Sínodo para a África. Relatório introdutivo do Relator Geral Card. TURKSON, Arcebispo
de Cape Coast (GANA)
Publicamos o texto integral do relatório introdutivo á II Assembleia Especial do Sínodo
dos Bispos para a África, Card. Peter Kodwo Appiah Turkson, Arcebispo de Cape Coast
(Gana) e Presidente da Associação das Conferencias Episcopais da África Ocidental
(A.C.E.A.O.) lido esta manhã na Aula do Sínodo, por ocasião do primeiro dia de trabalhos
INTRODUÇÃO
Com
o canto do “Te Deum...” e com toda a sala do sínodo onde ressoava este hino de ação
de graça ao meio-dia do dia 7 de Maio de 1994, encerrou-se formalmente a Primeira
Assembleia Especial para África do Sínodo dos Bispos. O Sínodo teve como tema principal:
“A Igreja em África e a sua missão evangelizadora rumo ao ano 2000: ‘Vós sereis minhas
testemunhas’ (At 1: 8)». Ele lançou uma mensagem à Igreja e ao mundo que reflectiu
os pontos essenciais das acções do sínodo, e votou as várias resoluções, sob forma
de Proposições. A partir desse ponto, os Padres sinodais, e toda a Igreja, aguardaram
intensamente a Exortação Apostólica Pós-Sinodal do Santo Padre, Presidente do Sínodo,
que haveria de reunir os frutos do Sínodo em uma mensagem que marcaria a definitiva
conclusão das actividades colegiais e consulti¬vas do Sínodo. Foi o que o Santo Padre
fez ao divulgar a Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Ecclesia in Africa” (“A Igreja
na África”) e ao apresentá-la à África e ao mundo em Iaundé, nos Camarões, no dia
14 de Setembro de 1995, e depois em Joanesburgo, na África do Sul, no dia 17 de Setembro
de 1995 e, por fim, em Nairobi, no Quénia, no dia 19 de Setembro de 1995. [1]
I.
DA PRIMEIRA À SEGUNDA ASSEMBLEIA ESPECIAL PARA A ÁFRICA
O Papa João Paulo II
descreveu o Sínodo, concluído com a publicação da sua Exortação Apostólica Pós-Sinodal
Ecclesia in Africa, como “o sínodo de ressurreição e de esperança”. [2] Aquela assembleia
sinodal, que havia sido convocada segundo um espírito contrário à prevalecente visão
pessimista do mundo em relação à África, e contra a visão segundo a qual a situação
do continente é “deploravelmente desfavorável”, representando um desafio peculiar
para a missão evangelizadora da Igreja nos últimos anos do século XX. Supunha-se,
todavia, que fosse um momento decisivo na história do continente. [4] Quando o
Santo Padre e os Padres sinodais se reuniram para o primeiro sínodo, tiveram que considerar
“elementos quer positivos quer negativos (luzes e sombras) nos ‘sinais dos tempos’”.
[5] Contemplaram e celebraram os sucessos da evangelização e o crescimento das Igrejas
locais no continente; mas ao mesmo tempo, lamentaram e deploraram uma série de misérias
e males do continente. Eles tinham o heroísmo e o espírito pioneiro dos missionários
a honrar; mas tinham também a criticar o pouco empenho e zelo pastoral da Igreja local,
o surgimento de tendências sincréticas, a proliferação das seitas, a politização do
Islão e a sua intolerância às críticas. Tinham a saudar com otimismo a formação de
democracias e o despertar de uma profunda tomada de consciência cultural, social,
económica e política no continente; mas também a lastimar os regimes despóticos e
ditatoriais, o mau governo, a corrupção difundida e o preocupante aumento da pobreza.
A situação do continente era extremamente ambivalente assim como paradoxal; e a rápida
sucessão de acontecimentos tais como o colapso do apartheid e a triste deflagração
do genocídio em Ruanda exemplificam muito bem este paradoxo.
Tendo em conta
esta combinação paradoxal, na qual o mal e o sofrimento pareciam prevale¬cer sobre
o bem e a virtude, o cenário pascal da Primeira Assembleia Especial para a África
inspirou a mensagem de esperança para o continente. Com a publicação da Exortação
Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in Africa, a Igreja em África ganhou um novo impulso
e um novo élan para a sua vida e actividade no continente, como Igreja Missionária,
isto é, Igreja com missão. Com seu clima pascal e a Exortação Apostólica Pós-Sinodal,
o Sínodo deu um novo impulso à Igreja em África, nomeadamente: - esperança em Cristo
ressuscitado, como novo estímulo para viver o seu “projecto” e a sua missão evangelizadora; -
um novo paradigma: a Igreja como Família de Deus, para oferecer uma perspectiva e
um sistema de valores para viver o seu “projecto”, mas, sobretudo promover a unidade
e a comunhão de todos, apesar das diferenças; - um conjunto de prioridades pastorais:
evangelização como Proclamação, evangelização como Inculturação, evangelização como
Diálogo, evangelização como Justiça e Paz e evangelização como Comunicação, para guiar
a implementação do seu “projecto” e missão numa África com uma combinação paradoxal
de deploráveis misérias humanas e grandes heroísmos, dentro e fora da Igreja. [6] O
período que seguiu a publicação da Exortação Apostólica Pós-Sinodal foi, portanto,
como acreditava também o Papa João Paulo II [7], um tempo para aprofundar esta experiência
sinodal e implementar Ecclesia in Africa com empenho perseverante e conjuntamente
com o objectivo de recuperar novas forças e uma esperança com bases sólidas para
o continente em dificuldade. Este período pós-sinodal encontra-se agora no seu décimo-quarto
ano; e se, por um lado, a situação do continente, das suas ilhas e da Igreja ainda
mantém algumas “luzes e sombras” [8] que ocasionaram o primeiro sínodo, por outro,
a situação mudou bastante. Esta nova realidade requer uma análise meticulosa, que
vise renovados esforços de evangelização, que implicam um exame mais aprofundado dos
temas específicos, importantes para o presente e o futuro da Igreja Católica neste
grande continente” [9]. De acordo com esta ideia, reunidos novamente na Segunda
Assembleia Especial para a África quinze anos depois da primeira, devemos nos imergir
profundamente no primeiro Sínodo [10], e analisar, com consciência e determinação,“os
novos dados eclesiais e sociais do continente” [11], que influem hoje na missão da
Igreja no continente e exigem que a Igreja Africana, para além de se ver como “testemunha
de Cristo”, também se veja como “o sal da terra, a luz do mundo” e “ao serviço da
reconciliação, da justiça e da paz”.
OS NOVOS DADOS ECLESIAIS E SOCIAIS DO
CONTINENTE
Dados eclesiais
a. Subsidia Fidei: é importante notar que
o estímulo e o impulso dados pela Primeira Assembleia Especial para a África à Igreja
em África no sentido de renovar suas forças e fundamentar com mais firmeza sua esperança
no Senhor, foram muito acentuados graças a uma série de eventos eclesiais sucessivos
e às actividades do Papa e da Cúria Romana, que podemos definir como “subsidia fidei”
para a Igreja. Assim, o “Sínodo sobre a Eucaristia” reiterou a centralidade da Eucaristia
na vida da Igreja-Família de Deus, como símbolo da unidade. O Sínodo sobre “O Bispo:
Servidor do Evangelho....” relembrou aos Bispos e Pastores o seu ministério essencial,
isto é, ser anunciadores do Evangelho na Igreja-Família de Deus; e o Sínodo sobre
“A Palavra de Deus” recordou à Família de Deus a eterna e imperecível semente da sua
existência. Além disso, as Encíclicas do Papa “Deus caritas est”, “Spe salvi”, “Caritas
in veritate”, as suas homilias e discursos na recente viagem à África (Camarões e
Angola) proporcionaram catequeses de inestimável valor para a Igreja em África. Por
fim, os Dicastérios da Cúria Romana organizaram seminários sobre:
- “Liturgia”
(Kumasi 2007), com o objectivo de orientar a obra permanente de inculturação na liturgia. -
A “Doutrina Social da Igreja” (Dar-es-Salam 2008) para promover o conhecimento e a
difusão dos ensinamentos sociais da Igreja. - “Imigração” (Nairobi 2008) para discutir
a imigração e as novas formas de escravidão. - O “Trabalho das Comissões Teológicas
das Conferências Episcopais” (Dar-es-Salam 2009) para recordar aos Bispos a importância
da sua obra magistral na Igreja, inclusive quando pedem ajuda a peritos. Estes
encontros aumentaram a consciência da Igreja em África relativamente à sua vida e
ao seu ministério.
b. O crescimento extraordinário da Igreja em África: nas
última décadas (inclusive nos anos seguintes à Primeira Assembleia especial para a
África), tornou-se normal falar deste crescimento, cujos índices, como afirmado nos
Lineamenta e no Instrumentum Laboris o comprovam. Todavia, as reais novidades nos
sinais de crescimento da Igreja no continente e nas suas Ilhas são: - A ascendência
de membros africanos de congregações missionárias a posições de liderança e a funções
tais como: membros de conselhos, vigários gerais, e até superiores gerais. - Busca
da auto-suficiência por parte das Igrejas locais, que realizam investimentos capazes
de gerar lucro (bancos, uniões de crédito, companhias de seguro, agências imobiliárias
e lojas). - Aumento significativo de estruturas e instituições eclesiais (seminários,
universidades católicas e institutos católicos de ensino superior, centros de formação
permanente para religiosos, catequistas e leigos, escolas de evangelização), assim
como o aumento de especialistas e pesquisadores nos campos da fé, missão, cultura
e inculturação, história, evangelização e catequese. Todavia, a Igreja em África
enfrenta também enormes desafios: - Quando se fala de uma Igreja próspera em África,
esquece-se que em vastas áreas ao norte do Equador ela é pouco presente. O crescimento
extraordinário da Igreja verificou-se sobretudo ao sul do Sahara. - A fidelidade
e o compromisso de alguns sacerdotes e religiosos à sua vocação. - A necessidade
de evangelizar (ou re-evangelizar), para obter uma conversão profunda e permanente. -
A perda de membros que passaram para novos movimentos religiosos ou para as seitas.
