(23/9/2009) Dentre “os males africanos” reportados por uma imprensa, muitas vezes
precipitada, estão as guerras, interpretadas como “étnicas”, “tribais”, “ancestrais”:
termos que não ajudam a compreender as reais causas dos conflitos que têm mais a ver
com a globalização dos processos económicos, do que com ódios antigos ou “propensões
atávicas à guerra” das populações locais. Pelo contrário a África é um continente
que aspira à paz e que deu origem a percursos originais para resolver alguns dos conflitos
do Continente. Não se deve esquecer, para além disso, que (à parte algumas Repúblicas
Ex-soviéticas) são africanos os únicos dois países que traduziram em acto o desarmamento
nuclear unilateral. Trata-se da África do Sul (em 1994, por ocasião da passagem do
apartheid à democracia multi-étnica) e da Líbia (em 2003 no âmbito de um acordo com
os Estados Unidos e a Grã Bretanha que, para além disso, permitiu desmantelar uma
rede internacional de tecnologias nucleares para fins militares).
Em Junho
de 1995 foi elaborado o tratado para tornar a África em área sem armas nucleares.
Trata-se do African Nuclear Weapons Free Zone Treaty (ANWFZ) conhecido como
Tratado de Pelindaba, designação da localidade sul africana onde foi elaborado
o texto do tratado que foi aberto à firma dos Estados, no Cairo, em Abril de 1996.
Na sua totalidade as 53 nações africanas firmaram esse acordo, mesmo se não entrou
de imediato em vigor, uma vez que ainda não foram depositadas as 28 ratificações requeridas.
Esse tratado declara a África zona livre de armas nucleares e constitui um passo importante
no fortalecimento do regime da não proliferação nuclear, a cooperação para o uso pacífico
da energia nuclear, o desarmamento e o reforço da paz, da segurança regional e internacional.
(…) Para além disso assistiu-se, nos últimos anos, a uma diminuição do número de guerras
em África, relativamente ao pico registado nos anos 90. Em 1999 eram 16 os conflitos
em acto. A partir dos inícios do novo milénio foram firmados acordos de paz na Etiópia
e Eritreia (2000), Serra Leoa (2000), Angola (2002), República Democrática do Congo
(2003), Libéria (2003), Senegal (2004), Costa do Marfim (2007), Sul Sudão (2005).
Em seguida foram conseguidos importantes acordos no Burundi e houve avanços na solução
dos conflitos no Norte da Uganda. Por outro lado não se deve esquecer o drama do Darfur
e da Somália, para além do difícil processo de consolidação da paz no leste da Republica
Democrática do Congo.
A natureza das guerras africanas As
guerras africanas são, em grande parte, conflitos internos em Estados débeis e também
tornados frágeis pelas políticas ultraliberais impostas pelo sistema financeiro internacional,
para pagar as dívidas contraídas em anos anteriores. A insistência com que a Igreja
Católica denunciou várias vezes o mecanismo perverso que impõe aos Estados de renunciar
a uma política social para pagar a dívida externa, deriva dos desastres colectivos
que produz esse mecanismo. Isso não só porque destrói o mínimo de serviços sociais
(escolas, hospitais, etc…) que são indispensáveis às camadas mais pobres das populações
locais, mas também porque enfraquece a função do Estado, na qualidade de garante da
ordem e do monopólio da prevenção da violência. O EstAdo, em África, é uma instituição
praticamente recente e que afunda as suas raízes (à parte excepções como aquela da
Etiópia) na historia da colonização. O Estado moderno, em África, não nasceu na sequência
de um processo sempre longo, difícil e às vezes sanguinoso, como aconteceu com a Europa
nos últimos 400 anos. Trata-se de uma instituição que as elites africanas herdaram
dos antigos colonizadores. A estrutura político-social africana, que existia antes
da colonização estava radicada em laços tribais e familiares, apesar de que em diversas
partes da Áfricaestava em curso um processo de formação de estados autóctones
que foram interrompidos pelo colonialismo.
