entre beleza e
esperança – sublinhou Bento XVI – constituía também o núcleo essencial da sugestiva
Mensagem que Paulo VI dirigiu aos artistas no encerramento do Concílio Ecuménico Vaticano
II, a 8 de Dezembro de 1965. “A vós todos – proclamou então solenemente – a Igreja
do Concílio diz com a nossa voz: se sois amigos da verdadeira arte, sois nossos amigos”.
E acrescentava ainda Paulo VI, na mensagem aos artistas, na conclusão do Vaticano
II, há 44 anos: “Este mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não
soçobrar no desespero. É a beleza, como a verdade, que infunde alegria no coração
dos homens, é aquele fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações
e as faz comunicar na admiração. E isto graças às vossas mãos… Recordai-vos que sois
os guardiães da beleza no mundo”.
Bento XVI recordou que “infelizmente o
momento actual está marcado, não só por fenómenos negativos a nível social e económico,
mas também por um enfraquecimento da esperança, por uma certa desconfiança nas relações
humanas, razão por que crescem os sinais de resignação, de agressividade, de desespero”.
Ora, interrogou-se o Papa, “o que é que pode restituir entusiasmo e confiança, o que
é que pode encorajar o espírito humano a reencontrar o caminho, a elevar o olhar sobre
o horizonte, a sonhar uma vida digna da sua vocação, senão a beleza?” Neste contexto,
Bento XVI recordou que “uma função essencial da verdadeira beleza, já evidenciada
por Platão, consiste em comunicar ao homem uma espécie de ‘choque’ que o faz sair
de si mesmo, o arranca à resignação, ao acomodamento ao quotidiano, o faz até mesmo
sofrer, como um dardo que o fere, mas precisamente por isso o ‘desperta’, abrindo-lhe
novamente os olhos do coração e da mente, dando-lhe asas, impulsionando em direcção
ao alto”.
“A beleza, desde a que se manifesta no cosmos e na natureza àquela
que se exprime através das criações artísticas, precisamente pela sua característica
de abrir e alargar os horizontes da consciência humana, de a lançar para além de si
mesma, de a fazer debruçar-se sobre o abismo do Infinito, pode-se tornar um caminho
em direcção ao Transcendente, ao Mistério último, em direcção a Deus”. “Em todas
as suas expressões, a arte, no momento em que se confronta com as grandes interrogações
da existência, com os temas fundamentais de que deriva o sentimento do viver, pode
assumir uma valência religiosa e transformar-se num percurso de profunda reflexão
interior e de espiritualidade” – sublinhou ainda o Papa, que evocou a investigação
teológica desenvolvida por Hans Urs von Balthasar na sua grande obra “Gloria. Uma
estética teológica”, onde escreve nomeadamente: “A via da beleza conduz-nos a captar
o Todo no fragmento, o Infinito no finito, Deus na história da humanidade”. “Simone
Weil escrevia a este propósito: ‘Em tudo aquilo que suscita em nós o sentimento puro
e autêntico do belo, está realmente a presença de Deus. Existe como que uma espécie
de incarnação de Deus no mundo, cujo sinal é a beleza. O belo é a prova experimental
de que a incarnação é possível. É por isso que toda a arte de primeira ordem é, por
sua essência, religiosa”.
E o Papa concluiu com “um cordial, amistoso e apaixonado
apelo”: “Caros artistas! Vós sois guardiães da beleza; vós tendes, graças ao vosso
talento, a possibilidade de falar ao coração da humanidade, de tocar a sensibilidade
individual e colectiva, de suscitar sonhos e esperanças, de ampliar os horizontes
do conhecimento e do empenho humano… Sede também vós, através da vossa arte, anunciadores
e testemunhas de esperança, para a humanidade!”
Bento XVI convidou os artistas
presentes na Capela Sistina a “não ter medo de se confrontarem com a nascente primeira
e última da beleza, de dialogar com os crentes, com quem, como vós (disse), se sente
peregrino no mundo e na história em direcção à Beleza infinita!” “A fé nada tira
ao vosso génio, à vossa arte, pelo contrário, exalta-os e alimenta-os, encoraja-os
a superar o limiar e a contemplar com olhos comovidos e fascinados a meta última e
definitiva, o sol sem ocaso que ilumina e torna belo o presente”.