Os jovens católicos vão para o exterior (Europa e América) e retornam não-católicos,
porque nas Igrejas de fora não se sentem envolvidos. - A queda dos índices de crescimento
demográfico na Europa, tradicionalmente cristã, e na América.
c. O Sínodo
para a África e o “Simpósio das Conferências Episcopais da África e do Madagá¬scar”
(SECAM)”: o aprofundamento da experiência sinodal africana no continente e nas ilhas
dependeu em grande parte de um organismo específico da Igreja continental, o “SECAM”.
Durante o Concílio Vaticano II, os Bispos africanos, buscando meios idóneos de cooperação,
criaram um secretariado para coordenar as suas intervenções e apresentar um ponto
de vista (africano) comum ao Concílio. Após o Concílio, e na presença do Papa Paulo
VI em Campala (1969), os Bispos africanos decidiram tornar permanente este organismo,
com a criação do SECAM. Na época, o SECAM deveria ser uma associação ou instituição
permanente que promovesse junto aos Pastores o exercício de uma solidariedade pastoral
orgânica no continente. Deveria ser um “instrumento dos Bispos para promover no continente
a Evangeli¬zação na co-responsabilidade” [12]; foi a este organismo que o Papa João
Paulo II atribuiu a ideia originária de um Sínodo para a África [13]. Durante a
II Assembleia Especial para a África, seria oportuno que os Pastores do continente
examinassem novamente a necessidade da existência do SECAM e o engajamento dos mesmos
em relação ao organismo. Ao abordar “alguns pontos críticos da vida das sociedades
africanas” [14], o Instrumentum Laboris identificou e discutiu muitos destes novos
dados sociais. Queremos acrescentar poucas notas de rodapé que consideramos importantes
e deixar à assembleia sinodal a tarefa de completar o quadro. d. Notas Sócio-históricas
ao Instrumentum Laboris: em 1963, durante um encontro da Organização para a Unidade
Africana (OAU), os líderes africanos decidiram manter alguns dos vestígios da era
colonial, confirmando as fronteiras e a descrição dos estados, indepen¬dentemente
do seu caráter artificial. Todavia, essa decisão não foi seguida por um equivalente
aumento do nacionalismo, que valoriza as diferenças étnicas, privilegiando o bem comum
da nação sobre os interesses étnicos regionais. Por esse motivo a diversidade étnica
continua a representar focos de conflitos e tensões, que minam até mesmo o sentido
de pertença comum à Igreja-Familia de Deus. A escravidão e o escravismo, que o
mundo árabe levou por primeiro à costa oriental africana, e que os europeus, com a
colaboração dos próprios africanos, conheceram no século XIV e estenderam a todo
o continente, representou um movimento forçado de africanos. Hoje as migrações voluntárias
dos filhos e das filhas da África em direção da Europa, América e Extremo Oriente
por vários motivos, coloca-os em uma condição servil que exige a nossa atenção e
o nosso cuidado pastoral. e. Nota sócio-política ao Instrumentum Laboris; intimamente
interligadas ao desenvolvimento das situações pós-coloniais do continente foram as
celebrações de independência e o nascer de estados e nações africanas com governos
geridos apenas por africanos. O exercício do poder político e de governo foi geralmente
criticado e muitas vezes viciado por despotismos, ditaduras, politização da religião
e da etnia, desprezo pelos direitos dos cidadãos, falta de transparência e de liberdade
de imprensa, etc. Mas o período sucessivo à I Assembleia para a África, isto é,
mesmo no início do Terceiro Milénio, parecia ter coincidido, no continente, com um
desejo emergente nos próprios líderes africanos de um “Renascimento africano” (Thabo
Mbeki), “uma nova contemporânea auto-asserção africana para a construção de uma civilização
africana em sintonia com os ditames dos nossos tempos, nomeadamente a prosperidade
económica, a liberdade política e a solidariedade social”. [15] Os líderes políticos
africanos pareciam determinados a mudar o vulto da administração pública no continente;
e realizaram uma auto-avaliação crítica da África que indicou o mau governo como a
causa da pobreza e dos sofrimentos em África. Delinearam então projetos para o bom
governo e para a formação da classe política, capaz de acolher a parte melhor das
tradições ancestrais africanas e de a integrar com os princípios de governo das sociedades
modernas. Adotaram um quadro estratégico (NEPAD) para orientar as ações e guiar a
renovação da África através de lideranças políticas transparentes [16]. Consegue,
a Igreja em África, reconhecer o compromisso político dos seus filhos e das suas filhas
e dar-lhes o estímulo da mensagem evangélica, que os desafie para que sejam a “luz
das (suas) nações” e o “sal das suas comunidades”, exercendo uma “liderança ao serviço
dos outros”?
f. nota sócio-económica ao Instrumentum Laboris: a relação radical
entre governo e economia é claro; demonstra que um mau governo produz uma má economia.
Isto explica o paradoxo da pobreza de um continente que é, sem dúvida, um dos mais
ricos de potencialidades do mundo. A consequência desta “equação governo-economia”
é que quase nenhum país africano consegue respeitar as próprias obrigações de orçamento,
quer dizer, os programas financeiros nacionais planificados, sem recorrer às ajudas
externas sob forma de obrigações ou de empréstimos. Este financiamento contínuo dos
orçamentos nacionais, recorrendo a empréstimos, não faz outra coisa senão aumentar
uma dívida nacional que já é opressora. A Igreja universal junto com a Igreja Africana
realizaram uma campanha para o cancelarem no ano do Grande Jubileu. As relações
económicas tradicionais dos estados africanos com os seus ex-colonizadores, por exemplo
o “Commonwealth”, foram substituídos por outras poderosas alianças económicas entre
os estados africanos individualmente ou em bloco com os Estados Unidos (Millenium
Challenge Account), a Comunidade Económica Europeia (Lomé Culture, Yaoundé Agree¬ment
e o Cotonou Agreement) [17]) e o Japão (TICAD I-III). Recentemente, a China e a Índia,
ávidas de recursos naturais, também entraram em cena e manifestaram interesse por
cada aspecto possível e imaginável das economias nacionais africanas. No centro da
maioria destes protocolos e acordos está o debate sobre “comércio e apoio”, que consideram
os países que se desenvolveram, fizeram-no através do comércio (e não apenas de “matérias-primas”)
e não graças a uma “síndrome de dependência das ajudas”. Por isso, são uma razão de
grande interesse para as jovens economias comerciais africanas, as decisões e as condições
impostas pela Organização Mundial do Comércio (WTO) e pelo mundo desenvolvido. Como
já dissemos, os líderes africanos criaram há pouco tempo uma estrutura estratégica
(NEPAD) [18] com o objetivo de guiar as parcerias económicas da África e a emergência
da pobreza, e os compromissos dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Como Dr.
Uschi Eid coloca, “Só estimulos e esforços vindos da África levarão ao sucesso” [19].
Nesse sentido, As emergências da África que vem de suas dores econômicas devem ser
trabalhadas por Africanos e lideradas por eles [20]. Seus corações devem ser convertidos
e os olhos curados para apreciar novos caminhos para administrar a saúde pública em
prol do bem-estar comum; e isto remete à missão evangelizadora da Igreja no continente
e nas ilhas.
g. Notas sociais no Instrumentum laboris: Os efeitos das situações
acima (históricos, políticos, económicos) determinam quão saudável é (estável, pacífica,
próspera) a sociedade Africana; e eles também constituem as fontes tradicionais dos
desafios para a missão evangelizadora da Igreja no continente e nas ilhas. Existem
também certos fenómenos globais e iniciativas internacionais, que causam impacto na
sociedade Africana e em algumas das suas estruturas, que merecem ser avaliadas, e
que criam novos desafios para a Igreja. Enquanto a importância, que se está a dar
cada vez mais ao lugar e ao papel das mulheres na sociedade é um feliz desenvolvimento,
as emergências globais dos estilos de vida, valores, atitudes, associações, etc.,
que desestabilizam a socieda¬de, é inquietante. Isso ataca as bases sobre as quais
se apoia a sociedade (matrimónio e família), diminuem o capital humano (migração,
tráfico de drogas e comércio de armas) e põem a vida do planeta em perigo.