Portanto, o Estado se sobrepôs
às estruturas tradicionais que semantiveram de pé, apesar de
terem sofrido, por sua vez, uma evolução. Logo a seguir às independências africanas
dos anos 60 foi imposto na maior parte dos países africanos o modelo de partido único.
O poder passava a ser exercido por um presidente (que era também chefe do único partido
legal) que colocava nos postos de governo pessoas da própria família e do próprio
clã. Era o clã que controlava o Estado e não o contrario. Os clãs excluídos do poder
aspiravam, portanto, ao controlo do Estado para fazer valer os próprios direitos.
Este mecanismo era encorajado pelos ex-colonizadores que, deste modo, podiam continuar
a influenciar as antigas colónias, metendo-se de acordo com as elites ao poder. Teria
acontecido de modo diferente se em África tivesse sido imposta uma verdadeira democracia.
Mesmo as divisões ideológicas e estratégicas da guerra fria reforçaram este fenómeno:
o Ocidente e a União Soviética apoiaram este ou aquele ditador, no projecto do controlo
das respectivas áreas de influência.
Neste contesto, as guerras africanas
foram condicionadas pelo confronto entre os dois blocos, mesmo se não é preciso necessariamente
atribuir a esse factor ser única causa na provocação dos conflitos no continente.
Por exemplo, a guerra em Angola, desencadeada em 1975, imediatamente depois da independência
de Portugal, entre os três movimentos de libertação nacional foi um conflito muito
complexo no qual se entrelaçaram rivalidades entre as diversas regiões angolanas,
os conflitos ideológicos, as ambições dos países limítrofes, o confronto entre as
superpotências (incluindo a China, que pactuava juntamente com os Estados Unidos contra
a União Soviética) e os interesses das companhias petrolíferas e diamantíferas. Não
admira, portanto, que a guerra angolana se tenha arrastado por anos, mesmo depois
da queda da União Soviética e depois da retirada das tropas cubanas que apoiavam o
governo de Luanda.
Com o fim da guerra fria, nos primeiros anos 90 nasceram
novas esperança de democratização. Na maior parte dos países africanos houve
uma reviravolta democrática com o fim dos regimes de partido único e com a realização
de eleições livres. O fim do conflito entre o Ocidente e o Leste comportou, todavia,
o estancamento do fluxo das ajudas atribuídas aos diversos países africanos em troca
do seu alinhamento. Do ponto de vista geopolítico a África deixava de ser lugar de
interesse para as potências mundiais: já não era campo onde se competia o jogo entre
o Ocidente capitalista e o Oriente socialista para o controlo do Mundo. Isto não significa,
todavia, que tenham diminuído os interesses económicos e financeiros. Antes, pelo
contrário, o Continente africano continua a ser estratégico por causa da sua riqueza
em matérias primas. Portanto, são as companhias extractivas, e de outro tipo,
que agem em primeira pessoa em África, recorrendo, muitas vezes a mercenários e contratadores.
A privatização da intervenção ocidental, em África, foi acompanhada com a
imposição da ideologia neoliberal que prevê um Estado “leve”. Uma vez que já não
dispõe dos apoios dos Estados mais fortes e das instituições financeiras internacionais
para pagar a dívida externa, os países africanos viram-se obrigados a adoptar as receitas
neoliberais que prevêm pesados cortes às estruturas sociais. Daí as fortes tensões
sociais que, por sua vez, agravam a desconfiança das populações locais nas estruturas
estatais. Portanto, os africanos, dirigem-se aos poderes tradicionais, ao clã e à
tribo, para obter ajuda e protecção. Nos casos extremos o Estado é dilacerado e desencadeia-se
a instabilidade e guerras civis. Portanto, as guerras “de clãs” ou “tribais”
não têm nada de “primitivo”, de “ancestral”, mas derivam do enfraquecimento do
Estado e da perversão de algumas estruturas da sociedade, devida, pelo menos em
parte, à aplicação das “receitas” neoliberais. Trata-se, portanto, de conflitos post-modernos,
mesmo se assumem o vulto de guerras entre clãs, nos quais desempenham um papel importante
as diversas redes criminais dedicadas de trafico de armas, de droga,
de diamantes, de madeira e de outras matérias primas; redes essas que
têm também representações nas praças financeiras de todo o Mundo e que se servem dos
meios mais modernos de comunicação.