O
Matrimónio e a Família têm sofrido estranhas e terríveis pressões para redefinir sua
natureza e funções na sociedade moderna. Matrimónios tradicionais, que fundam famílias,
são desafiados por uma crescente proposta de uniões e relacionamentos alternativos,
despro¬vidos de conceitos de uniões duradouras, não-heterossexual em caráter, e sem
o intuito da procriação. Esses também encontram defensores dentro da Igreja em certas
partes do continente. Esse ataque violento ao matrimónio e à família é impulsionado
e apoiado por grupos que propõem um glossário que deseja que sejam substituídos os
tradicionais conceitos e termos sobre matrimíonio e família com novos conceitos. O
alvo é estabelecer uma nova ética global sobre o matrimónio, a família, a sexualidade
humana e os temas relacionados do aborto, contracepção, aspectos de engenharia genética,
etc. Tráfico de drogas e tráfico de armas: Certas partes do continente tornaram-se
atalhos estabelecidos para o tráfico de drogas para a América Latina e Europa. Na
África Ocidental, o tráfico de drogas é citado como causa oculta da instabilidade
e perturbação política na Guiné-Bissau, e agora, também na Guiné. Quando em Julho,
os militares da Guiné declararam um estado de alerta máximo, foi por causa de tentativas
de invasão, sustentadas por cartéis de drogas. As drogas não só passam através
de partes do continente e das ilhas, elas encontram usuários em qualquer lugar. O
uso de drogas e o vício entre os jovens tornou-se rapidamente a maior fonte de dissipação
do capital humano na África e nas ilhas, juntamente coma migração, conflitos e doenças,
como HIV-SIDA e a malária. Intimamente relacionado com o tráfico de drogas e ao
aventurismo político está o tráfico de armas: em pequena e larga escala. A Igreja
em África, reunida em Assembleia Especial associa-se com a Santa Sé para agradecer
as bem-vindas iniciativas da ONU para deter o tráfico ilegal de armas, e para realizar
todo comércio legal de armas mais transparente. Isso se refere particularmente aos
estudos em andamento sobre a preparação de um acordo com força jurídica sobre a importação,
exportação e a canalização de armas convencionais através da África. Meio ambiente
e Mudanças climáticas: A cobertura ocasional de “smog” que se lança sobre a maior
parte da África Oriental, acompanhada pela diminuição das chuvas, a seca e fome são
usualmente considerados um efeito do El niño. Mas, isso aponta quanto são duras as
condições climáticas geralmente existentes no continente, e como ao contrário o precário
equilíbrio ecológico em partes da África pode ser afectado pelas observadas “mudanças
climáticas” no planeta. Então a ONU e cúpulas mundiais sobre as mudanças climáticas,
emissões verdes de gás, degradação da camada de ozónio, como a que acontecerá em dezembro
em Copenhagem deve incluir um pedido de apoio da África, enquanto ela assina para
explorar e para desenvolver fontes alternativas de energia limpa (sol, vento, marés,
biocombustível, etc.). No fim dessa pesquisa, a qual se admite incompleta, está
claro que, embora o continente e a Igreja no continente ainda encontram-se em situação
difícil, podem modestamente ainda regozijar-se por suas conquistas e performance
positiva, e começar a repudiar generalizações estereotipadas sobre os conflitos,
a fome, a corrupção e má governação. As quarenta e oito nações que perfazem a África
sub-saariana mostram grandes diferenças na situação das suas igrejas, seus governos
e sua vida socioeconômica. Fora dessas quarenta e oito nações, somente quatro: Somália,
Sudão, Nigéria e partes da República Democrática do Congo estão agora em guerra; e
pelo menos duas estão em guerra por interferência externa: a República Democrática
do Congo e Sudão. De facto, existem menos guerras na África que na Ásia. De modo
crescente, comerciantes da guerra e criminosos de guerra foram denunciados, acusados
e processados. Um oficial da República Democrática do Congo foi processado, Charles
Taylor, da Libéria, está diante do Tribunal internacional.
A verdade é que
a África foi sobrecarregada por muito tempo pela mídia com tudo que é repugnante à
humanidade; e esse é o tempo de “mudar a marcha” e ter a verdade sobre a África dita
com amor, promovendo o desenvolvimento do continente que poderia ajudar o bem-estar
de todo o mundo [21]. Os membros do G-8 e os países do mundo devem amar a África na
verdade! [22] Geralmente considerada por ocupar a décima posição na economia mundial,
a África, entretanto, é o segundo mercado emergente do mundo depois da China. Então,
como logo após a cúpula do G-8 disse, é um continente de oportunidades. Isso precisa
ser verdade também para o povo do continente. É esperado que a busca de reconciliação,
justiça e paz, feita particularmente pelos cristãos por suas raízes no amor e misericórdia,
possa restaurar totalmente a Igreja-Família de Deus no continente, e por fim, como
sal da terra e luz do mundo, deveria curar os “corações humanos feridos, o último
lugar oculto pelas causas de toda a desestabilização no continente Africano” [23].
Então, o continente e as suas ilhas irão realizar as oportunidades e os dons doados
por Deus.
II. DO SER “FAMÍLIA DE DEUS AO SER SERVIDORES (MINISTROS=DIAKONOI)
DE RECONCILIAÇÃO, JUSTIÇA E PAZ”
Como anteriormente observado, quando a primeira
Assembleia para África reuniu-se para avaliar a evangelização no continente e nas
suas ilhas na passagem do terceiro milénio da fé cristã, ela adoptou o tema Igreja-Família
de Deus como princípio-guia para a evangelização da África [24]. A imagem da Igreja-Família
de Deus evocava valores como o cuidado para com os outros, solidariedade, diálogo,
confiança, aceitação e entusiasmo nas relações. Contudo, evocava também as realidades
socioculturais de paternidade, geração e filiação, parentesco e fraternidade, bem
como uma rede de relacionamentos que são gerados por essas realidades sociais e nas
quais os membros se envolviam. Os relacionamentos constituem a vida de comunhão da
família; mas também exigem algo dos membros, cujo cumprimento ao mesmo tempo constitui
a sua justiça e torna a relação harmoniosa e pacífica. Quando, entretanto, as exigências
dos relacionamentos não são realizadas, a justiça é interrompida e a vida de comunhão
resulta ofendida, prejudicada e enfraquecida. O Instrumentum laboris observa isso
e aponta os muitos desafios à comunhão e à ordem social que a indiferença pelas justas
exigências dos relacionamentos causa ao continente. A restauração da comunhão e da
justa ordem nesses casos é o que a reconciliação espera; e ela toma a forma do restabelecimento
da justiça, que por si mesma restitui paz e harmonia à Igreja-Família de Deus e
à família da sociedade. O que segue pretende contribuir para o debate do tema sinodal,
fornecendo uma breve base bíblica dos conceitos referidos com a finalidade de reunir
exemplos dos termos e da sua interacção nos relacionamentos humanos (na sociedade
humana) principalmente na relação de Deus com o homem (humanidade). a. Servidores
(diakonoi) de Reconciliação como Restabelecimento da Justiça
Nas Escrituras.
Reconciliação é uma iniciativa divina, uma acção livre e gratuita de Deus para com
a humanidade; e o seu propósito é reparar e restaurar a comunhão que convém estabelecer,
mas que o pecado ameaça e destrói.
O ensinamento de São Paulo aos Coríntios
nessa matéria é muito instrutivo: “Todo aquele que está em Cristo é uma nova criatura.
Passou o que era velho; eis que tudo se fez novo! Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou
consigo, por Cristo, e nos confiou o ministério desta reconciliação. Porque é Deus
que, em Cristo, reconciliava consigo o mundo, já não considerando os pecados dos homens,
e pôs nos nossos lábios a mensagem da reconciliação. Portanto, desempenhamos o cargo
de embaixadores em nome de Cristo, e é o próprio Deus que exorta por nosso intermédio.
Em nome de Cristo rogamo-vos: reconciliai vos com Deus!” Reconciliação, portanto,
é um acto divino, o qual nós (humanidade) experimentamos, e através dessa experiência
tornamo-nos os seus instrumentos e embaixadores.
A Experiência de Reconciliação
dos Apóstolos
Os Evangelhos apresentaram a vida e o ministério de Jesus como
a obra de salvação do Pai para o género humano. Os discípulos de Jesus foram os primeiros
a ser chamados para experimentar a oferta de salvação do Pai em Jesus e fizeram
isso de várias maneiras, inclusive através do perdão e da reconciliação. A oferta
de “paz” de Jesus aos discípulos na manhã da Ressurreição (Jo 20:19-21), por exemplo,
era de perdão pela traição e abandono, bem como de restabelecimento da amizade. Jesus
não pediu uma admissão de culpa por parte de seus discípulos. Não há pedido de perdão;
e nenhuma desculpa foi proferida. Simplesmente houve um benigno comentário sobre as
suas faltas. Foram oferecidos um perdão gratuito e uma conciliatória saudação de paz. A
Reconciliação aqui é um gesto conciliatório livre e imerecido, no qual o ofendido
(Jesus) vai até aos ofensores (os discípulos). Agora enviados a anunciar o Evangelho
até aos confins da terra, os discípulos-apóstolos de Jesus desempenham a sua missão
como “evangelizadores que foram evangelizados” e como “embaixadores da reconciliação
que experimentaram a reconciliação”.
A Experiência de Reconciliação de Paulo
Sucessivamente,
Paulo segue os discípulos-apóstolos de Jesus como um pregador da mesma oferta de salvação
em Jesus. Contudo, tendo recebido a tarefa de anunciar Jesus nas particu¬lares circunstâncias
do seu encontro com o Senhor ressuscitado no caminho de Damasco, também Paulo entende
a oferta de salvação em Jesus por parte do Pai como um acto de reconciliação do Pai.
Por conseguinte, como ele mesmo admite: “eu que outrora era blasfemo, perseguidor
e injuriador. Mas alcancei misericórdia, porque ainda não tinha recebido a fé e o
fazia por ignorância. E a graça de nosso Senhor foi imensa...” (1Tm 1:13-14). Além
disso, para Paulo a experiência da salvação foi também uma passagem da hostilidade
e inimizade a Cristo e a sua Igreja para a fé em Cristo e a fraternidade com a sua
Igreja. Esta passagem da inimizade para a amizade constitui reconciliação; e é uma
experiência imerecida que só Deus pode impulsionar e conduzir a fazer. Nisto, Paulo
considerou-se a si mesmo um exemplo para aqueles que mais tarde acreditariam em
Cristo (cf. 1Tm 1:16).
Reconciliação com Deus (vertical) e entre os seres humanos
(horizontal)
Em Jesus: na sua vida e no seu ministério, mas especialmente,
na sua morte e ressurreição, Paulo vê Deus Pai que reconcilia o mundo (todas as coisas
no céu e na terra) consigo mesmo, relevando os pecados da humanidade (cf. 2 Cor 5:19;
Rm 5:10; Cl 1:21-22). Paulo vê Deus Pai que reconcilia judeus e gentios consigo mesmo
num corpo através da cruz (Ef 2:16). Mas Paulo também vê Deus reconcilar judeus e
gentios, criando um homem novo em lugar de dois (Ef 2:15; 3:6). Assim, a experiência
da reconciliação estabelece comunhão a dois níveis: comunhão entre Deus e a humanidade;
e através da experiência da reconciliação faz-nos também “embaixadores da reconciliação”.
Isso restabelece inclusive a comunhão entre os homens.
Reconciliação entre
Deus e a Humanidade
A criação da humanidade à imagem e semelhança de Deus,
a eleição de Israel para ser “parte e herança de Deus”, e a redenção da humanidade
em Cristo e o selo do Espírito Santo (cf. Ef 1:13; 4:30) direccionam a humanidade
para a comunhão com Deus. Quando a humanidade está alienada e afastada de Deus
por causa do pecado (desobediência, idolatria, rejeição de Jesus), a reconciliação
concretiza-se no perdão; esta é a obra de Deus [26]. É Deus quem inicia a reconciliação
com Israel e a humanidade pecadora e afastada, trazendo-os de volta a Si (Sl 80:3,
7, 19; Os 11; 14) “para servirmos à celebração de sua glória” (Ef 1:12) e de acordo
com a “imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade”. (Ef 4:24); e Jesus, “Aquele
que não conheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós” (2 Cor 5:21; Gl 3:13; Rm 8:5)
permanece o nosso significado de reconciliação. Isto, entretanto, é a obra do amor
de Deus.
Reconciliação com a Família Humana
Recordando brevemente a
história de Jesus e Zaqueu (Lc 19), reconhecemos que o encontro entre eles não leva
só a uma conversão que estabelece a comunhão entre Zaqueu e o Senhor. Este encontro
leva inclusive a uma conversão que restabelece o relacionamento de Zaqueu com o seu
povo. Nesse novo relacionamento, a sua visão do próprio povo também mudou: eram
irmãos, não para serem explorados ou defraudados. A reconciliação, portanto, não
está limitada a um Deus que atrai a humanidade afastada e pecadora em Cristo através
do perdão dos pecados e do amor. É a restauração dos relaciona¬mentos entre as pessoas
através da harmonização das diferenças e da remoção de obstáculos nos relacionamento
com a experiência do amor de Deus. Com efeito, este é o factor distintivo da reconciliação
no ministério de Jesus Cristo. Por outro lado, as Escrituras atestam muitas formas
de reconciliação através de alianças, como: - o ofensor admite o erro e pede perdão,
reconhecendo assim que o ofendido está da parte do direito (rectidão) [28]; - o
ofensor nega o erro e então inicia um julgamento para estabelecer quem tem direito; -
o ofendido perdoa unilateralmente e encontra a cessação das hostilidades, estabelecendo
a paz e a reconciliação. Em todos os casos citados, a reconciliação, como uma passagem
da hostilidade para a paz, da alienação à comunhão, não é um sacrifício dos direitos
e não substitui a justiça. Ao contrário, é o restabelecimento da justiça e o seu
fruto. Em suma, a reconciliação da humanidade ainda afastada pode tomar a forma
da vinda dos Judeus e dos Gentios juntos como herdeiros do reino (Ef 2:13-15). Pode
ter a forma dos membros de uma comunidade orante que harmonizam as próprias diferenças
e restabelecem a paz uns com os outros (Mt 5:23-26; 1 Cor 3:3); e pode também ter
a forma de uma comunidade composta por membros que se perdoam reciprocamente as ofensas
(Mt 18:15; Lc 17:3-4), e não alimentam raiva e rancor (Ef 4:26). Através do perdão,
os membros da família humana constroem uma comunidade de reconciliados (Ef 2: 16-19),
cujo perdão mútuo reflecte o do nosso Pai do céu (Mt 6:12; Lc 11:4), o qual iniciou
a nossa reconcilia¬ção com o seu amor e misericórdia. Uma perspectiva para o Instrumentum
laboris
Eis uma espiritualidade da reconciliação que pode inspirar o debate
no Instrumentum laboris, e que se deve tornar a atitude do servidor da reconciliação.
Por isso, numa Igreja que é uma família em comunhão, a reconciliação não se torna
um estado ou um acto, mas um processo dinâmico, uma tarefa a ser realizada todos os
dias, um objectivo a perseguir, uma tentativa sem fim para reatar, através do amor
e da misericórdia, amizades interrompidas, vínculos fraternos, confiança e segurança.
B.
Servidores (diakonoi) da Justiça (adesão aos princípios morais)
O fruto da
reconciliação entre Deus e os homens e dentro da família humana (entre homem e homem),
como já foi observado precedentemente, é o restabelecimento da justiça e a busca de
uma relação. Ao mesmo tempo, é ética e religiosa, e é motivada pelo amor e pela misericór¬dia.
Falsas
formas de justiça
O conceito de justiça tornou-se secularizado antes de significar: -
meramente “a lei do mais forte”; - um compromisso social para evitar males piores;
e - a virtude da imparcialidade na aplicação geral de uma lei, sem qualquer precaução
pela justiça natural[30]. O surgimento do “Espírito do Capitalismo” também acrescentou
à alienação do conceito de justiça de algumas raízes transcendentais [31]. A ética
da economia, por exemplo, era racionalista e individualista. A principal preocupação
era o lucro; e estava distante da necessidade de solidariedade, um “ordo amoris” e
de todos os vínculos religiosos e éticos. Consequentemente, toda a noção de justiça
social foi eliminada e a justiça foi aplicada às convenções de contratos negociados
em conformidade com a lei da oferta e da procura, sem restrições para as empresas
individuais. O Estado meramente reforçou a ordem pública e a execução dos contratos,
enquanto permanecia rigorosamente neutro em relação ao conteúdo [32]. Ao contrário,
a justiça da diaconia cristã é a ordem justa das coisas e a realização da busca equilibrada
de relações. É a justiça e a adesão aos princípios morais de Deus e do seu reino (Mt
6:33). Na actual situação de pecado da humanidade e de corações feridos, de qualquer
modo, o Antigo Testamento é firme na visão da justiça que não pode chegar ao homem
através da própria força mas é um dom de Deus; o Novo Testamento desenvolve completamente
esta visão, fazendo da justiça a revelação suprema da graça salvífica de Deus.
O
sentido da “Rectidão do Reino”
A rectidão ou a justiça do reino não é uma justiça
suficientemente recompensada, não obstante isto às vezes seja o sentido da sua atribuição
a Deus (Ap 15:4; 19:2, 11; 16:5-6; Hb 6:10; 2 Ts 1:6). Não há sequer o sentido
de “conformidade com uma norma ou com um conjunto de normas”. Pelo menos, não é este
o significado principal e neste sentido nunca pode ser aplicado a Deus. Apresentada
diversamente como tsedaqah e tsedek, a justiça (rectidão) é o cumprimento da exigência
de relação, relacionamento com Deus ou com os homens [34]; e quando Deus ou o homem
cumprem as condições impostas sobre si mesmos pela relação, em termos bíblicos é
“justo” (tsadiq/dikaios). Fundamentalmente, três eventos explicam todas as relações
entre Deus e os homens e entre homem e homem; são eles:
- a criação da humanidade
“à sua imagem e semelhança” (Gn 1:26-27) que faz dos seres humanos criaturas de Deus.
De qualquer maneira, o próprio acto da criação postula para a humanidade uma origem
e uma paternidade comuns que liga profundamente todos os membros da família humana,
uns aos outros, como irmãos e irmãs [35]; - a aliança-eleição de Israel por parte
de Deus que faz de Israel “o primogénito de Deus”, “a sua herança”, “o seu dote”.