O métodos tradicionais de resolução
pacífica dos conflitos em Africa A África tem uma tradição cultural
orientada para a paz. Deve-se portanto repartir dessa tradição para procurar soluções
novas aos problemas de segurança do continente. Os métodos de solução dos conflitos
utilizados tradicionalmente pelas populações africanas baseiam-se em procedimentos
de negociação. Para negociar ocorre que haja, pelo menos, dois responsáveis capazes
de impor a paz ao próprio povo. Por esse motivo em algumas culturas tradicionais africanas
não se matavam os chefes dos inimigos mesmo nos confrontos mais aguerridos. Em alguns
casos os líderes das duas partes comem juntos, mesmo durante os combates. Este método
serve para ter sempre aberta a porta do diálogo e chegar a uma solução pacífica. As
tratativas propriamente ditas são conduzidas com procedimentos conformes às respectivas
negociações das partes interessadas. Estas pessoas devem demonstrar, ao mesmo tempo,
a intransigência na defesa dos interesses da própria comunidade e a flexibilidade
necessária para se chegar a um acordo. As capacidades exigidas aos negociadores são:
o realismo, a flexibilidade e a paciência, esta última indispensável para enfrentar
as intermináveis discussões nas quais os mesmos argumentos são repetidos em continuação,
usando formulações diversas.
A negociação envolve somente as duas partes em
litígio: com ela se têm resolvido diversos contrastes de modo pacífico. Se as duas
partes não conseguem sozinhas estabelecer um acordo, recorre-se a um árbitro externo.
Fala-se, nesse caso, de reconciliação e mediação. Trata-se de dois processos semelhantes;
a diferença está no facto de na reconciliação o árbitro ter um papel menos activo
relativamente à mediação. Seja como for o mediador é uma figura muito importante,
seja na sociedade africana de hoje, seja de ontem. Na tradição oral africana encontram-se
muitas vezes pessoas anciãs símbolos de sabedoria, que conseguem pôr fim aos conflitos
na comunidade. O mediador deve ser, portanto, uma pessoa anciã, sábia, com um profundo
conhecimento dos costumes e das desavenças e não deve ter nenhuma aliança, sobretudo
matrimonial com as partes em conflito. Dentre as capacidades exigidas ao mediador
está a eloquência e a sabedoria dos provérbios e das adivinhas sobre os quais funda
o seu discurso. O seu objectivo é o de proporcionar um compromisso que evite o conflito,
preservando os interesses principais e a honra das duas partes.
Uma outra instituição
tradicional é a dita “palabre”, do vocábulo espanhol “palabra” (“palavra”)
que é utilizado no sentido da discussão de longa conversação. O termo deriva do passado
colonial, quando com “palabra” se indicava uma espécie de concertação na qual
o comandante das tropas coloniais e o chefe tradicional africano que se entretinham
numa discussão longa e complexa. Na verdade o conceito de “palabra” tem um significado
bem diverso na sociedade tradicional africana. Com efeito, este termo refere-se às
assembleias onde são tomadas importantes decisões para a comunidade. Essas instituições
encontram-se em toda a parte em África, e é o principal sistema sociopolítico pré-colonial.
O objectivo é o de regulamentar os conflitos latentes, ou em acto. Geralmente reunidos
debaixo da “l’arvore da palabre” os participantes têm todos os direitos de palavra
e podem expor publicamente as suas perguntas para além daquelas do seu grupo. Os que
fazem perguntas podem fazer-se representar, seja por um poeta, seja por um cantor,
seja por um porta-voz.
A tradição da busca da paz através do consenso inspirou
as iniciativas para sair de situações de guerras longas e difíceis, nas quais se acumularam
ao longo dos anos ódio e desejo de vingança. O exemplo mais importante é o da Comissão
verdade e Reconciliçao da África do Sul estabelecida no fim do regime do apartheid
na segunda metade dos anos 90.