Ele torna irmãos também os filhos de Israel (Dt 15:11-12); - a nova aliança no
sangue de Cristo, pelo qual todos os seus seguidores recebem o “selo do Espírito Santo”
(Ef 1:13-14), que os torna “templos do Espírito Santo” e “moradas de Deus”. Isso
constitui a base do relacionamento entre Deus e a humanidade, em vários pontos da
história; e essas iniciativas de Deus são actos do seu amor. Nesse sentido, a rectidão
é uma radical e compreensiva justiça de caráter religioso, que requer que a humanidade
se renda a Deus, em obediência e em fé, e que torna qualquer pecado uma “injúria”,
uma injustiça e impiedade. Isso também requer que o homem cumpra as justas exigências
de relacionamento-padrão homem/mulher por razões da criação e da fraternidade universal
dos homens, e por razão de salvação e um chamado comum à santidade e filiação em Cristo.
Rectidão
(Justiça) baseada na Criação
A questão sobre o pagamento de impostos a César
(Mt 22:15-22; Mc 12:13-17; Lc 20:20-26) dá a Jesus a oportunidade para definir a
relação básica entre Deus e o homem como justiça (rectidão). Na resposta de Jesus,
o denário pertencia a César, porque trazia a marca da propriedade de César, nomeadamente,
a sua imagem e a sua inscrição. Por justiça, a propriedade de César da moeda deve
ser reconhecida e sustentada; então, “dai a César o que é de César”. A segunda
parte da resposta de Jesus é dirigida ao tema mais fundamental se a Deus se dá o justo
valor por aqueles que foram criados à sua “imagem e semelhança”, nomeadamente, o ser
humano (Gn 1:26-27). A pertença da humanidade a Deus, por razão da sua criação à “imagem
e semelhança de Deus” é a base da vida de comunhão entre Deus e a humanidade; e tem
a forma de justiça: humanidade dando a Deus o seu justo valor. Nas Escrituras, a humanidade
dá a Deus o justo valor quando o homem “obedece à voz de Deus”, “crê Nele”, “teme”
e “ louva-O”; e onde isso falta, a humanidade precisa mostrar “arrependimento” (Act
17:30). Analogamente a paternidade comum dos homens (Act 17:28-29) impõe a isso
um “ordo amoris” de solidariedade e fraternidade universal, que é sustentada pela
justiça nos seus relacionamentos.
Rectidão (Justiça) baseada nas Alianças de
Deus
As diferentes alianças no Antigo Testamento estabeleceram várias relações
entre Deus e os indivíduos: Abraão (Gn 17:4), Isaac (Gn 17:19,21), Jacó (Ex 6:4),
Davi (2 Cr 21:7); a tribos e as famílias: Abraão (Gn 17:11), Davi (2 Sm 7); e
o povo de Israel (Dt 4:12-13); portanto, Êx 19-20; 24:8; Is 24;5). Algumas das
alianças do Antigo Testamento também expressam os relacionamentos entre os seres humanos: Isaac
e Abimeleque (Gn 26, 28-29), Jacó e Labão (Gn 31, 44), Davi e Jônatas (1Sm 20 , 16).
As alianças estabeleceram relações especiais que impuseram exigências aos envolvidos[36];
e justiça (rectidão) era a observância dessas exigências dos relacionamentos, os quais
garantiam a fidelidade e a comunhão, verticalmente, entre Deus e a humanidade, e horizontalmente,
entre as pessoas. Os termos opostos na Bíblia são “malvado (malfeitor)” e “perverso”
(rasha); e denotam o mal cometido contra alguém, com quem se relaciona. Então, o
“malvado” destrói a comunidade (comunhão) porque falha em cumprir exigências do relacionamento
em comunidade [37]. As alianças entre Deus e as pessoas e com o povo de Israel representam
iniciativas de Deus, que levam as pessoas, as famílias e o povo de Israel a um relacionamento
especial e requerem que eles vivam as exigências dos relacionamentos com Deus e entre
si. As exigências do relacionamento, por um lado, eram submissão na fé e confiança
na oferta de Deus, expressas algumas vezes através da execução de um simples rito
de circuncisão (Gn 17:10-11), mas, algumas vezes, através da observância das leis
(torah) de Deus (Êx 19:5; Dt 7:9, etc). Por outro lado, os Israelitas deviam cumprir
certas exigências entre si (justiça social) devido à sua relação de aliança com
Deus. Com os seus muitos pecados e violações das exigências da sua relação de aliança
com Deus, Israel agiu injustamente (injúria) e colocou-se a si mesmo fora da relação.
Já não pode clamar a Deus como um parceiro da aliança. Se Deus continuou a tratá-lo
como um parceiro de aliança, foi porque ignorou as suas violações, “fazendo-o retornar”
(Sl 80:3, 7, 19). Israel, por sua vez, só podia confessar os seus pecados e deixar
que Deus a trouxesse de volta. Este foi o tema principal de Oseias e dos profetas
do pós-exílio. A rectidão de Deus agora consistia na sua justificação de Israel: trazendo
Israel para uma aliança de relacionamento não obstante as suas falhas. Por sua vez,
a rectidão de Israel consistia em confessar os seus pecados, reconhecendo as suas
faltas e aceitando na fé a generosa oferta da salvação de Deus.
Rectidão
(Justiça) baseada na Nova Aliança em Cristo
É nesta linha que João Baptista,
iniciou o seu ministério; e o seu ministério cumpriu toda a justiça no sentido que
o arrependimento e a confissão dos pecados que exigia eram a admissão de Israel (da
Humanidade) que não conseguia ser fiel às exigências da Aliança, a sua experiên¬cia
imerecida de receber de qualquer modo o perdão justificador e o favor e reconhecimento
que Deus age só por amor e misericórdia. Quando, entretanto, Jesus se fez baptizar
por João, ele uniu-se à humanidade para professar tudo o que disse como justiça
de Deus. Por isso se diz que Jesus cumpriu toda a justiça! Em Jesus e no seu
ministério, vêem-se duas coisas: - A revelação da justiça como graça justificante
de Deus que ignora as justas exigências da relação da Aliança e introduz a humanidade
por misericórdia [38] e amor num relacionamento de aliança. Porque, “gratuitamente
fostes salvos mediante a fé. Isto não provém dos vossos méritos, mas é puro dom de
Deus”. (Ef 2:8) - O dom do Espírito de Jesus para a Igreja e os seus membros, habilitando-os
a corresponder à justiça de Deus (rectidão) na fé e tornar-se “justiça de Deus em
Cristo” (2 Cor 5:21), “justifi¬cando”, por sua vez, quem está fora da misericórdia
e amor [39]: ignorando os seus pecados e violações aos seus direitos, os relacionamentos
sociopolíticos, etc., e restaurando dessa forma a comunhão da família de Deus e da
família da sociedade. Este sentido de justiça e rectidão sugere que a exortação
do Instrumentum laboris para ser servidores de justiça é antes de mais e sobretudo
um convite a uma experiência espiritual: a experiência da justificação de Deus (graça
justificante) na fé, e a testemunhá-la na Igreja e na sociedade, justificando os outros.
De que modo as feridas e as muitas lacerações que o povo vive e experimenta no continente
podem sarar e a comunhão ser restaurada?
c. Servidores/Ministros (diakonoi)
de Paz: O Catecismo da Igreja Católica repete o ensinamen¬to de Santo Agostinho que
a “paz é a tranquilidade da ordem” [40]. Isso vai confirmar como o “respeito pelo
desenvolvimento da vida humana requer isso”, e como é “o trabalho da justiça e o
efeito da caridade” [41].
Paz como obra de justiça
Justiça, (Honestidade)
como foi ressaltado, é um conceito de relação; o justo é aquele/aquela que atende
às exigências do relacionamento no qual está inserido. O caso de Israel corrompido
e da humanidade decaída (Rm 5,6), que Deus justificou em Cristo atribuindo-Lhe a sua
justiça (rectidão), consiste no reconhecimento desta necessidade para a graça justificante
de Deus e a sua submissão a ela na fé. Este seria exactamente o comporta¬mento para
predispor a humanidade à paz de Deus no Evangelho. Porque quando, no nasci¬mento de
Jesus, o anjo anuncia o advento da Paz de Deus na terra, destinava-se somente àqueles
“que Ele ama” (Lc 2,14). Na terra, “a Paz” destina-se “aos homens que Ele ama”
(Lc 2,14); e o significado da frase “aos homens que Ele ama”, segundo alguns autores,
é “todo aquele que receberá a graça de Deus e responderá com fé” [42]. Esta interpretação
da frase, como se recorda, coincide com o significado de “justo” e “recto”, como acima,
e faz crer que os “justos”, como aqueles que estão dispostos a aceitar a obra de Deus
na fé são também aqueles sobre os quais, na terra, repousa a “paz de Deus”. Ao que
parece, aqueles que experimentam a paz de Deus são os que se dispõem a promover a
paz na terra, cumprindo as condições das relações em que se encontram envolvidos.
Evidencia-se assim uma estreita relação entre paz e justiça (rectidão), na qual
Isaías vê (Is 32,17), o Salmista canta (Sl 85,10) e Paulo vê em todo Cristão que caminha
na recta via (justificado) com Deus em Cristo: “Justificados, pois, pela fé temos
a paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo...”. (Rm 5,1). Portanto, a paz
provém do céu. É o dom de Deus, e está estreitamente relacionado com a sua justiça/rectidão
(“os homens que ele ama”).
A paz como Caridade (o amor de Deus em Cristo)
Visto
que a”paz” foi directamente relacionada com a aliança e com a vivência das suas exigências,
quando o povo de Deus desrespeitou a aliança, a “paz” também foi expulsa. Foi necessária
uma nova intervenção de Deus e a sua amorosa misericórdia para levar a paz ao seu
povo. Por isso, as escrituras de Israel pós-exílio começaram a ver a “paz” gerada
do castigo do servo de Deus:“O castigo que nos salva pesou sobre ele”(Is 53,5). Na
sua missão e no seu ministério, Jesus Cristo cumpriu a visão dos últimos profetas
de Israel: “Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único” (Jo 3,16): e
depois de “ser entregue por nossos pecados” (Rm 4,25), o Filho de Deus se tornou a
nossa “paz”. Assim sendo, se a “paz” provém de Deus (Gl 1,3; Ef 1,2; Ap 1,4) e é de
Deus, (Fl 4,7; Cl 3,15; Rm 15,33) Cristo é aquela “paz”; (Ef 2,14). É Ele que a proclama
e a estabelece (Ef 2,17); e Ele é a presença de Deus, que traz aquela paz que o mundo
não pode dar.
O significado da Paz de Cristo
A “Paz” não tem apenas
um significado laico, por significar a ausência de conflitos, (Gn 34,21, Js 9,15;
10,1,4; Lc 14:32), a presença de harmonia em casas e famílias (Is 38,17, Sl 37,11,
1 Cor 7,15, Mt 10,34; Lc 12,51), a segurança e a prosperidade individual e nas comunidades
(nações) (Jz 18,6; 2 Rs 20,19; Is 32,18). A “Paz” não existe só quando os seres humanos
e as sociedades cumprem os seus deveres e reconhecem os direitos de outras pessoas
e sociedades” [43] e nem é apenas um dos resultados da acção da justiça [44]. Essencialmente,
a “Paz” transcende o mundo e os esforços humanos [45]. É um dom de Deus (Is 45,7;
Nm 6,26) doado aos “honestos/justos”. Normalmente é expressa como “shalom” (Antigo
Testamento) e “eirn” (LXX & Novo Testamento), toda forma de “paz” é um conjunto
determinado por Deus e “doado” aos homens que ele ama”, ou seja, os honestos e os
justos. Consequentemente, quando Deus perdoou o pecador (Lc 7,50) e curou os doentes
(Mc 5,34), mandou-os embora “em paz”: “ide em paz”. “Ide em paz” não era apenas uma
bênção de adeus, mas a concessão da paz. Os perdoados e os curados não tiveram apenas
a sua saúde física restabelecida; foram pacificados com Deus através da sua fé, e
tornaram-se perfeitamente saudáveis diante de Deus e da comunidade [46]. Este é
também o significado da saudação de “paz” de Jesus a seus discípulos, na manhã da
ressurreição (Jo 20,19-21). Era o perdão por o terem traído e um novo sinal de amizade.
Jesus não precisava que os seus discípulos fizessem uma admissão de culpa. Não havia
algum pedido de perdão; não foram proferidas desculpas. Ao contrário, deu-se um livre
perdão e uma saudação conciliatória de “paz”. A “paz” de Jesus é a nossa paz, pois
ele foi castigado em virtude das nossas iniquidades (Is 53,5). Ela é, portanto, a
restauração gratuita e imerecida da plenitude e da comunhão com Deus e com os homens;
e é recebida por todos aqueles que a acolhem como graça de Deus e respondem com fé,
ou seja, “aqueles que ele ama” (os justos, honestos). Como justos portadores da
paz de Cristo na terra, Paulo exorta as comunidades cristãs a perseguir a paz (Rm
14,19; Ef 4,3; Hb 12,14) e a estar em paz uns com os outros (Rm 12,18; 2 Cor 13,11),
exactamente como o instrumentum laboris exorta que a Igreja faça com a África. Ainda
em qualidade de portadores da paz de Cristo na terra, devemos recordar-nos, assim
como o fizemos com a “justiça”, que a “paz” é um acto que vai além da justiça no sentido
estreito da palavra, e requer amor [47]. Ela deriva da comunhão com Deus e tem como
finalidade o bem-estar do homem (humanidade). Por isso, ao exortar a Igreja na África
e nas ilhas a ser “ministra (servidora) de reconciliação, justiça e paz”, conforme
o convite do primeiro sínodo à Igreja para viver na comunhão Igreja-família de Deus,
o segundo sínodo convida a Igreja a experimentar as virtudes que fundamentam a nossa
comunhão com Deus e a testemunhá-las/vivê-las - ou seja, a reconciliação, justiça
e paz através do amor e da misericórdia - no continente. As implicações deste ministério
são aquilo que o (tema do) sínodo explica agora com os símbolos do sal e da luz: sal
da terra e luz do mundo.
III. DO SER “TESTEMUNHAS DE CRISTO” (At 1,8) A SER
“SAL DA TERRA” E “LUZ DO MUNDO” (Mt 5,13.14)
Ao colher os frutos do primeiro
sínodo na Ecclesia in Africa, o Papa João Paulo II exaltou o “testemunho” como elemento
essencial da cooperação missionária e recordou à Igreja africana que Cristo não só
apresenta aos seus discípulos na África o desafio de o testemunhar, mas confere-lhes
o mesmo mandato confiado aos dois apóstolos no dia da Ascensão: “Sereis minhas testemunhas”
(Act 1,8) na África [48]. Logo, comparando os discípulos de Cristo na África
com o sal e a luz, o Santo Padre diz: “Na época actual, no contexto de uma sociedade
pluralista, é sobretudo através do empenho dos católicos na vida pública que a Igreja
pode exercer uma influência eficaz. Da parte dos católicos, sejam eles profissionais
liberais ou professores, empresários ou funcionários, das forças de segurança ou políticos,
espera se que dêem testemunho de bondade, verdade, justiça e amor de Deus nas suas
actividades quotidianas. “O dever do fiel leigo (...) é ser sal e luz do mundo (...),
particularmente, lá onde ele é o único a poder intervir”. “Sal da terra” e “luz
do mundo”, portanto, foram as imagens/metáforas nas quais o Papa concentrou o seu
olhar sobre as actividades missionárias da Igreja na África e nas ilhas. Hoje, este
sínodo convida a Igreja na África a interpretar a actuação da sua obra de reconciliação,
justiça e paz no continente como “sal da terra” e “luz do mundo”.
Servos (diakonoi)
de Reconciliação, Justiça e Paz, como “sal da terra”
A metáfora “sal”, usada
por Jesus nos Evangelhos sinópticos, (Mt 5,13; Mc 9,50; Lc 14,34) para descrever a
peculiaridade da vida de seus discípulos, é polivalente; tem muitos significados.
Assim como o “Mar Morto” é também chamado “mar do sal” (Gn 14,3), para aqueles que
vivem próximos das águas do “Mar Morto”, “sal” pode significar “morte” (cf. Gn 19,26).
Deus, Senhor da vida, tratará, todavia, as águas do “mar do sal” com a água do templo
e dar-lhe-á vida (Ez 47). Por outro lado, o sal pode ser também conservativo. Ele
tempera e conserva os alimentos (Job 6,6; Mt 5,13; Lc 14,34), e de maneira semelhante,
como no caso da purificação de Eliseu das águas de Jericó (2 Rs 19,22), o sal tem
também poder purificador. O uso do sal para selar amizades e a aliança na época
do Antigo Testamento (Esd 4,14) significa, provavelmente, que Deus empregava simbolismos
para expressar a continuidade e estabilidade da subsistência dos sacerdotes no Antigo
Testamento. “É uma aliança inviolável, perene, diante do Senhor...”(Nm 18,19). O uso
do sal em ocasiões de aliança pode estar, talvez, na base do convite de Jesus a seus
discípulos: “Tende sal em vós e vivei em paz uns com os outros”(Mc 9,50), um convite
a observar a lealdade mútua de uma relação de aliança, e viver em paz. O sal,
porém, é símbolo também de “sabedoria” e de “força moral”; é algo que valoriza as
coisas: é o que se verifica quando, por exemplo, é usado para adubar terrenos. Consequentemente,
quando Jesus se refere a seus discípulos como “sal da terra” e quando o sínodo exorta
a Igreja na África a ser “servidora de reconciliação, justiça e paz”, como “sal da
terra”, quer Jesus quer o sínodo utilizam um símbolo polivalente para expressar as
diversas tarefas e exigências de ser discípulos e de ser Igreja (família de Deus)
na África. Assim, como no caso dos profetas, negar a Igreja e o seu Evangelho equivale
a expressar um juízo e transformar a terra numa “terra de sal” (Dt 29,23; Jr 17,6;
Sl 107,34). Num continente em que algumas regiões vivem situações de conflito e de
morte, a Igreja deve espalhar sementes de vida: iniciativas geradoras de vida. Ela
deve preservar o continente e a sua população dos efeitos destruidores do ódio, da
violência, da injustiça e do etnocentrismo. A Igreja deve cuidar e purificar as mentes
e os corações de mentalidades corruptas e malignas, e difundir a sua mensagem evangélica,
que gera vida, a fim de manter vivos o continente e seu povo, preservando-os no caminho
da virtude e dos valores evangélicos, como a reconciliação, a justiça e a paz [50].
Ainda mais importante, porém, é o símbolo do “sal” que convida a Igreja-Família de
Deus na África a aceitar dedicar-se (consumir-se) em favor da vida do continente e
do seu povo.
Servidores (diakonoi) de Reconciliação, Justiça e Paz, como “luz
do mundo”
A referência aos discípulos como “luz do mundo” utiliza uma
simbologia cujas origens provêm do Antigo Testamento: a característica e a missão
de Sião, a cidade sobre uma colina. Consequentemente, o Servo-Messias foi convocado
para assumir esta vocação, realizando-a em Jesus. Logo, Jesus é a “luz do mundo”,
aliás, a “luz verdadeira, que ilumina todo homem” (Jo 1, 9) e transforma também os
seus discípulos em “luz do mundo”.
Sião, a cidade sobre a colina e Luz das
Nações
Sião é a montanha da casa do Senhor (Is 2,2); é a morada da Arca da
Aliança (2 Sm 6; 1 Rs 8,20 21) e o Nome do Senhor (Dt 12,5). A Arca da Aliança abrigava
a Lei de Deus; a Lei era “uma lâmpada e o ensinamento, uma luz” (Pr 6,23; Sl 19,8;
119,105; Br 4,2). Todavia, o nome de Deus representava a “presença de Deus” e a
luz da presença de Deus pressupunha o poder e a acção salvífica de Deus (Is 10,17;
Sl 27; 36,9) para salvar Jerusalém e seu povo [51]. Em virtude da posse da luz do
conhecimento da Lei e da luz da salvação de Deus, Jerusalém tornou-se uma luz para
as nações e os reis.[52].
A experiência em Sião se torna a vocação do Servo
Messias
Nas mãos de Isaías, a experiência de Jerusalém, luz das nações e dos
reis, é apresentada como a vocação de um servo. O servo de Javé, dotado do Espírito
de Javé para levar justiça às nações (Is 42,1; 51,4) é visto como a aliança do povo
e a “luz das nações” (Is 42,6, 49,8 ss). Sua convocação para ser “luz das nações”
implica numa experiência pessoal da salvação de Javé (Is 49,7), o que permitiu que
a salvação de Javé alcançasse todos os cantos da terra. Nesses trechos, referentes
ao servo, “luz” é o conhecimento da Lei e da salvação de Deus; é um dom destinado
a chegar a todos os povos.
Jesus realiza a vocação do Servo-Messias
A
imagem do Servo-Messias se realiza em Jesus. Mt 4,16 cita Is 9,2 e alude à estrela
do nascimento de Jesus para destacar a realização e a continuação, em Jesus, do simbolismo
revelador e salvífico da luz no Antigo Testamento. Jesus é a “luz da salvação de Deus”(Jo
1,5; 3,19; 8,12; 12,46) e é a “luz da Palavra/Lei/Sabedoria de Deus” (Jo 1,4; 9,5;
12,36,46). Jesus é a “luz do mundo” (Lc 2,32; Gv 1,9); morre e ressuscita para “anunciar
a luz ao povo e aos gentios” (Act 26,23).
Os discípulos de Jesus e os Cristãos
como luz do mundo
Consequentemente, a referência aos discípulos como “luz
do mundo” nada mais é do que o modo pelo qual Jesus faz dos seus discípulos a sua
extensão e representação no mundo. “Vós sois a luz do mundo” expressa, desta forma,
a grande vocação dos discípulos de Jesus: um chamado a realizar, em Cristo, a vocação
de Israel no Antigo Testamento a ser testemunha da luz do conhecimento da Lei de Deus
(Evangelho) e da sua salvação no mundo.
Esta elevada vocação dos seguidores
de Jesus é a proposta do Sínodo para a Igreja na África; ela tem início com o seu
chamado (baptismal) que faz deles uma “raça eleita, um sacerdócio real, uma nação
santa, um povo da sua particular propriedade, a fim de que proclameis as excelências
daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1 Pd 2,9). Respondendo
ao chamado, eles se rendiam à iluminação da Palavra da verdade (Ef 1,17 ss), à luz
do Evangelho da salvação (2 Cor 4,4) e a seu convite ao arrependimento. A vida que
provém do estado de discípulo faz deles “luz no Senhor e filhos da luz” (Ef 5,8),
“filhos da luz e filhos do dia”(1 Ts 5,5; cf. Rm 13,12). E Deus disse: “Do meio das
trevas brilhe a luz!, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar
o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo” (2 Cor 4,6).
Ela conduz à fé em Jesus e a receber o selo prometido pelo Espírito Santo (Ef 1,13)
para viver uma vida sem manchas, porque “o fruto da luz é bondade, justiça e verdade”
(Ef 5,9).
Conclusão: que terra? Que mundo?
Nos tempos de Jesus, a terra
e o mundo para o qual os discípulos deviam ser “sal e luz” eram a terra e o mundo
de fora do círculo dos doze, “pois aos que são de fora tudo se lhes propõe em parábolas”
(Mc 4,11). Neste sínodo, a terra e o mundo para os quais os Católicos do continente
e das ilhas devem ser “sal” e “luz” como servos de reconciliação, justiça e paz é
a África dos nossos dias, assim como descrito no Instrumentum laboris e mencionado
acima [53]. É aqui que Jesus Cristo, depois de ter sido revelado através das Escrituras,
como nossa reconciliação, justiça e paz, agora chama e autoriza os seus discípulos
na África e nas ilhas a dedicarem-se, como sal e luz, na construção da Igreja na África
como uma verdadeira família de Deus, através dos ministérios da reconciliação, justiça
e paz, exercidas no amor, como seu mestre.
NOTAS
[1] João Paulo II,
Discurso na Catedral de Cristo Rei (17 de Setembro de 1995), Joanesburgo, África do
Sul: “Aqui em Joanesburgo, na África do Sul, em união com a Igreja desta parte do
continente, encontramo-nos para promulgar a Exortação Apostólica “Ecclesia in Africa”,
que contém as propostas dos Padres Sinodais no final da sessão de trabalho realizada
em Roma, em abril de e maio de 1994. Com a Autoridade Apostólica que cabe ao Sucessor
de Pedro apresento a toda a Igreja de Deus na África e Madagáscar, a profunda reflexão
e resoluções para o sínodo...” [2] Cf. João Paulo II, Exortação Apostólica Pós-sinodal
Ecclesia in Africa, # 13. [3] Cf. João Paulo II, Discurso aos participantes do
12º Encontro do Conselho Pós-sinodal da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos para
a Segunda Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos, em 15 de Junho de
2004. [4] Primeira Assembleia Especial para a África, Instrumentum laboris, 1993
# 1. O mesmo documento afirmou: “Parece que a África esteja vivendo um momento favorável
que convida os mensageiros de Cristo a se entregarem totalmente a Cristo”: Instrumentum
laboris, 1993 # 24. [5] Ibidem, # 22- 24. “Sinais dos tempos” referindo ao contexto
africano, onde o Evangelho tem de ser proclamado. [6] Cf. A heróica vida dos mártires
e santos africanos, por um lado, e a heróica vida e o esforço pela independência dos
africanos na África pós-colonial, na África do Sul, no Sudão, etc, por outro. [7]
Cf. João Paulo II, Discurso aos participantes do 12º Encontro do Conselho Pós-sinodal
da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, 15 de Julho de 2004. [8] Cf. João Paulo
II, Exortação pós-sinodal Ecclesia in Africa # 13-14, 39-42, 51; Segunda Assembleia
Especial para a África , Lineamenta, # 6-8. [9] Segunda Assembleia Especial para
a África, Lineamenta, “Prefácio”. [10] É o que o Instrumentum laboris refere para
uma “continuidade dinâmica” e ilustra copiosamente. [11] Cf. João Paulo II, Carta
do Arcebispo Eterovic por ocasião do Encontro do Conselho Especial para a África da
Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos (23 de fevereiro de 2005).
[12] Cf.
João Paulo II, Exortação pós-sinodal Ecclesia in Africa # 4. 13] Cf. Ibidem., #
2-5. De facto, o SECAM “estudou caminhos e significados planejando este o encontro
continental . A consulta da conferência episcopal e todos os Bispos da África e Madagáscar
foi realizada, depois que eu convoquei a Assembleia Especial para a África do Sínodo
dos Bispos. (Ecclesia in Africa # 5). [14] Segunda Assembleia Especial para a
África, Instrumentum laboris # 21-33. [15] Nana Akuffo-Addo, Ministro dos Negócios
Estrangeiros da República de Gana (2001-2008) disse no encontro com o presidente Kikwete,
da Tanzânia, “já existem na África alguns dirigentes fortes que estão prontos para
seguir em frente; e nós desejamos estar ao seu lado” (Fraternidade Matin, sexta-feira
10/07/09, pág. 1) [16] NEPAD significa Nova Parceria Económica para o Desenvolvimento
da África . NEPAD exige que seja respeitado o governo democrático, e não aceita golpe
de Estado. Existe a configuração do Peer Review Mechanism da antiquada performance
do governo. Reconhecemos o ritmo de trabalho do African Union Parliament e a implementação
dos pré-requisitos dos Estados membros do NEPAD que foi criticado pela sua lentidão.
[17] Lomé Culture é o nome dado a uma série de acordos de cooperação ao desenvolvimento
entre países da Comunidade Europeia (CEE) e suas ex-colónia. Entrou em vigor em 1957
com o tratado de Roma, que sancionou a CEE. Lomé I ‘ Lomé IV estabeleceu um regime
de ajudas mediante o Comércio entre CEE e 46 países ACP (em relação aos direitos humanos,
princípios democráticos e exercício da lei). A convenção de Iaundé foi assinada em
1975 entre a CEE e os países ACP para fornecer infra-estrutura ao desenvolvimento
dos países francófonos. A Convenção de Cotonou, assinada entre a UE e os 70 países
ACP, deveria durar vinte anos. Ela era finalizada à redução da pobreza, ao desenvolvimento
sustentável e à gradual integração das economias ACP na economia mundial. [18]
Os principais objectivos do NEPAD são: erradicar a pobreza, ajudar os países africanos
rumo ao crescimento e ao desenvolvimento sustentável; acabar com a marginalização
da África do processo de globalização, acelerar a tomada de consciência e de poder
das mulheres. [19] “Cooperação significa partilhar com as populações africanas
um ponto de vista: a ideia de uma África que é moderna e independente, onde os homens
e as mulheres africanas, confiantes em si mesmos, construam a própria vida e o próprio
futuro, percorrendo o caminho do desenvolvimento sustentável e democrático. Somente
os estímulos e os esforços realizados pela África levarão ao sucesso” (Discurso do
Dr. Uschi Eid, Secretário de Estado Parlamentar do Ministério Federal para a Cooperação
Económica e o Desenvolvimento da Alemanha, o TICAD III [Conferência Internacional
de Tóquio sobre o Desenvolvimento da África], Tóquio 2003) [20] Barack Obama expressou
o mesmo conceito aos governantes africanos no seu discurso ao Parlamento de Gana durante
a visita ao país em Julho passado. [21] Quando o ex-presidente Clinton em 2003
visitou Gana, o Herald Tribune escreveu: “Foi-nos dito que Clinton tinha ído para
mudar a ideia que a América tem sobre a África: não mais de um continente desesperado,
mas um lugar de oportunidade e esperança”. [22] Cf. Bento XVI, Carta Encíclica
Caritas in veritate, Vaticano, 2009. [23] Segunda Assembleia Especial para a África,
Instrumentum laboris, n. 11. [24] Cf. João Paulo II, Exortação Apostólica pós-sinodal
Ecclesia in Africa n. 63. [25] Cf. Confissão de Paulo: “Ouvistes certamente da
minha conduta de outrora no judaísmo, de como perseguia sobremaneira e devastava a
Igreja de Deus... quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou
por sua graça, houve por bem revelar em mim o seu Filho... (Gl 1, 13-16). [26]
Neste sentido, Deus é como o pastor que busca a ovelha perdida. É como a mulher que
procura uma moeda perdida e como o pai cujo amor provoca o retorno do filho pródigo
(cf. Lc 15). É como Jesus que encontra Zaqueu num sicômoro e diz-lhe para descer (Lc
19,5).
[27] Cf. Pietro Bovati, Restabelecer a justiça, Analecta Bíblica 110,
PIB Roma, 1986. [28] Às vezes, a exigência de conciliação inclui e faz brotar um
gesto concreto, como o reconhecimento da existência dos direitos, cuja negação e abuso
fizeram aumentar a situação de conflito e hostilidade (cf. Abraão e Abimeleque em
Gn 21, 25-34). [29] Neste sentido, existem factores que favorecem a reconciliação
e que os servos da reconciliação devem abraçar; existem outros factores que impedem
a reconciliação e que os servidores da reconciliação devem evitar: a. Factores
que impedem: a impiedade e o desprezo pela relação com Deus; a negação dos direitos
dos outros, o engano e os preconceitos, a hipocrisia e a paz aparente, a atenção selectiva,
o silêncio da cumplicidade e a falência das estruturas do Estado. b. Factores que
a favorecem: o perdão, o amor fraterno, a comunicação, o diálogo, a educação para
a paz e a reconciliação. [30] Sacramentum Mundi 3, 235. [31] Cf. Paulo VI, Carta
Encíclica Populorum Progressio, nº 26. [32]Sacramentum Mundi 3, 236. [33] Cf.
The Interpreter’s Dictionary of the Biblie, vol 4, 85-88. 91-99. [34] A “justiça”,
de qualquer forma se manifeste baseia-se sobre tudo aquilo que é devido a uma pessoa
em virtude da sua dignidade e da sua vocação à comunhão com as pessoas (cf. Compêndio
da Doutrina Social da Igreja nº 3, 63). [35] Isso constitui também a base do imperativo
fundamental que impõe o respeito positivo pela dignidade e pelos direitos dos outros
e também uma ajuda solidária em ir atender as necessidades (cf. Gaudium et Spes, n.
23'32, 63-72; Papa João XXIII, Carta Encíclica Mater et Magistra. A condição dos filhos,
comum à humanidade exige que os homens sejam rectos, agindo segundo a vontade de Deus,
unidos na solidariedade e pelo amor de Deus, como amor de Pai. [36] Tamar era
mais justa do que o sogro, porque ele não respeitava a tradição familiar (Gn 38, 26),
Davi não deveria matar Saul, “porque é o consagrado do Senhor” (1Sm 24, 7, 11) e
um “pai” para ele (1Sm 24, 12). Quando uma relação muda, mudam também as exigências.
Aquele que cuida dos órfãos e das viúvas e defende-os, é justo (Job 29, 12 -16; Os
2, 19). Aquele que trata os servos com humanidade, vive em paz com o seu próximo,
fala bem dos outros, é recto/justo (Job 31, 1-13; Pr. 29, 2; Is 35, 15; Sl 52, 3,
etc). A rectidão/justiça como comportamento compete aos membros da comunidade, às
vezes é tutelada e aplicada pelos magistrados, quando julgam os casos nos tribunais.
Este é o significado da justiça; então quer Deus quer o rei desempenham um papel
de juiz (Dt 25, 1; 1Rs 8, 32; Ex 23, 6ss; Sl 9, 4;5 0, 6, 96, 13). Os julgamentos
rectos são considerados característicos do Messias-Rei. [37] O malvado () é
aquele que exercita a força e a falsidade, ignora os deveres que o parentesco e a
aliança imporiam-lhes, pisa nos direitos dos outros (The Interpreter’s Dictionary
of the Bible), vol 4, 81). [38] O Papa João XXIII definiu a misericórdia um “especial
poder do amor, que prevalece sobre o pecado e a infidelidade dos escolhidos” (Dives
in Misericordia, 4.3). [39] O Papa João XXIII ensina-nos que nas relações entre
pessoas e grupos sociais etc., a “justiça não basta”. É necessário aquele “poder mais
profundo que é o amor” (Cf. Dives in Misericordia, 12). [40] Catecismo da Igreja
Católica, 2304. Ver também Gaudium et Spes, nº 78. [41] Ibidem. [42] “Em todo
o Evangelho de Lucas, a ‘paz na terra’ atinge os eleitos, os discípulos, os estrangeiros,
aquele que acolheu a graça de Deus e responderá com fé” (Cf. Dictionary of Jesus and
the Gospels, ed. Joel B. Green et alii, Inter Varsity Press 1992 p. 605). [43]
João XXIII, Carta Encíclica Pacem in Terris, n. 174. [44] Gaudium et Spes, nº
84.
[45] Embora isto seja uma tarefa, algo no qual se actuar, a “paz” é um
dom de Deus, algo que nossa paz terrena só antecipa vagamente. [46] No caso da
mulher hemorroíssa (Mc 5, 24-34), por exemplo, Jesus não só curou sua impureza religiosa
e social (o tema do sangue), mas também revelou o segredo e tornou pública a fé e
a cura (Mc 5, 34; 2,5; 10,52) Tal cura representou o retorno total da mulher à saúde,
à sua comunidade e ao Deus da sua fé. [47] Gaudium et Spes, nº 78 [48] JOÃO
PAULO II, Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in Africa, nº 86 [49] Ibidem.,
nº 108. [50] Cf. SECAM, Seminário sobre o Sínodo, Abdjan, Costa do Marfim, 2009:
Grupo Carrefour nº III. [51] Assim a grande restauração e justificação que Javé
realiza em relação a Jerusalém é descrita por Isaías como o retorno da luz de Javé:
“Não terás mais necessidade de sol para te alumiar, nem de lua para te iluminar: permanentemente
terás por luz o Senhor, e teu Deus por resplendor” (Is 60, 19-29). [52] O Testamento
de Levi extenderia a luz de Jerusalém a seus filhos, os Israelitas, e exorta-os dizendo:
“Sede a luz de Israel, mais pura de todos os gentios... O que os gentios fariam se
vós estivésseis nas trevas pelas transgressões?” (14,3). [53] Cf. Páginas 20 -
25 acima